A LEI ANTIGA E A LEI EVANGÉLICA SEGUNDO O VATICANO II E SEGUNDO A TRADIÇÃO CATÓLICA – PARTE I

Fonte: Sì Sì No No – Tradução: Dominus Est

Antigo e Novo Testamento segundo a doutrina tradicional

Santo Tomás de Aquino, sempre fiel à doutrina tradicional, divide a Lei divina em Lei Antiga (S. Th., I-II, qq. 98-105) e Lei Nova (qq. 106-108). A Lei Antiga é subdividida em preceitos morais [q. 100], preceitos cerimoniais [qq. 101-103] e preceitos sociais ou judiciais [qq. 104-105].

A Lei de Moisés era boa, mas imperfeita (S. Th., I-II, q. 98, a. 1)

Uma lei é boa se é consoante com a reta razão. A Lei Antiga, reprimindo a concupiscência contrária à razão [Ex. XX, 15] e proibindo todos os pecados, concordava com a razão e por isso era boa. Deve-se notar, porém, que o bem tem diversos graus, como afirma São Dionísio: com efeito, há um bem perfeito e um bem imperfeito. A bondade de um meio ordenado ao fim é perfeita se o meio é tal que por si é suficiente para induzir ao fim. É imperfeito, porém, o bem que faz algo para que se atinja o fim, mas não é suficiente para que se conduza ao fim. (Assim o remédio perfeitamente bom é aquele que cura o homem; o imperfeito ajuda o homem, mas não pode curar). O fim da Lei divina é levar o homem ao fim da felicidade eterna; tal fim é impedido por qualquer pecado, e não só pelos atos exteriores, mas também interiores. E assim aquilo que é suficiente para a perfeição da lei humana, a saber, de modo que proíba os pecados e imponha uma pena, não basta para a perfeição da Lei divina, mas é necessário que torne o homem totalmente idôneo para a perfeição da felicidade eterna. Ora, isso não se pode fazer a não ser pela graça do Espírito Santo. Tal graça a Lei Antiga não pode conferir; reserva-se isso a Cristo, porque, como é dito no Evangelho de São João: “A lei foi dada por Moisés; a graça e a verdade foram feitas por Jesus Cristo” (Jo. I, 17). E daí é que a Lei Antiga é certamente boa, mas imperfeita, segundo a Carta de São Paulo aos Hebreus: “A Lei não levou nada à perfeição” (Heb. VII, 19).

A Lei do Antigo Testamento traz ao conhecimento aquilo que é bom e aquilo que é mau, mas só a Encarnação, Paixão e Morte de Cristo dão a força ao homem para que ele faça o bem e fuja do mal, ou seja, para que ele observe a Lei. Só a Lei Nova pode conduzir à felicidade eterna, porque ela é a graça do Espírito Santo derramada sobre nós pelos méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo. A Lei Antiga não podia conferir por si a graça santificante; podia só contribuir, de modo extrínseco, para a obtenção do fim último.

Assim, «a concepção teológica da bondade da Lei Antiga […] – comentam os dominicanos italianos – difere-se essencialmente daquela do judaísmo contemporâneo e posterior a Cristo. Os judeus, com efeito, esquecendo o exemplo do patriarca Abraão e dos outros santos da Antiga Aliança, que buscavam a justificação na Promessa divina, e por conseguinte na Fé [no Cristo Vindouro n.d.r.] (cf. Heb. XI), ignoravam a necessidade da graça divina e não esperaram a justiça senão pela observância da Lei, ou seja, em última análise, pelo seu próprio esforço humano […]. A Lei, portanto, por si mesma boa e útil (cf. Santo Tomás, Ad Hebr., c. VII, lect. 3), porque é capaz de conduzir ao bem, removendo por exemplo o perigo da idolatria (cf. Santo Tomás, Ad Gal., I-II, lect. 8 – S. Th., IIII, q. 98, a. 2), não deu seus frutos».

