Fonte: Verbum Fidelis
Um dos lugares mais comuns que os autores sagrados usam para representar os tempos presentes é a forma de um vasto e tempestuoso mar, no qual o gênero humano foi mergulhado desde que, pelo pecado de Adão, se viu precipitado nas trevas e no abismo da perdição. É por isso que o Verbo de Deus, vindo a esta terra para nos resgatar do abismo e nos reconduzir à terra dos vivos, quis respeitar este símbolo, escolhendo entre os pescadores do mar da Galileia os apóstolos a quem confiaria a missão de perpetuar a sua obra. Ele disse-lhes: “Segui-me e eu vos farei pescadores de homens”[1]. Quis também representar a sua Igreja, a qual estabeleceria como meio universal de salvação, sob a forma de um barco de pescador, do qual se servia constantemente, e no qual queria instalar-se, por assim dizer, quando, para pregar o Evangelho, percorria as aldeias e cidades das margens do lago de Genesaré.
“Um dia, comprimindo-se as multidões em volta dele para ouvir a palavra de Deus, Jesus estava junto do lago de Genesaré. Viu duas barcas que estacionavam à borda do lago; os pescadores tinham saído, e lavavam as redes. Entrando numa destas barcas, que era a de Simão, rogou-lhe que se afastasse um pouco da terra. Depois, estando sentado, ensinava o povo da barca. Quando acabou de falar, disse a Simão: ‘Faz-te ao largo, e lançai as vossas redes para pescar’. Respondeu Simão: ‘Mestre, tendo trabalhado toda a noite, não apanhamos nada; porém, sobre a tua palavra, lançarei a rede’. Tendo feito isto, apanharam tão grande quantidade de peixes, que a sua rede rompia-se. Então fizeram sinal aos companheiros, que estavam na outra barca, para que os viessem ajudar. Vieram, e encheram tanto ambas as barcas, que quase se afundavam. Simão Pedro, vendo isto, lançou-se aos pés de Jesus, dizendo: ‘Retira-te de mim, Senhor, pois eu sou um homem pecador’. Porque tanto ele como todos os que se encontravam com ele ficaram possuídos de espanto, por causa da pesca que tinham feito. O mesmo tinha acontecido a Tiago e a João, filhos de Zebedeu, que eram companheiros de Simão. Jesus disse a Simão: ‘Não tenhas medo; desta hora em diante serás pescador de homens’”[2]. Em outras palavras: assim como hoje, por este milagre extraordinário, enchestes as vossas redes com uma tal abundância de peixes, assim também usareis o mesmo poder para realizar um milagre maior, tirando as almas das profundezas do abismo deste mundo, trazendo-as para a vossa barca e conduzindo-as daí para a margem do descanso eterno. Foi assim que Nosso Senhor quis explicar esse grande mistério da pesca milagrosa e mostrar-nos, através do desenrolar desse episódio, o que a Igreja iria realizar até o fim dos tempos.
Há aqui duas barcas, a de São Pedro e a dos dois filhos de Zebedeu, porque há dois povos: o dos judeus e o dos gentios, dentre os quais há membros unidos à Igreja. Mas para exprimir o mistério da unidade, o Senhor só entrou na barca de São Pedro; pediu a São Pedro que se fizesse ao largo e lançasse as redes para apanhar peixes. Por fim, foi sob a direção de S. Pedro que S. Tiago e S. João, seus colaboradores, vieram dar uma mão e assim participaram no êxito e na abundância do resultado. E não foi sem razão que os peixes eram tão numerosos que a rede corria o risco de se romper: com efeito, tanto os justos quanto os pecadores se juntavam à Igreja para professar a fé, e os pecadores rompiam a rede apostólica. É por isso que a rede, cheia de toda a espécie de peixes, não é ainda levada para a praia, como se todos os peixes, sem distinção, devessem ser aí guardados. Os dois barcos, que representam a Igreja aqui em baixo, estão cheios de justos e de pecadores. Chegará um momento em que os pescadores, sentados na praia, separarão os justos e rejeitarão os pecadores; e isso acontecerá na consumação dos séculos.
