Se há uma coisa cuja especial necessidade as condições modernas geraram, é a prática frequente da leitura espiritual
Assim escreveu o abade cisterciense Eugene Boylan em 1946, em This Tremendous Lover, ao analisar o colapso da infraestrutura espiritual do mundo. Embora ler ou outra forma de instrução sempre ter sido necessário, ele prossegue:
a instrução oral, a opinião comum dos homens, o exemplo do próximo e as tendências da vida em geral têm um papel menor na formação e instrução dos católicos que em épocas passadas. As pessoas não vão mais ouvir sermões como antigamente; não se fala mais sobre religião, ao menos não com seriedade; nossos próximos, frequentemente, têm ideais longe de serem católicos – se é que eles têm algum ideal; e há pouco ao nosso redor que seja de auxílio direto para nos incitar ou nos ajudar a encontrar Deus
Em suma, ao deixar Deus de fora, nosso novo ambiente não é capaz de nada além de nos afastar dEle. Ele é positivamente inóspito ao crescimento espiritual. De nossa parte, portanto, “há uma necessidade urgente de fazer esforço pessoal para restaurar o equilíbrio, mantendo as realidades da eternidade em nossas mentes” (Boylan)
A leitura espiritual é o corretivo requerido. Na verdade, para o católico educado,
é quase essencial para seu progresso, senão para sua salvação. Para nossas mentes, essa prática está no mesmo nível da oração mental e de outros exercícios devocionais no grau de importância, e ela, na verdade, está tão ligada a esses outros exercícios, especialmente o essencial de oração mental, que, sem ela – a não ser que se encontre um substituto –, não há possibilidade de avançar na vida espiritual; até mesmo a perseverança na vida espiritual torna-se muito duvidosa (Boylan)
A leitura espiritual, portanto, pede esforço para a “assídua e atenta leitura de livros espirituais” (cf. Antonio Royo Marín, A Teologia da Perfeição Cristã). Ela demanda uma privação distinta.
O maior corrosivo
Das várias forças em questão quando se trata de nosso afastamento do divino, algumas são particularmente corrosivas. Na visão do abade quando escrevia, tinha um papel central nelas o jornal. Ele baseava sua análise tanto no conteúdo, quanto na própria estrutura da mídia em si: “… uma longa série de itens que dificilmente seriam mais eficientes para atrair atenção e concentração para este mundo e as coisas deste mundo” Embora se possa questionar a veracidade de muito do que é publicado, “dificilmente se pode negar que o que é publicado é apresentado de modo a capturar a imaginação do leitor” (Boylan)
A era da informação revelou a verdadeira extensão dessa crítica. De fato, da perspectiva do Século XXI, o poder cativante do jornal é irrelevante quando comparado com a torrente audiovisual do WhatsApp, Twitter, Instagram, YouTube e Netflix. Não há nada mais subversivo para a vida de recolhimento que esse aparato do Vale do Silício. Novamente, assim como o conteúdo destruidor de almas, o próprio método de apresentação destrói a alma.
Os ingredientes do pensamento
Para aferir adequadamente os perigos aqui, devemos estar atentos à nossa configuração psicológica. Nesse tocante, as visões de Platão e Aristóteles são indispensáveis.
O homem é um animal racional. Ainda nesse sentido: há uma certa dualidade em sua natureza. Como ele é racional, sua mente lida com universais – objetos intangíveis do pensamento; como ele é um animal, seus sentidos ligam com singulares – impressões materiais do aqui e do agora. Independentemente disso, sua experiência cognitiva é profundamente unificada. Seu intelecto pode transcender os meros dados sensitivos e descobrir o sentido das coisas em si mesmas, e esse pensamento sempre está auxiliado pelos sentidos. Aqui reside a importância da imaginação.
A imaginação alimenta o pensamento. É nosso depósito de singulares, nossa plantação de divagações pré-articuladas. Uma imaginação ordenada e domada facilita as investigações da mente; uma imaginação frenética e sobrecarregada as inibe. Enquanto as experiências orgânicas, estáveis da vida deixam uma impressão benévola na imaginação, os enredamentos constantes e artificiais da mídia moderna a estrangulam, de modo a ficar submissa. Uma vez submetida, a imaginação – e, portanto, a mente – torna-se um território ocupado. Sugestões impróprias e inoportunas moldam a consciência e endurecem nossos pensamentos, inclinados a Deus por natureza, ao calor do momento presente. Assim, tornamo-nos prisioneiros do plano dos singulares.
Qual é “a fonte de todos os males e erros da vida intelectual hoje?” (Boylan) É a perda da habilidade de pensamento abstrato deliberado e prolongado. Isso não significa que não pensamos mais, mas que, devido a uma imaginação superestimulada, pensamos dentro de uma névoa de distrações. Nós somos, como TS Elliot dizia, “… distraídos da distração pela distração” (.. Burnt Norton”)
De quem é a culpa?
Seria isso uma consequência inevitável de viver na era da informação? Seria isso “a morte do espírito… o preço do progresso?” (Eric Voegelin, A Nova Ciência da Política) Não! Nós não somos míseras vítimas infelizes das circunstâncias. O que o Pe. Francis Remler pensava sobre o sofrimento em geral aplica-se às nossas moléstias modernas:
Não temos dúvida de que provavelmente a metade, senão mais, das misérias de nossos tempos desapareceriam rapidamente da face da terra se as pessoas, universalmente, fossem induzidas a cumprir fielmente apenas duas condições: que elas vivam de acordo com os ditames da razão reta e do bom senso, observando as leis fundamentais da saúde e do bem estar, e que elas façam um esforço sincero de moldar sua conduta moral de acordo com os Dez Mandamentos e as máximas do Evangelho (Why Must I Suffer?)
