O Casamento da Virgem. Giotto, c. 1305 (afresco).
Fonte: Boletim Permanencia
“As mulheres sejam submissas a seus maridos, como ao Senhor, pois o marido é o chefe da mulher, como Cristo é o chefe da Igreja, seu corpo, da qual ele é o Salvador. Ora, assim como a Igreja é submissa a Cristo, assim também o sejam em tudo as mulheres a seus maridos. Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela, para santificá-la, purificando-a pela água do batismo com a palavra, para apresentá-la a si mesmo toda gloriosa, sem mácula, sem ruga, sem qualquer outro defeito semelhante, mas santa e irrepreensível. Assim os maridos devem amar as suas mulheres, como a seu próprio corpo.”
(Epístola de S. Paulo aos Efésios, V, 22-28)
Eis a sublime lição que nos dá a Santa Igreja em cada casamento que celebra: a santa união de Cristo com seu Corpo Místico é o modelo da união entre os esposos, que Nosso Senhor elevou à ordem sacramental.
Nos últimos anos, sob o pontificado de Francisco, cresce a perplexidade de muitos fiéis (e até prelados) ante o escândalo da condescendência papal com o adultério. Mesmo em ambientes distantes e às vezes hostis à Tradição, levantam-se vozes estarrecidas com a oficialização, pelas mãos do Papa, de uma praxe há muito consumada em paróquias mais vanguardistas: a comunhão dos divorciados “recasados”. Espantam-se com razão, porque as palavras de Nosso Senhor não deixam margem à dúvida: “Todo aquele que abandonar sua mulher e casar com outra, comete adultério; e quem se casar com a mulher rejeitada, comete adultério também”[1].
Mas se hoje Roma contemporiza com as relações adúlteras, se da Cátedra de Pedro nos vem uma voz estranha, diferente da do Bom Pastor, a chamar de “misericórdia” a crueldade de confirmar o pecado ao invés de corrigi-lo, é porque meio século atrás um outro adultério ainda mais grave se introduziu no templo católico: um concílio ecumênico deu carta de repúdio à Fé de sempre para se unir às ideologias do mundo moderno, na infidelidade conhecida como aggiornamento. Não é à toa que Monsenhor Lefebvre, o fidelíssimo Atanásio do século XX, definiu a obra do Concílio e suas reformas como uma união adúltera entre os homens da Igreja e os princípios da Revolução[2]. E nosso Gustavo Corção, pouco depois, vislumbrou na novilíngua conciliar, no espírito saído do Vaticano II, os trejeitos e gafes que denunciavam a traição à Esposa com a “Outra”[3]. De fato, não há adultério sem a “outra”.
O Concílio Vaticano II quis inculcar que a Igreja de Cristo “subsiste na” Igreja Católica, ao invés de afirmar que ela é a Igreja Católica, como sempre se fez. Na novidade dos termos, esconde-se a perigosa sugestão de que a Igreja Católica é apenas uma parte ― a principal, talvez; mas só uma parte ― da Igreja de Cristo. Nas seitas protestantes e nas comunidades cismáticas se encontrariam, entretanto, “vários elementos de santificação e de verdade, que, como dons próprios da Igreja de Cristo, conduzem para a unidade católica”[4].
Ora, a Mãe Igreja sempre ensinou que as seitas que dela se separam, por cisma ou heresia, guardam vestígios eclesiais, e não “elementos de santificação”. Vestígios são os restos, os destroços, os escombros de um edifício destruído; elementos são os tijolos intactos com os quais ele é construído: palavras diferentes para idéias muito diferentes.
O Evangelho está repleto de lições de Nosso Senhor sobre os ramos cortados da Videira, e que já não produzem fruto ― vestígios, não elementos da verdadeira Igreja. Já no anti-evangelho do Concílio Vaticano II, os ramos cortados da Videira não estão secos, mas frutificam. São “elementos de santificação”, como se alguém pudesse santificar-se graças a ser protestante ou cismático, e não apesar de ser protestante ou cismático. O resultado é uma noção de Igreja de Cristo que já não corresponde ao seu Corpo Místico, mas sim a um monstruoso Frankenstein, em que órgãos mortos de corpos estranhos se reúnem para, magicamente, receber um influxo vital de “unidade na diversidade”, um pluralismo de membros que não obedecem ao mesmo comando, não têm por Cabeça o mesmo chefe, nem vivem “uma só fé, um só batismo”[5].