«A imperfeição da Torá, não sendo capaz de tornar o homem adequado para a felicidade eterna na medida em que ela não está apta para conferir graça, não deve, no entanto, ser levada a consequências extremas, que quase anulam o dom e a bondade da Lei mosaica, e se tornam ofensivas à Divina Providência. É necessário reconhecer, com base no dom da Lei Antiga, a Vontade positiva de Deus para conduzir o homem à verdadeira justiça; Vontade que supõe necessariamente a ajuda, a ajuda interior da graça divina, que fez germinar também os homens santos no Antigo Testamento. Portanto, os israelitas, “pela fé no Salvador” [vindouro n.d.r] e “observando a Lei”, estavam dispostos à graça e podiam ser justificados. O Concílio de Orange (529) afirma expressamente que a fé insigne louvada pela Sagrada Escritura (Heb. XI) do justo Abel, de Noé, Abraão, Isaac, Jacó e de toda a multidão de antigos santos foi fruto da graça de Deus (cf. Denz. 199)» (Commento alla Somma Teologica dei Domenicani italiani, op. cit., p. 184, nota 1). O próprio São Paulo, sob inspiração do Espírito Santo, escreveu: “Logo (isto) não depende do que quer, nem do que corre” (Rom. IX, 16) – o querer e o correr nos mandamentos de Deus –, “mas de Deus, que usa de misericórdia”. Por isso não era possível observar a Lei [correr no caminho dos mandamentos de Deus] sem a ajuda da graça, que sozinha a Lei Antiga não dava.

Santo Tomás tratou este tema na Suma Teológica, I-II, q. 91 a. 5, explicando que a Lei divina não é uma, mas duas, porque como ensina São Paulo, “Pois, mudado o sacerdócio, é necessário que mude também a lei” (Heb. VII, 12). Mas, prossegue o Aquinate desenvolvendo o dado revelado, se o Sacerdócio é duplo (como disse o próprio São Paulo, 11ss): levítico e cristão, dupla é também a Lei divina: Antiga e Nova.

No corpus do artigo, Santo Tomás dá a razão teológica da afirmação. Algumas coisas, diz, distinguem-se de dois modos. De um modo, como aquelas que são de espécies totalmente diversas, como o cavalo e o boi. De outro modo, como o perfeito e o imperfeito na mesma espécie, como a criança e o homem. E desse modo (o segundo) distingue-se a Lei divina em Lei antiga e Lei nova. Por isso o Apóstolo, na Carta aos Gálatas, compara o estado da Lei Antiga ao estado da criança (Israel) subordinada ao pedagogo (Lei mosaica); enquanto o estado da Lei Nova compara ao estado do homem perfeito (cristianismo), que já não está sob o pedagogo (a Lei mosaica), mas sob o próprio Cristo.

“A Lei Antiga serve de pedagogo em ordem a Cristo – comentam os dominicanos italianos. Lei Antiga e Lei nova não são duas leis especificamente diversas [como o boi e o homem, n.d.r], mas uma única lei segundo um diverso grau de perfeição [uma criança e um homem, n.d.r]. […] Há assim uma continuidade essencial entre Velho e Novo Testamento: eles são dois momentos distintos de uma única economia da salvação” (op. cit., p. 55, nota 2).

A Lei Antiga, embora imperfeita, provinha de Deus (S. Th., I-II, q. 98, a. 2)

A Igreja, embora ensinando a imperfeição da Lei mosaica, sempre condenou maniqueus, gnósticos, cabalistas e neopagãos, que dizem que ela deriva de um princípio mau.

No corpus do segundo artigo, o Doutor Angélico afirma que a Lei Antiga foi dada por um Deus bom, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, porque a Lei Antiga guiava os homens a Cristo de duas maneiras: De um modo dando testemunho de Cristo; De outro modo, como por uma disposição, enquanto, retirando os homens do culto de idolatria, encerrava-os sob o culto do único Deus.

Ora, é evidente que predispor ao fim e conduzir a ele pertence a um condutor único, que age por si mesmo ou por meio de seus ministros (o diabo não poderia dar uma Lei que conduzisse os homens a Cristo e o derrotasse). Por isso a Lei Antiga foi dada pelo mesmo Deus pelo qual foi realizada a salvação dos homens por meio da Paixão e a graça de Cristo.

