Liberdade Religiosa, Direito Natural à Imunidade?
Sem invocar a tolerância, o Concílio definiu um simples direito natural à imunidade: o direito de não ser perturbado no exercício do próprio culto, qualquer que seja.
A astúcia ou pelo menos o procedimento astuto, era evidente: por não poder definir um direito ao exercício de todo culto, pois este direito não existe para os falsos cultos, empenharam-se em formular um direito natural somente para a imunidade, que sirva aos adeptos de todos os cultos.
Assim todos os “grupos religiosos” (inocente qualificativo para esconder a Babel das religiões) gozariam naturalmente da imunidade a toda coação em seu “culto público à divindade suprema” (por Deus!, de que divindade se trata?) e também se beneficiariam do “direito de não ser impedidos de ensinar e manifestar sua fé (que fé?) publicamente, oralmente ou por escrito” (DH. 4).
É imaginável maior confusão? Todos os adeptos de todas as religiões, tanto da verdadeira como das falsas, absolutamente reduzidos ao mesmo pé de igualdade, gozariam de um mesmo direito natural, sob o pretexto de que se trata somente de um “direito à imunidade”. É por acaso concebível? É mais do que evidente que os adeptos das falsas religiões, somente por este título, não gozam de nenhum direito natural à imunidade. Permitam-me ilustrar esta verdade com um exemplo concreto: se vocês quisessem impedir a oração pública de um grupo muçulmano na rua, ou perturbar seu culto em uma mesquita, pecariam talvez contra a caridade e seguramente contra a prudência, mas não fariam a estes crentes nenhuma injustiça. Não se sentiriam feridos em nenhum dos bens a que têm direito, nem em nenhum de seus direitos a estes bens211; em nenhum de seus bens, porque seu verdadeiro bem não é exercer sem coação seu culto falso, mas poder exercer um dia o verdadeiro; em nenhum de seus direitos, pois eles têm precisamente o direito de exercer o “culto de Deus em particular e em público”212 e a não ser nisso impedidos, mas o culto de Alá não é o culto de Deus! Realmente Deus revelou, Ele mesmo, o culto com que quer ser honrado exclusivamente, que é o da Religião católica213.
Por conseguinte, se na justiça natural não se prejudica de nenhum modo a estes crentes ao impedir ou perturbar seu culto, é porque não têm nenhum direito natural de não serem perturbados em seu exercício.
Se me objetarem dizendo que sou “negativo”, que não sei considerar os valores positivos dos falsos cultos, declaro que mais acima já respondi a esta objeção falando da “procura”214. Poderão me retrucar dizendo que a orientação fundamental das almas dos adeptos dos falsos cultos permanece reta e que deve ser respeitada e portanto deve ser respeitado o culto em que ela está inserida. Não poderia opor-me ao culto sem prejudicar estas almas, sem romper sua orientação para Deus. Assim por causa de um erro religioso, a alma em questão não teria o direito de exercer seu culto. Mas como de qualquer maneira ela estaria enxertada em Deus, teria direito à imunidade no exercício de seu culto. Todo homem teria assim um direito natural à imunidade civil em matéria religiosa.
Admitamos por um momento esta chamada orientação naturalmente reta para Deus, de toda alma no exercício de seu culto. Não é absolutamente evidente que o dever de respeitar seu culto, seja dever de justiça natural. Falando com propriedade me parece tratar-se de um puro dever de caridade. Sendo assim, este dever de caridade não dá aos adeptos dos falsos cultos nenhum direito natural à imunidade, mas sugere ao Poder civil o dar-lhes um direito civil à imunidade. No entanto, precisamente o Concílio proclama para todos os homens, sem prová-lo, um direito natural à imunidade civil. Pelo contrário, me parece que o exercício dos falsos cultos não pode ir além do estatuto de um simples direito civil à imunidade, o que é bem diferente.
Distingamos bem, por um lado a virtude da justiça que ao determinar, a uns seus deveres, dá aos outros o direito correspondente, ou seja a faculdade de exigir; e de outra parte, a virtude da caridade, que é verdade, impõe deveres a uns, sem atribuir por isto nenhum direito aos outros.
Uma Inclinação Natural de todo Homem para Deus?
O Concílio (DH. 2-3) além da dignidade da pessoa humana, invoca sua procura natural do divino: todo homem no exercício de sua religião, estaria de fato orientado para o verdadeiro Deus, “enxertando” em Deus, e portanto teria um direito natural de ser respeitado no exercício de seu culto. Para a teologia católica, se um budista queima varinhas de incenso diante do ídolo de Buda, comete um ato de idolatria; entretanto, à luz da nova doutrina descoberta pelo Vaticano II, este fato expressa o “esforço” supremo de um homem para procurar a Deus215. Por conseguinte este ato religioso teria direito de ser respeitado, e este homem teria o direito de não ser impedido de realizá-lo, ele teria direito à liberdade religiosa.
