De Jacques Maritain a Yves Congar
O liberalismo que se diz católico, lançou-se ao ataque da Igreja sob o estandarte do progresso, como lhes mostrei no capítulo precedente. Somente lhe faltava revestir-se com o manto da filosofia para penetrar com toda segurança na Igreja, que até então o anatematizava. Alguns nomes conhecidos ilustram esta penetração liberal na Igreja até as vésperas do VaticanoII.
Jacques Maritain (1882-1973)
Não é um erro chamar Jacques Maritain o pai da liberdade religiosa do Vaticano II. Paulo VI, por sua vez, se havia alimentado com as teses políticas e sociais do Maritain liberal posterior a 1926, e o reconhecia como mestre… São Pio X havia sido por certo mais bem inspirado ao eleger como mestre o Cardeal Pio136do qual foi tirada a passagem central de sua primeira encíclica “E Supremi Apostolatus” e sua divisa, “Restaurar tudo em Cristo”.
Mas a divisa de Maritain, que será também a de Paulo VI, foi “instaurar tudo no homem”. Em reconhecimento ao velho mestre, Paulo VI lhe remeteu no dia 8 de dezembro de 1965, dia do encerramento do Concílio, o texto de uma das mensagens finais do Concílio ao mundo. Ora, eis o que declarava um desses textos, a “mensagem aos governantes”, lido pelo Cardeal Lienart:
“Em vossa cidade terrena e temporal, Ele constrói misteriosamente sua cidade espiritual e eterna: sua Igreja. E o que vos pede esta Igreja, depois de quase dois mil anos de toda espécie de vicissitudes em suas relações convosco, poderosos da terra? O que vos pede hoje? Ela vos disse em um dos principais textos do Concílio: só vos pede a liberdade. A liberdade de crer e pregar sua fé, a liberdade de amar e servir a Deus, a liberdade de viver e levar aos homens sua mensagem de vida. Não temais, Ela é semelhante a seu Mestre, cuja ação misteriosa não usurpa vossas prerrogativas, mas cura o homem de sua fatal velhice, o transforma dando-lhe esperança, verdade e beleza”137.
Isso é aceitar a tese de Maritain da “sociedade vitalmente cristã”, segundo a qual a Igreja, renunciando à proteção da espada civil, por um movimento progressivo e necessário se emancipa da molesta tutela dos Chefes de Estado católicos, e agora se contenta somente com a liberdade, se reduz a não ser mais do que um fermento evangélico escondido na massa ou o signo de salvação para a humanidade.
Esta “emancipação” da Igreja, assegura Maritain, vem acompanhada por uma emancipação recíproca do temporal em relação ao espiritual, da sociedade civil em relação à Igreja, por uma laicização da vida pública, que de certo modo é uma “perda”. Mas ela é amplamente compensada pelo “progresso” que dela adquire a liberdade e pelo pluralismo religioso que se instaura legalmente na sociedade civil. Cada família espiritual gozaria de um estatuto
jurídico próprio e uma justa liberdade138. Há assim ao longo da história humana uma lei que se manifesta, a “dupla lei da degradação e da super-valorização da energia da história”: a lei de emergência da consciência da pessoa e da liberdade e a lei correlativa da degradação de uma quantidade de meios temporais, postos ao serviço da Igreja e de seutriunfalismo:
“Enquanto a avareza do tempo e a passividade da matéria dissipam e degradam naturalmente as coisas deste mundo e a energia da história, as forças criadoras próprias do espírito e a liberdade (…) elevam cada vez mais a qualidade desta energia. A vida das sociedades humanas avança e progride assim à custa de muitasperdas”139.
Vocês já conhecem a famosa “energia criadora” de Bérgson e a não menos famosa “emergência da consciência” de Teilhard de Chardin. Todas estas figuras, Bérgson, Teilhard, Maritain, dominaram e corromperam o pensamento católico durante várias décadas!