Podemos conceber a história da humanidade como uma peregrinação rumo ao Paraíso sob o comando de diversos chefes. Os diferentes objetivos alcançados pelos peregrinos não são estradas diversas ou contrárias, mas somente etapas sucessivas de um único caminho, cada uma das quais é boa na medida em que possibilita aproximar-se do fim. Assim, os vários chefes estavam todos ordenados a Deus (que renovou Sua promessa a Adão, Noé, Abraão, Isaac, Jacó e Moisés).

A Lei Antiga é uma parte ou etapa importante da peregrinação estabelecida e preordenada por Deus em direção a Cristo e ao Paraíso. Moisés foi o guia de tal peregrinação “in via ad Patriam” até o encontro com o eterno Chefe, o Rei Celeste Nosso Senhor Jesus Cristo, que abriu as portas do Céu. A Lei mosaica é por isso o último trecho de um bom percurso, mas ainda imperfeito e preparatório, levado à perfeição por Nosso Senhor Jesus Cristo ou pela Lei evangélica, que nos introduziu na Jerusalém espiritual (a Igreja católica) na espera de nos fazer entrar na Jerusalém celeste (o Paraíso) no fim da nossa vida e do mundo. Por conseguinte, mostram-se claras a harmonia, a complementariedade e a continuidade dos dois Testamentos também na variedade de etapas e de chefe/peregrinação, como mostra-se clara a continuidade entre a vida da graça e a beatitude eterna do Paraíso. Se “gratia est semen gloriae” [a graça é um começo de glória], pode-se dizer com maior razão que “Antiquum Testamentum est semen Novi et Aeterni Testamenti” [o Antigo Testamento é o começo do Novo e Eterno Testamento].

Santo Tomás prossegue respondendo à primeira objeção que afirma: as obras de Deus são perfeitas; ora, a Lei antiga é imperfeita, logo não é obra de Deus.

Ele responde dizendo que nada proíbe que algo, perfeito segundo o tempo, não seja perfeito em absoluto, como dizemos que uma criança não é perfeita em absoluto, mas segundo a condição da sua idade. Assim também os preceitos que são dados às crianças, são certamente perfeitos segundo a condição daqueles aos quais se dão, embora não sejam perfeitos em absoluto. E tais
foram os preceitos da Lei. Donde o Apóstolo dizer: “A lei foi o nosso pedagogo em Cristo” (Gal. III, 34): “O modo de Deus agir aparece frequentemente na Sagrada Escritura […] como educação do povo eleito para viver e atuar na economia da salvação, que se amadurece lentamente no decorrer do tempo. Javé se comporta com os israelitas como um pai em relação aos seus filhos: Ele lhes ensina e castiga para induzi-los a segui-Lo na Fé e na observância da Lei. […] A pedagogia divina, […] passou por uma mudança no Novo Testamento […]. O pedagogo da economia da graça [isto é, do Novo Testamento, n.d.r], que deve revestir os cristãos do homem novo, que faz com que eles amadureçam até o estado de homem perfeito e até atingir a medida da plena estatura de Cristo, e não sejam mais crianças vacilantes […], não pode ser mais a letra, a voz exterior da Torá, mas um Agente que opera com uma ação interior, mas não mortificante. Com efeito, o educador da Nova Lei é o Espírito Santo, que vive nos corações dos fiéis [Gal. IV, 6]” (Commento alla Somma Teologica dei Domenicani italiani, op. cit., p. 190, nota 2).

Resolvendo a segunda objeção, o Doutor Angélico afirma que, tendo vindo o tempo da perfeição da graça (com Nosso Senhor Jesus Cristo), a Lei Antiga foi ab-rogada, não porque fosse má, mas porque é fraca e inútil para este tempo, na medida em que não pode dar a graça do Espírito Santo, que é fruto da Redenção de Nosso Senhor.

À terceira objeção Santo Tomás responde que Deus queria uma Lei (a Lei Antiga) que não dava a força para ser observada, a fim de que os homens presunçosos se reconhecessem pecadores e recorressem humilhados à ajuda da graça. Santo Agostinho escreve: “A Lei foi dada a fim de que se buscasse a graça” (De Spiritu et littera, c. XIX).