No fundo dessa visão muito aberta, muito receptiva, e de aparência muito “misericordiosa” para com os “irmãos separados”, esconde-se uma verdadeira blasfêmia: que Nosso Senhor, ao lado da comunhão “plena” com a Igreja Católica, teria ainda outras “comunhões parciais” ou “imperfeitas” com outras comunidades enquanto tais, também dotadas de “elementos de santificação e de verdade”. Já não seria a Igreja Católica a única Esposa santa e irrepreensível, à qual Cristo Se une com indefectível fidelidade amorosa até a morte, e morte de Cruz. Outras, para além e por cima dos muros que guardam a Esposa Católica, também teriam (falo como louco!) alguma união íntima com o Esposo.
Porém, como explica em mais uma excelente entrevista o Pe. Davide Pagliarani, sucessor de Dom Lefebvre à frente da FSSPX, “todos os erros dogmáticos que afetam a Igreja, mais cedo ou mais tarde, têm efeitos sobre a família cristã, porque a união dos esposos cristãos é a imagem da união entre Cristo e Sua Igreja”. A uma Igreja ecumênica deverá corresponder, amanhã ou depois, um casamento aberto e plural. Essa é apenas mais uma das tantas bombas de retardo contidas no texto explosivo dos documentos conciliares, que esperou mais de cinco décadas para ser detonada no momento oportuno.
É certeza de fé que Deus só permite o mal para dele extrair um bem maior. Na tempestade causada pela revolução indisfarçada do Papa Francisco, é lícito esperar que as almas sinceras, com a divina graça, venham a enxergar a fundura em que se firma a raiz da árvore má, da qual hoje brotam os frutos podres de Amoris laetitia, Laudato Si e o vindouro Sínodo da Amazônia. Para extirpá-la, não bastarão ranhuras no caule, para que da má raiz saiam bons frutos. Não bastará a Teologia do Corpo ou a Hermenêutica da Continuidade, no seu esforço (sincero talvez, mas impossível) de sustentar a moral católica sobre a base movediça das novidades conciliares. Está condenada ao fracasso a tentativa conservadora de resguardar a família tradicional sem remover pela raiz os erros da liberdade religiosa, do ecumenismo, do diálogo inter-religioso, da missa nova. Porque dessa raiz não amputada crescerão de novo os espinhos dos cuidados conciliares com o mundo moderno, que sufocarão, como na Parábola[6], a boa semente do matrimônio católico, da família natural, da moral conforme à Lei de Deus.
Nestes dias que seguem à Exaltação da Santa Cruz, nossas orações se voltam a este pedido: que essas almas conservadoras, esses fiéis sinceros mas ainda presos às garras do aggiornamento conciliar, confrontados com as assombrosas reformas e atitudes do Papa Francisco, possam enxergar aí a terrível coerência de quem leva aos últimos efeitos os falsos princípios do Vaticano II. Que possam receber a luz da Fé de sempre, íntegra, sem ruga de compromisso nem mácula de promiscuidade, e não mais se ater à tenebrosa amálgama da fé liberal e ecumênica, pois “quem caminha nas trevas não sabe para onde vai”[7]: toma a trilha da liberdade religiosa, e termina no precipício da apologia do adultério. Receberão, os que forem fiéis à graça, o mesmo denário dos últimos trabalhadores da vinha. E ai daqueles, entre os primeiros operários, que ousem enciumar-se.
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Agora, paciente leitor, passe ligeiro para a entrevista concedida pelo Superior Geral da Fraternidade São Pio X, pois este texto, se algum mérito tem, só pode ser o de servir de razoável introdução às palavras claras e firmes de um sucessor de Dom Lefebvre.
Notas:
1 – Lc 16,18.
2 – Cf. Introdução a “Do Liberalismo à Apostasia – A tragédia conciliar”, de Mons. Lefebvre.
3 – A Editora Permanência publicou recente coletânea de artigos de Corção sobre a crise na Igreja, abordando essa noção de uma outra religião e outra igreja, governada e servida pela mesma hierarquia católica, mas muito distinta da verdadeira Igreja de Cristo. Dentre eles, talvez o principal, está o artigo A descoberta da Outra, disponível no site.
4 – As citações desse parágrafo são extraídas da Constituição Lumen Gentium, nº 8.
5 – Ef 4,5.
6 – Mt 13,4-23.
7 – Jo 12, 35 – Evangelho da Missa da Exaltação da Santa Cruz (14 de setembro).