Fonte: Courrier de Rome n°678 – Tradução: Dominus Est
1. 2024 é o ano do cinquentenário da Declaração de 21 de novembro de 1974, na qual Dom Lefebvre inscrevia em letras douradas as razões profundas da atitude sempre seguida pela Fraternidade São Pio X, no contexto do pós Vaticano II. Estas razões são as seguintes: a obediência aos ensinamentos do Magistério; a rejeição aos erros contrários a estes ensinamentos, tais como vieram à luz no Vaticano II e posteriormente; a resistência aos atos dos representantes da autoridade na Igreja, quando estas impõem estes erros.
2. A razão mais profunda de todas, razão fundamental que se encontra no princípio de todas as demais, é a obediência que os ensinamentos e as diretivas do Magistério eclesiástico prescreve a todo católico, Magistério confiado por Nosso Senhor ao Apóstolo São Pedro e, através dele, a todos aqueles que lhe sucedem na Sé de Roma. “Aderimos”, declara, então, Dom Lefebvre, “de todo o nosso coração, de toda a nossa alma à Roma eterna, mestra de sabedoria e verdade”. Com efeito, essa obediência é a condição absolutamente necessária à profissão da fé salutar. Ora, se a fé é um dom de Deus, uma virtude sobrenatural infusa e recebida com a graça do batismo, seu exercício depende de seu objeto, e é o Magistério instituído por Cristo que deve nos indicá-lo, em nome de Deus, declarando-nos com autoridade quais são as verdades que se impõem ao ato de nossa fé. Ainda como recorda Pio XII em 1950, “esse Magistério, em matéria de foi e de costumes, deve ser a regra próxima e universal de verdade para todo teólogo, visto que o Senhor lhe confiou o depósito da fé – as Sagradas Escrituras e a divina Tradição – para conservá-lo, defendê-lo e interpretá-lo”(1).
3. A segunda razão é a primeira consequência, inevitável, da primeira, diante dos fatos que somos obrigados a constatar. A consequência da submissão à verdade é a rejeição do erro contrário, ou seja, a obediência aos ensinamentos do Magistério da Igreja tem como consequência a rejeição de tudo o que vier contradizer esses ensinamentos. E os fatos estão aí: o erro contrário aos ensinamentos do Magistério invadiram a pregação dos homens da Igreja, no Vaticano II e depois. “Recusamos, por outro lado”, continua Dom Lefebvre, “e sempre recusamos, seguir a Roma de tendência neomodernista, neoprotestante que se manifestou claramente no Concílio Vaticano II, e depois do Concílio, em todas as reformas que surgiram dele”. Aqui, a recusa é a consequência necessária da obediência. O fato, comprovado, é que uma tendência neomodernista e neoprotestante “se manifestou claramente”: sim, claramente. A oposição entre os ensinamentos do Concílio Vaticano II e aqueles do Magistério anterior é claro(2), mesmo que apenas nas diretivas práticas que resultam dele, e, a fortori, nas passagens chaves do Concílio relativas à liberdade religiosa(3), ao ecumenismo(4) e à colegialidade(5).
4. A terceira razão resulta das duas primeiras: se a obediência ao Magistério eclesiástico nos pede para rejeitarmos os erros contrários às verdades ensinadas até aqui com autoridade, a mesma obediência nos pede para resistirmos aos atos dos homens da Igreja que quiserem impor esses erros em nome de uma falsa obediência. “Nenhuma autoridade”, diz ainda Dom Lefebvre, “mesmo a mais alta na hierarquia, pode nos constranger a abandonarmos ou a diminuirmos a nossa fé católica, claramente expressa e professada pelo Magistério da Igreja durante 19 séculos! É por isso que, sem nenhuma rebelião, nenhum amargor, nenhum ressentimento, prosseguimos nossa obra de formação sacerdotal sob a luz do Magistério de sempre, persuadidos de que não podemos servir à Santa Igreja Católica, ao soberano pontífice e às gerações futuras de melhor forma”.
5. E é aqui que Dom Lefebvre apoia seus dizeres sobre o preceito transmitido pelo Apóstolo São Paulo. ““Se acontecer”, diz São Paulo em sua epístola aos Gálatas, “de nós mesmos”– de nós mesmos, diz São Paulo. Não é somente por um anjo vindo do céuque essa palavra é conhecida, mas, às vezes, as pessoas se esquecem desta pequena expressão: de nós mesmos ou um anjo vindo do céu: si nos aut angelus de cælo – “de nós mesmos ou um anjo vindo do céu vos ensinar algo diferente do que vos temos ensinado, que ele seja anátema”. O próprio São Paulo se faz anátema se ele ensinar novidades, se ele ensinar algo que não foi ensinado outrora. Não é o que repete ou deve nos repetir o Santo Padre hoje? Logo, se houvesse, aparentemente, uma certa contradição manifesta em suas palavras ou em seus atos, assim como nos atos dos dicastérios, então escolheríamos o que sempre foi ensinado e faríamos ouvidos de mercador às novidades destrutivas da Igreja!”.