Por fim, à quarta dificuldade o Angélico responde que, embora a Lei Antiga não bastasse para se salvar, havia uma outra ajuda (da qual já falamos) oferecida por Deus aos homens para que eles se salvassem: a Fé no Messias vindouro, que justificava (se informada pela Caridade) os antigos Pais, como justifica a nós que cremos no Messias que já veio. Por isso Deus não deixou faltar aos homens de todas as épocas a ajuda necessária para sua salvação.

A Lei Antiga devia ser dada só ao povo judeu, porque convinha que do povo do qual nasceria Cristo se distinguisse sua santidade (S. Th., I-II, q. 98, a. 4)

O princípio do qual parte São Paulo a respeito da vocação perdida pelos judeus, seus “irmãos segundo a carne” (Rom. IX, 1), é a livre escolha de Deus, que pode escolher o que quer e como quer. Israel havia recebido uma vocação especialíssima: manter o culto do Verdadeiro e Único Deus e a observância da sua Lei e dar à luz o Messias. Esta escolha, como toda eleição, não pressupõe da parte daquele que é escolhido nenhum mérito: ao nos amar, Deus nos torna bons, e não é porque somos bons que Deus nos ama. Este é o chamado princípio de predileção do sistema tomista, por onde se alguém é mais santo que o outro é porque Deus o amou mais, dando porém ao outro o suficiente segundo a justiça para se salvar. “Porque, quem é que te distingue (declarando-te superior aos outros)? Que tens tu, que não recebesses? E, se o recebeste, porque te glorias, como se o não tiveras recebido?” (ICor. IV, 7). «Também quando Deus, com a promessa feita a Abraão, escolhe para si uma raça, Ele não pretende eleger todos para esse pertencimento. Com efeito, Deus prefere Isaac em vez de Ismael […] Jacó em vez de Esaú […] de maneira que “Porque nem todos os que descendem de Israel, são verdadeiros israelitas (herdeiros das promessas); nem os que são da linhagem de Abraão (são) todos (seus filhos [segundo a Fé])” (Rom. IX, 7-8). Na verdade, aconteceu que poucos israelitas – só “um resto” – conseguiram e conseguem os benefícios da Promessa […]. Por isso Isaías eleva o triste lamento: “Estendia as minhas mãos todo o dia para um povo rebelde que andava por caminho mau” (Is. LXV, 2)» (Commento alla Somma Teologica a cura dei Domenicani italiani, op. cit., pp. 196-197, nota 1).

Em confirmação, Santo Tomás cita o Deuteronômio: “Sabe, pois, que não é pela tua justiça que o Senhor teu Deus te dará a posse desta terra excelente, pois tu és um povo de cerviz duríssima” (Dt. IX, 6), e São Paulo, recordando que “as promessas foram feitas a Abraão e à sua descendência” (Gal. III, 16), observa que não se diz “aos seus descendentes”, como se fossem muitos; mas “à tua descendência, a qual é Cristo”! Portanto, Deus concedeu a Lei ao povo judeu unicamente pela promessa feita aos Patriarcas de que Cristo nasceria deles. Com efeito, «era justo que o povo do qual nasceria Cristo tivesse uma santidade especial […]. Todavia, tal promessa [que Cristo nasceria de sua semente] não era devida aos méritos de Abraão, mas a uma eleição e vocação gratuita da parte de Deus». “Quia Deus bonus est, effudit bonitatem in creaturis” [NdT: “Porque Deus é bom, Ele infunde a bondade nas criaturas”]. Por onde é claro que “ex sola gratuita electione Patres promissionem acceperunt” [NdT: “só por eleição gratuita os Patriarcas receberam a promessa”].

Na solução da primeira objeção o Angélico argumenta: embora a salvação que devia vir de Cristo fosse para todos os povos, era todavia necessário que Cristo nascesse de um determinado povo, o qual por isso mesmo teve prerrogativa sobre os outros; e se alguém insistir em perguntar por que Deus escolheu o povo judeu e não um outro, se responderá com Santo Agostinho: “Por que chamar esse e não chamar aquele, se não quer se equivocar, não julgue” (Super Joan., tratc. XXVI). E nisso não há injustiça e nem favoritismo por parte de Deus [ad 3], pois não se trata de um bem devido por justiça, mas de dons absolutamente gratuitos que Deus pode dar livremente a quem quiser na medida em que quiser sem ser injusto com ninguém.

(continua…)

Crispinus