Mas, diriam a Maritain, o que sucede com o Reino social de Nosso Senhor na sua “sociedade vitalmente cristã”, se o Estado já não reconhece a Jesus Cristo e a sua Igreja? Escutem bem a resposta do filósofo: a cristandade (ou o Reino social de Jesus Cristo) é suscetível de várias realizações históricas sucessivas, essencialmente diferentes, mas analogicamente idênticas; à cristandade medieval do tipo “sacro” e “teocrático” (quantos equívocos nestes termos!”, caracterizada pela abundância de meios temporais a serviço da unidade da fé, deve suceder hoje em dia uma “cristandade” caracterizada, como vimos, pela emancipação recíproca do temporal e do espiritual e pelo pluralismo religioso e cultural dacidade.
Que habilidade no uso da teoria filosófica da analogia para simplesmente renegar o Reino social de Nosso Senhor Jesus Cristo! É evidente que a cristandade se pode realizar de maneira diferente na monarquia de São Luiz e na República de Garcia Moreno; mas o que eu nego absolutamente é que a sociedade maritanista, a cidade pluralista “vitalmente cristã” seja ainda uma cristandade e realize o Reino social de Jesus Cristo. “Quanta Cura”, “Immortale Dei” e “Quas Primas” me asseguram que Jesus Cristo não tem trinta e seis maneiras de reinar sobre a sociedade: ele reina “informando”, modelando as leis civis segundo Sua lei divina. Uma coisa é suportar uma sociedade em que há de fato uma pluralidade de religiões, como por exemplo no Líbano, e fazer o possível para que Jesus Cristo seja o “polo” de todas; outra coisa é pregar o pluralismo em uma cidade em que sua maioria é ainda católica e, para cúmulo, querer batizar este sistema com o nome de cristandade. Não! A “nova cristandade” imaginada por Jacques Maritain não passa de uma cristandade moribunda que apostatou e rechaçou seu Rei.
Realmente Jacques Maritain ficou deslumbrado com a civilização do tipo abertamente pluralista dos Estados Unidos da América, onde a
Igreja Católica, gozando do regime da liberdade pura, teve um grande desenvolvimento no número de seus membros e de suas instituições. Mas é por acaso este argumento suficiente a favor do princípio do pluralismo? Peçamos uma resposta aos Papas.
Leão XIII na encíclica “Longiqua Oceani” de 6 de janeiro de 1895, elogia o progresso da Igreja nos Estados Unidos. Damos abaixo seu juízo a esse respeito:
“Em vossa pátria, escreve aos bispos americanos, graças à boa constituição do Estado, a Igreja sendo defendida contra a violência pelo direito comum e com eqüidade de juízos, não incomodada por nenhuma lei, obteve a liberdade garantida de viver e agir sem obstáculos. Todas estas observações são verdadeiras, entretanto é preciso evitar-se um erro: que não se conclua, por isto, que a melhor situação para a Igreja é aquela que goza na América do Norte; e que será permitido e que é útil separar e desunir os princípios dos assuntos civis daqueles dos assuntos sagrados, como na América do Norte.
Com efeito, se a Religião Católica é honrada entre vós, se prospera, se tem se desenvolvido, deve-se atribuir somente à fecundidade divina de que goza a Igreja; quando ninguém se opõe nem cria obstáculo, ela se expande por si mesma. Entretanto Ela produziria mais frutos se gozasse não só de liberdade, mas também do favor das leis e da proteção dos poderes públicos”140.
Mais recentemente Pio XII, como Leão XIII, diz que o pluralismo religioso pode ser uma condição favorável e suficiente para o desenvolvimento da Igreja, e ressalta inclusive que em nosso tempo há uma tendência para o pluralismo141:
“A Igreja sabe que há algum tempo, os acontecimentos têm evoluído em outro sentido, ou seja, para a multiplicidade das confissões religiosas e das concepções da vida em uma mesma comunidade nacional, onde os católicos constituem uma minoria mais ou menos forte. Para a história pode ser interessante e até surpreendente, encontrar um exemplo nos Estados Unidos da América entre outros, onde a Igreja se expande mesmo em situações as mais discrepantes”.