6. Em seu comentário sobre essa passagem da Epístola aos Gálatas6, São Tomás de Aquino apresenta os seguintes esclarecimentos. “Há três tipos de ensinamento: aquele dos filósofos que seguem a razão natural; a Revelação do Antigo Testamento comunicada pelos anjos(Gal. III, 19); a Revelação do Novo Testamento dada imediatamente por Deus (Jo I, 18; Hb I, 2).O ensinamento do homem pode ser mudado e revogado por outro homem que tem um melhor conhecimento; o ensinamento da Lei antiga revelado pelo anjo pode ser completado por Deus. Contudo, o ensinamento revelado diretamente por Deus não pode ser modificado, nem pelo homem nem pelo anjo. Por isso, se acontecer de um homem ou um anjo pregar o contrário do que Deus revelou, não é a sua palavra que é contra a doutrina revelada, mas, ao contrário, a doutrina revelada que é contra a sua palavra, pois este que proferiu tal palavra deve ser excluído e expulso da comunhão baseada sobre essa doutrina. O Apóstolo diz aqui que a doutrina do Evangelho, imediatamente revelada por Deus, é de tão grande dignidade que, se um homem ou um anjo pregarem algo diferente do que foi enunciado neste Evangelho, ele é anátema, ou seja, ele deve ser cortado e expulso”.
7. Guardemos essa ideia, extremamente importante: “Se acontecer de um homem ou um anjo pregar o contrário do que Deus revelou, não é a sua palavra que é contra a doutrina revelada, mas, ao contrário, a doutrina revelada que é contra sua palavra”. É a doutrina revelada, já comunicada aos homens pelo organismo do Magistério divinamente instituído, que julga essa palavra contrária. Essa explicação do Doutor Angélico se assemelha ao critério enunciado por Dom Lefebvre, em uma Homília pronunciada em Ecône, em 22 de agosto de 1976: “E quando nos dizem: “O senhor está julgando, o senhor está julgando o Papa, o senhor está julgando os bispos”, respondemos que não somos nós que julgamos os bispos, é a nossa fé, é a Tradição. É o nosso pequeno catecismo de sempre. Uma criança de cinco anos pode provar isso ao seu bispo. Se um bispo vem dizer a uma criança: “O que te disseram sobre a Santíssima Trindade, de que há três Pessoas na Santíssima Trindade, não é verdade”. A criança pega seu catecismo e diz: “Meu catecismo me ensina que há três Pessoas na Santíssima Trindade. É o senhor quem está errado. Sou eu que tenho razão”. Essa criança tem razão. Ela tem razão porque ela tem toda a Tradição consigo, porque ela tem toda a fé consigo. Pois bem! É isso que fazemos. Não somos diferentes. Dizemos: a Tradição te condena. A Tradição condena o que o senhor faz atualmente” (7).
8. É verdade, dissemos, ao recordarmos o ensinamento de Pio XII, que o Magistério da Igreja, em matéria de fé e de costumes, deve ser a regra próxima e universal de verdade para a teologia. Essa regra é aquela da Proposição do Magistério, da qual os teólogos, e com eles todos os fiéis, recebem a Palavra revelada por Deus, o depósito da fé. Em tempos normais, trata-se da proposição atual, contanto que essa proposição permaneça em perfeita homogeneidade com a proposição finalizada até aqui pelo Magistério, ao longo do passado(8). O Magistério poderia, desta forma, se descrever sob a imagem de um eco ininterrupto. Ele se diz “vivo” por distinção com a Revelação que se diz “concluída” ou “encerrada”, e o Magistério é vivo tomado como tal, ou seja, não como sendo o Magistério atual do Papa da época presente, mas como sendo o que é, desde a época dos Apóstolos até o fim do mundo. É este Magistério vivo que é a regra da verdade em matéria de fé e de costumes. Ele o é ordinariamente em sua pregação atual, desde que este faça eco inalterado de todas as pregações passadas.
9. Hoje, somos obrigados a constatar que a pregação atual dos homens da Igreja, desde o Vaticano II, longe de ecoar aquela do Magistério vivo da Igreja, a contradiz. Logo, há uma carência que deve nos levar a nos apoiarmos sobre toda a pregação passada do Magistério vivo da Igreja, sobre a Tradição de vinte séculos, para continuarmos a guardar a fé, protegendo-nos contra os erros. Este é o critério enunciado por São Paulo, tal como explica São Tomás: é a doutrina revelada por Deus e já proposta pelo Magistério vivo da Igreja que é contra a palavra dos homens de hoje, que julga e condena a nova palavra do Vaticano II.