Mas voltemos a olhar para a Igreja aqui em baixo. Nosso Senhor mostrou-nos o seu destino, se é que podemos usar este termo, através da barca a partir da qual ensinava as multidões e à qual deu o privilégio de recolher nas suas redes aqueles que ainda estavam no abismo. Porque essa barca não devia permanecer num mar calmo; pelo contrário, devia sofrer tempestades cruéis, apesar da presença benéfica de Cristo. E isso ainda se enquadra muito bem na figura que atribuímos. Com efeito, como é que o abismo podia aceitar que a sua presa lhe escapasse? Como não reagir? Como não usar todos os meios ao seu alcance para quebrar e engolir o frágil barco do pescador, que lhe causa tanto medo de perder? “Os que tinham descido ao mar em naus, para fazerem comércio sobre as grandes águas, viram as obras do Senhor, as suas maravilhas no meio do mar. Falou, e excitou um vento proceloso, que levantou para o alto as suas ondas. Subiam até aos céus e desciam até aos abismos; a sua alma desfalecia no meio destes males. Andavam à roda e cambaleavam como ébrios, e toda a sua perícia se desvaneceu. E clamaram ao Senhor no meio das suas angústias, e ele os livrou das suas tribulações. A tempestade serenou em doce brisa, ficaram silenciosas as ondas do mar. Eles alegraram-se por as ver silenciosas, e (o Senhor) conduziu-os ao porto que desejavam”[3].
Todos esses milagres foram confirmados ao pé da letra na barca de pescadores em que Cristo estava sentado, muito mais do que nos grandes navios, que podiam atravessar o oceano e ir até à terra de Ofir: “Tendo chegado Jesus a casa de Pedro, viu que a sogra dele estava de cama com febre; e tomou-a pela mão, e a febre a deixou, e ela levantou-se e pôs-se a servi-los […]Naquele mesmo dia, já sobre a tarde, disse-lhes: ‘Passemos à outra banda’. Deixando a multidão, o levaram, assim como estava, na barca. Outras embarcações o seguiram. Então levantou-se uma grande tormenta de vento, e as ondas lançavam-se sobre a barca, de sorte que a barca se enchia de água. Jesus estava dormindo na popa, sobre um travesseiro. Acordaram-no, e disseram-lhe: ‘Mestre, não se te dá que pereçamos?’ […]Jesus, porém, disse-lhes: ‘Porque temeis, homens de pouca fé?’ […] Ele levantou-se, ameaçou o vento, e disse para o mar: “Cala-te, emudece.” O vento amainou, e seguiu-se uma grande bonança”[4]. Aqui encontramos novamente a barca de São Pedro, pois foi ao sair da casa de São Pedro que Cristo deu a ordem de passar para a outra margem. Encontramos também a figura da Igreja que navega no mar deste mundo, com a sua carga celeste, apressando-se a chegar ao porto; poderíamos pensar que ela vai se afundar imediatamente, vendo-a rodeada pelos ataques crescentes dos espíritos impuros e dos homens perversos. Está prestes a ser esmagada, toda a sua tripulação já está perdida e, para agravar a situação, Jesus parece ter esquecido o perigo que correm os seus, no meio da tempestade. Mas acorda do seu sono no momento certo e, com um gesto, silencia o furacão; como o sol, o seu rosto brilha sobre as ondas. A superfície do mar bate suavemente, refletindo a luz que a inunda, como se estivesse a tremer de alegria, enquanto uma brisa ligeira faz ondular as velas do barco. No entanto, assim que a tempestade passa, surge outra. E quanto mais se aproxima o fim do mundo, mais se multiplicam os erros, os motivos de temor, a iniquidade e a infidelidade. É por isso que, como vemos num outro episódio, a barca é agitada pelas ondas durante toda a noite, até à quarta vigília; e enquanto Jesus permanece sozinho no monte, como que sob o véu das alturas celestes, os discípulos remam sobre o mar, que é levantado por um vento violento. “Imediatamente Jesus obrigou seus discípulos a embarcar, para chegarem primeiro que ele à outra banda do lago, a Betsaida, enquanto despedia o povo. Depois que os despediu, retirou-se a um monte a fazer oração. Chegada a noite, encontrava-se a barca no meio do mar, e ele só em terra. Vendo-os cansados de