Mas o grande Papa evitou deduzir que por este motivo devia-se virar para onde sopra o “vento da história” e promover o princípio do pluralismo! Pelo contrário, reafirma a doutrina católica:
“O historiador não deveria esquecer que mesmo que a Igreja e o Estado tenham conhecido horas e anos de luta, houve desde Constantino o Grande até a época contemporânea, e mesmo recentemente, períodos tranqüilos e freqüentemente prolongados, durante os quais colaboraram com completa compreensão na educação das mesmas pessoas. A Igreja não esconde que Ela considera esta colaboração como normal e que vê como um ideal a unidade do povo na verdadeira Religião e na unanimidade de ação entre Ela e o Estado”142.
Mantenhamos firmemente esta doutrina e desconfiemos da ilusão do pluralismo. Se o vento da história parece soprar atualmente nesta direção, certamente não é pelo sopro do Espírito Santo, mas sim o vento glacial do liberalismo e da Revolução, através de séculos de trabalho para solapar a cristandade143.
Yves Congar e Outros
O Padre Congar não está entre meus amigos. Teólogo experimentado, no Concílio foi o autor principal, junto a Karl Rahner, dos erros que desde então não tenho cessado de combater. Entre outros, escreveu um livreto intitulado “Mons. Lefebvre e a Crise da Igreja”. Ora vocês verão como, à exemplo de Maritain, o Pe. Congar nos inicia nos mistérios da evolução do contexto histórico e do vento daHistória:
“Não se pode negar, diz ele, que um tal texto (a Declaração conciliar sobre a liberdade religiosa) diga outra coisa que o Syllabus de 1864, e mesmo quase o contrário das proposições 15, 77 e 79 deste documento. É que o Syllabus defendia um poder temporal a que o papado renunciou, em 1929, considerando uma nova situação. O contexto histórico-social em que a Igreja era chamada a viver e a falar já não era o mesmo, os acontecimentos nos haviam ensinado. Já no século XIX “alguns católicos haviam compreendido que a Igreja encontraria melhor apoio para sua liberdade na firme convicção dos fiéis do que nos favores dos príncipes”144.
Desgraçadamente para o P. Congar, estes “católicos” não são senão os católicos liberais condenados pelos Papas; e o ensinamento do Syllabus, longe de depender de circunstâncias históricas passageiras, constitui um conjunto de verdades históricas passageiras, constitui um conjunto de verdades deduzidas logicamente da Revelação e tão imutáveis como a Fé. Mas nosso adversário prossegue e insiste:
“A Igreja de Vaticano II, pela declaração sobre liberdade religiosa, por “Gaudium et Spes” (a Igreja no mundo atual) – que título significativo! – se situou claramente no mundo pluralista de hoje; e sem renegar o que houve de grande, cortou as amarras que a tinham mantido na Idade Média. Não se pode permanecer estagnado em um momento da história”145.
Aí está! O desenvolvimento da história empurra para o pluralismo: deixemos ir nesta direção a barca de Pedro e abandonemos o Reino social de Jesus Cristo nas longínquas margens de um tempo que ficou para trás… Estas mesmas teorias encontraremos no Pe. John Courtney Murray, sacerdote jesuíta, outro experimentado membro do Concílio que ousa escrever com ares de doutor que só iguala sua auto-suficiência, que a doutrina de Leão XIII sobre a união da Igreja e do Estado, é estritamente relativa ao contexto histórico em que foi escrita:
“Leão XIII estava muito influenciado pela noção histórica do poder político pessoal exercido de modo paternalista sobre a sociedade como sobre a família”146.