10. Dom Lefebvre continua insistindo sobre a gravidade destes erros, que atingem particularmente os fiéis através da implantação da reforma litúrgica. “Não se pode modificar profundamente a lex orandi, ou seja, a liturgia, sem modificar a lex credendi. A uma missa nova correspondem um catecismo novo, um sacerdócio novo, seminários novos, universidades novas, uma Igreja carismática, pentecostal, todas as coisas que são contrárias à ortodoxia e ao Magistério de sempre. Essa reforma, tendo saído do liberalismo, do modernismo, está completamente envenenada, ela provém da heresia e culmina na heresia, ainda que todos os seus atos não sejam formalmente heréticos”.
11. A resistência se impõe, em nome da obediência ao Magistério vivo da Igreja, em nome deste eco, que permanece ininterrupto, da pregação de Cristo e dos Apóstolos. “Logo, é impossível a qualquer católico consciente e fiel adotar essa reforma e se submeter a ela independente de como seja. A única atitude de salvação e de fidelidade à doutrina católica é a rejeição categórica da aceitação dessa reforma; é por isso que nos mantemos ligados firmemente a tudo o que foi crido, praticado na fé, nos costumes, no culto, no ensino do catecismo, na formação dos padres, na instituição da Igreja, até 1962, antes da influência nefasta do Concílio Vaticano II. Fazendo isto, com a graça de Deus, o socorro da Virgem Maria, de São José, de São Pio X, estamos convencidos de permanecermos fiéis à Igreja Católica e romana, a todos os sucessores de Pedro e de sermos os fiéis dispensadores dos mistérios de Nosso Senhor Jesus Cristo in Spiritu Sancto”.
12. Fazendo isto, Dom Lefebvre e sua Fraternidade não colocaram em causa a indefectibilidade da Igreja? A famosa constatação incessantemente formulado pelo antigo arcebispo de Dacar (“Somos obrigados a constatar”) não seria aquela da prevaricação da instituição estabelecida por Jesus Cristo e a negação de sua natureza divina? Se se entende bem no quê consiste exatamente a indefectibilidade da Igreja, a objeção perde o sentido por si mesma. Aqui, tudo repousa sobre a distinção fundamental entre, de um lado, a instituição da Igreja, que é uma instituição divina e, portanto, indefectível, e, por outro, os atos dos homens da Igreja que representam essa instituição. A deficiência, se existe, se refere não à Igreja enquanto tal, considerada em seu Magistério, mas a alguns dos atos realizados por alguns dos membros de sua hierarquia que romperam com a Tradição e que ocupam, infelizmente, os postos de autoridade na igreja. Mas a Igreja permanece indefectível, através da corajosa resistência de todos aqueles que se opõem às reformas nascidas do Concílio e se mantém firmemente ligados “a tudo o que foi crido […] até 1962, antes da influência nefasta do Concílio Vaticano II”.
13. Dom Lefebvre fala precisamente, além do mais, não de uma outra Roma, de uma Roma herética ou cismática, de uma Roma neomodernista ou neoprotestante, mas de uma Roma “de tendência”neomodernista e neoprotestante. Essa expressão pretende designar não a Igreja enquanto tal, mas aqueles que, na Igreja, empurram as almas para os erros outrora condenados.
Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX
Notas:
(1) Pio XII, Encíclica Humani generis, de 12 de agosto de 1950, AAS, t. XI.II (1950), p. 567.
(2) Ver os exemplares de julho-agosto de 2011, dezembro de 2011, fevereiro de 2012 e setembro de 2012 do Courrier de Rome.
(3) Declaração Dignitatis humanae, nº 2.
(4) Decreto Unitatis redintegration, nº 3; Constituição Lumen gentium, nº 8.
(5) Constituição Lumen gentium, nº 22.
(6) Comentário da Epístola de São Paulo aos Gálatas, capítulo I, versículo I, lição II, nº 25.
(7) Instituto Universitário São Pio X, Vaticano II, L’autorité d’un Concile en question, capítulo XI: “Vrai et fausse obéissance: la foi n’appartient pas au Pape”, Vu de haut, nº 13, 2006, p. 35-36.
(8) Ver os artigos “Seulement le Magistère?” na edição de fevereiro de 2016 do Courrier de Rome; “Le Magistère” na edição de novembro-dezembro 2020; “Tradition ou herméneutique” no exemplar de dezembro de 2023.