remar, (porque o vento lhes era contrário)…”[5]. Mais uma vez, como observa São Beda, o Venerável, no seu comentário a essa passagem de São Marcos[6], os esforços dos discípulos para remar e o vento contra eles representam as várias tribulações suportadas pela Igreja quando, no meio das ondas desta época hostil, se esforça por alcançar o lugar de repouso da pátria celeste, que é, por assim dizer, o solo firme da margem. E São Marcos tem razão em dizer que a barca está no meio do mar, enquanto Cristo está sozinho em terra, pois acontece que a Igreja não só é subjugada, mas até contaminada pelos ataques que lhe fazem os seus inimigos, de modo que, por impossível que seja, o seu Redentor parecia tê-la abandonado completamente durante algum tempo. E assim se explica o grito que a Igreja levanta no meio dessas ondas e rajadas de provação, implorando com lamentos o auxílio da proteção divina:….. “Por que te conservas afastado ó Senhor, te escondes nas horas de angústia?”. A Igreja nos faz também ouvir a palavra dos seus perseguidores quando acrescenta: “Diz no seu coração: ‘Deus esqueceu-se, apartou o seu rosto, não vê jamais’”[7]. Mas Deus não esquece as súplicas dos necessitados e nem desvia os olhos dos que esperam n’Ele. É por isso que o texto evangélico diz explicitamente que Cristo viu os seus discípulos esforçando-se por remar. O Senhor viu-os em apuros no meio do mar, embora Ele próprio estivesse em terra; e, embora parecesse estar adiando a sua ajuda naquele momento, fortaleceu-os na sua bondade, impedindo-os assim de desfalecer na luta. Por vezes, chegou mesmo a libertá-los, ajudando-os de uma forma bem visível, isto é, dominando as adversidades, tal como quando acalmou as ondas que, por assim dizer, foram como que pisadas. O texto sagrado torna-o claro quando diz: “Pela quarta vigília da noite, Jesus veio a eles, caminhando sobre o mar. Quando os discípulos o perceberam caminhando sobre as águas, ficaram com medo: ‘É um fantasma!’ – disseram eles –, soltando gritos de terror. Mas Jesus logo lhes disse: ‘Tranquilizai-vos, sou eu. Não tenhais medo!’. Pedro tomou a palavra e falou: ‘Senhor, se és tu, manda-me ir sobre as águas até junto de ti!’. Ele disse-lhe: ‘Vem!’. Pedro saiu da barca e caminhava sobre as águas ao encontro de Jesus. Mas, redobrando a violência do vento, teve medo e, começando a afundar, gritou: ‘Senhor, salva-me!’. No mesmo instante, Jesus estendeu-lhe a mão, segurou-o e lhe disse: ‘Homem de pouca fé, por que duvidaste?’. Apenas tinham subido para a barca, o vento cessou”[8]. A quarta vigília é a quarta parte da noite. Os discípulos trabalharam durante toda a noite escura, mas quando a aurora se aproxima e a estrela da manhã anuncia a chegada do sol e o dia da eternidade, o Senhor vem caminhando sobre as águas do mar, embora a tempestade ainda não tenha terminado. Pelo contrário, a tempestade parece mais violenta, quando os discípulos não se apercebem de que o Senhor vem ao seu encontro, pensando que se trata de um fantasma, enquanto São Pedro, arrancado da barca e do púlpito, começa também a caminhar sobre as águas, antes de parecer ser dominado por um vento violento. Mas Cristo estende a mão para o impedir de se afundar. Jesus e São Pedro regressam à barca e o vento para subitamente. Segundo o registo de São João, “quiseram recebê-lo na barca, mas pouco depois a barca chegou ao seu destino”[9].
Temos aqui a figura da barca apostólica que chega finalmente a terra firme no fim dos séculos. Resta ainda representar o que acontecerá no fim abençoado desta navegação, quando a noite tiver passado e a manhã tiver chegado…
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Notas
- Mt. IV, 19; Mc. I, 17.
- Lc. V, 1-10.
- Sl. CVI, 23-30.
- Mt. VIII, 14-26; Mc. IV, 35-39; Lc. VIII, 22-24.
- Mc. VI, 45-51; Mt. XIV 22-23; Jo. VI, 16-21.
- São Beda, o Venerável, Comentário sobre o Evangelho de São Marcos, capítulo VI, PL 92/196.
- Sl. IX 22-32
- Mc. VI, 48-49 e Mt. XIV 26-32.
- Jo. VI, 21.