Assim a trapaça está montada: a Monarquia foi substituída pelo regime do “Estado Constitucional Democrático e Social”, o qual, assegura nosso teólogo e repetirá Mons. De Smedt no Concílio, “não é uma autoridade competente para julgar a verdade ou falsidade em matéria religiosa”147. Não se pode imaginar uma declaração do reinado social de Jesus Cristo, e isto na boca do relator oficial da comissão de redação da Declaração conciliar sobre a liberdade religiosa! Deixemos o Padre Murray continuar:
“Sua própria obra está marcada por uma forte consciência histórica. Ele conhecia o tempo em que vivia e escrevia para ele com admirável realismo histórico e concreto148. Para Leão XIII a estrutura conhecida sob o nome de Estado Confessional Católico (…) nunca foi mais do que umahipótese”149.
Ruinoso relativismo doutrinal! Com tais princípios se pode relativizar toda verdade, apelando para a consciência histórica de um momento fugitivo! Por acaso Pio XI ao escrever “Quas Primas” era prisioneiro de concepções históricas? E S. Paulo ao afirmar: É necessário que Jesus Cristo reine?
Creio que o leitor terá compreendido a perversidade do relativismo doutrinal histórico de Maritain, Yvez Congar e companhia. Tratamos de pessoas que não têm nenhuma noção da verdade, nem a menor idéia do que pode ser uma verdade imutável. É cômico comprovar que estes mesmos liberais relativistas, que foram os verdadeiros autores do Vaticano II, atualmente chegam a dogmatizar este Concílio que haviam declarado pastoral; e nos querem impor as novidades conciliares como doutrinas definitivas de intocáceis. Se aborrecem se ousamos dizer-lhes: “vocês dizem que hoje o Papa já não escreveria “Quas Primas”. Eu lhes digo: “também hoje não se escreveria seu Concílio, já está superado. Vocês se aferram a ele porque é a obra de vocês, mas eu me apego à Tradição, porque é obra do Espírito Santo”.
Do Liberalismo à Apostasia – Mons. Marcel Lefebvre
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136 Conta o Padre Théotime de Saint Just que um sacerdote e um religioso da diocese de Poitiers foram um dia recebidos por São Pio X: “Ah, a diocese do Cardeal Pio!” lhes disse o Papa levantando as mãos, “tenho aqui a meu lado as obras do vosso cardeal e há muitos anos, não deixo passar muitos dias sem que eu leia algumas páginas”. Dizendo isto, pegou um de seus volumes e o colocou nas mãos de seus visitantes. Eles puderam comprovar pela encadernação simples, que o livro pertencia ao pároco de Salzano ou ao diretor espiritual do seminário de Treviso(ouseja,o próprio PioX) muito tempo antes de ir para o Vaticano.
137 Doc. Pontifícios de Paulo VI, Ed. St. Agustín, St. Maurice, 1965, pág. 685
138 Cf. “Humanisme Integral”, cap. V, págs. 180-181.
139 “Les Droits de l’Homme et la Loi Naturelle”, pág. 34
140 Cartas Apostólicas de Leão XIII, Bonne Presse, T. IV, págs. 162-165.
141 Discurso no 10º Congresso Internacional das Ciências Históricas, 7 de setembro de 1955. Doc. Pontifícios de Pio XII, T. XVII, pág.294.
142 Loc. Cit.
143 Cf. “Mgr. Lefebvre et le Saint-Office”, págs. 54-55.
144 Op. Cit. Págs. 51-52.
145 Loc. Cit
146 “Vers une intelligence du développement de la dostrine de l’Eglise sur la libertereligieuseinVaticanII,lalibertereligieuse”,pág.128.
147 Relatio de reemendatione schematis emendati, 28 de maio de 1965.
148 Parece estarmos lendo Jacques Maritain, com seus “ciels historiques varies” e “ideal historique concret” – Cf. “Humanisme Integral” págs. 153-154. Poderíamos depois perguntar: quem influenciou a quem?
149 Op. Cit. Pág. 134.