Verdade seja dita, nossas indiscrições passadas bastam para explicar nossa imaginação sabotada no presente. Nossas compulsões indesejadas realmente são inexplicáveis? Será que nossas ansiedades e temores sobre o futuro não têm alguma relação com a leitura desses sites que só anunciam desgraças? Será que nossa mania de buscar defeitos em nós mesmos não tem a ver com fofoca e o uso de redes sociais? Nossas fantasias com programas de TV sexualmente sugestivos? Será, ao menos, que nossa névoa mental não tem algo a ver com um fluxo ininterrupto de mensagens de textos?
O trauma autoinfligido decorrente de tratarmos como nossos superiores esses dispositivos dispensadores de distrações é óbvio. Recusar-nos a modificar nosso relacionamento com a mídia moderna é um patente abandono do dever, tanto natural quanto sobrenatural. Se não pudermos nos desconectar da matrix completamente, devemos ajustar nosso comportamento nela. Isso é obrigatório, um sine qua non, se queremos adotar a prática da leitura espiritual, ou alguma outra que gerará frutos. Pois a leitura espiritual, por si mesma, não pode abafar essa cacofonia toda. A imersão imoderada na mídia moderna
produz um desgosto, não apenas pelas coisas que realmente importam, mas também pelo estilo e modo nos quais essas coisas são apresentados nos livros espirituais. O resultado é que, quando alguém, por um esforço, força a si mesmo a abrir um livro espiritual, é necessário um esforço ainda maior para o manter aberto, e não fechá-lo com um bocejo (Boylan)
Sacudir-nos e sair dessa inércia – na realidade, um efeito colateral da intemperança – não é fácil. (Ah, se ao menos tivéssemos apetite por outra coisa!) Ainda assim, a leitura espiritual, aquela atividade que, no início, achamos tão desgostosa, contém, em si, o impulso de que necessitamos tão desesperadamente.
O antídoto
São Tomás de Aquino ensina que: “… o remédio mais eficiente contra a intemperança é não mergulhar na consideração dos singulares” (II-II, q. 142, a.3). Portanto, devemos “focar no oposto dos singulares – nomeadamente, os universais” (Kevin Vost, The One-Minute Aquinas). Em outras palavras, nós temos êxito em contrabalancear nossa imaginação complacente ao cultivar a vida da mente ao invés. Atingimos isso através da leitura espiritual, pois, de todas as ocupações,
aquelas de tipo intelectual são particularmente aptas a controlar a sensualidade. A razão é que a aplicação de uma faculdade enfraquece o exercício de outras faculdades, além do fato de que atos intelectuais removem das paixões sensuais o objeto que as alimenta (Jordan Aumann, Spiritual Theology)
A imaginação adora os singulares. Ela adora essas recompensas imediatas sensuais e, se desinibida, entrega-se ao nosso hábito de mergulhar cada vez mais nesses canais de diversão. Ainda assim, esses desvios nunca levam a um destino verdadeiramente feliz. Em contraste, embora os prazeres decorrentes da leitura espiritual sejam, sem sombra de dúvidas, menos emocionantes, eles trazem uma recompensa infinitamente maior. Pois eles alimentam as necessidades mais profundas da mente. A leitura espiritual nos leva ao reino dos universais. Ela fortalece ruminações do verdadeiro, do bom e do belo, independentemente de nossos apetites impacientes. Ela nos ajuda a transcender o importunante momento presente e a ter todas as experiências que apontam para a eternidade. Nós, católicos, lemos
para manter o sobrenatural em nossas mentes, para desenvolver e manter o senso de realidade das coisas que conhecemos pela fé, para manter nossa atenção na vida eterna de nossa alma ao invés de nossos interesses temporais, e, acima de tudo, para manter viva, em nós, a memória e presença de Nosso Senhor, para que possamos viver em união com Ele, falando com Ele, trabalhando com Ele, descansando com Ele, sempre rezando a Ele e nEle (Boylan)
O que acontecerá?
Como Dom Boylan deu a entender fortemente há mais de 70 anos atrás, em nossos tempos, a leitura espiritual é uma prática mais de preceito que de conselho. Mas cumprir esse preceito envolve mais do que ter um livro nas mãos.
Como era Seu costume quando pregava, Nosso Senhor vem a nós
Não em uma cidade ou em um fórum, mas em uma montanha e no deserto; instruindo-nos a … separar-nos dos tumultos da vida ordinária, e isso de modo especial quando vamos estudar a sabedoria” (São João Crisóstomo, Homilias sobre Mateus)
A leitura espiritual tanto requer quanto possibilita nossa separação do mundano, nossa rejeição ativa de “tudo que inibe as afeições da mente de tender integralmente a Deus” (II-II, q.184, a.2) Na mesma veia, São Paulo nos exorta: “Quanto ao mais, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é honesto, tudo o que é justo, tudo o que é santo, tudo o que é amável, tudo o que é de bom nome, qualquer virtude, qualquer coisa digna de louvor da disciplina, seja isto o objeto dos vossos pensamentos” (Filipenses, 4:8)
… Nenhum homem pode servir a dois senhores” (Mateus, 6:24) Então o que é mais provável que “guarde os vossos corações e os vossos espíritos em Jesus Cristo” (Filipenses, 4:7): o Novo Testamento, ou a Netflix? Porque não pode ser os dois.
Fonte: Permanencia