Inicialmente há uma contradição em afirmar que todos os homens dedicados aos falsos cultos, estão naturalmente orientados para Deus. Um culto errado não pode mais do que separar as almas de Deus, já que as compromete em um caminho que não as conduz para Deus.
Pode-se admitir que em religiões falsas, certas almas possam estar orientadas para Deus, mas é porque elas não se apegam aos erros de sua religião. Não se orientam para Deus graças à sua religião, mas apesar dela. Por conseguinte o respeito que se deveria ter por estas almas, não implica em que se deva respeito à sua religião. De todos os modos, a identidade e o número das almas que Deus se digna chamar para Ele por sua graça, permanece oculto e ignorado. Certamente não são muitas. Um sacerdote originário de um país de religião mista, me referia um dia sua experiência a respeito daqueles que vivem nas seitas heréticas; ele me contava sua surpresa ao comprovar como estas pessoas estão endurecidas em seus erros e pouco dispostas a examinar as observações que pode fazer-lhes um católico. Como são muito dóceis ao Espírito da Verdade…
A identidade das almas verdadeiramente orientadas para Deus nas outras religiões, fica no segredo de Deus e escapa ao julgamento humano. Por isso é impossível basear sobre ela algum direito natural ou civil. Seria fazer a ordem jurídica das sociedades se basear em suposições fortuitas e arbitrárias. Finalmente seria basear a ordem social sobre a subjetividade de cada um e construir a casa sobre areia…
Acrescentarei que estive em suficiente contato com as religiões da África (Animismo, Islamismo) e o mesmo se pode dizer da religião da Índia (Hinduismo) para poder afirmar que em seus adeptos se constatam as lamentáveis conseqüências do pecado original, e particularmente o obscurantismo da inteligência e o temos supersticioso. Sustentar, como faz o Vaticano II, a existência de uma orientação naturalmente reta para Deus em todos os homens, é um irrealismo total e uma outra heresia naturalista. Deus nos livre dos erros naturalistas e subjetivistas! São marca inequívoca do liberalismo que inspira a liberdade religiosa do Vaticano II. Eles só podem levar ao caos social e à Babel das religiões.
A Mansidão Evangélica
Assegura o Concílio que a revelação divina “mostra o grande respeito que Cristo teve pela liberdade do homem, no cumprimento de seu dever de crer na palavra de Deus” (DH. 9); Jesus manso e humilde de coração, manda deixar crescer o Jesus manso e humildade de coração, manda deixar crescer o joio até a colheita, não quebra a cana rachada nem apaga a chama bruxuleante (DH. 11, cf. Mt 13, 29; Is 42, 3). Eis a resposta: quando o Senhor manda deixar crescer o joio, não lhe concede o direito de não ser arrancado, mas aconselha aquilo aos que colhem, “para evitar que sejam arrancados os grãos bons”. Conselho de prudência: às vezes é preferível não escandalizar os fiéis com o espetáculo da repreensão dos infiéis; algumas vezes mais vale evitar a guerra civil, que despertaria a intolerância. Igualmente, se Jesus não quebra a cana rachada e faz disso uma regra pastoral para seus apóstolos, é por caridade para com os que erram, para não separá-los mais da verdade, o que poderia acontecer se usassem os meios coercitivos.
É claro, às vezes existe um dever de prudência e de caridade por parte da Igreja e dos Estados católicos para com os adeptos dos falsos cultos, mas este dever não confere ao outro nenhum direito. Por não distinguir a virtude da justiça (a que dá os direitos) da prudência e da caridade (que por si, só dá deveres), o Vaticano II mergulha no erro. Fazer da caridade uma justiça é perverter a ordem social e política da cidade.
Mesmo quando se considerar que Nosso Senhor dá, apesar de tudo, ao joio o direito “de não ser arrancado” este direito seria totalmente relativo às razões particulares que o motivaram, não seria nunca um direito natural e inviolável. Diz Santo Agostinho: “Ali onde se deve temer arrancar o grão bom ao mesmo tempo que o ruim, que a severidade da disciplina não durma”216, que não se tolere o exercício dos falsos cultos. E São João Crisóstomo, também não partidário das supressões dos dissidentes, não exclui a supressão de seus cultos:
“Quem sabe, diz ele, se algum joio não se transformará em boa semente? Se o arrancais agora, prejudicareis a próxima colheita, arrancando os que poderiam mudar e chegar a ser melhores. Ele (o Senhor) certamente não proíbe reprimir os hereges, fechar suas bocas, negar-lhes a liberdade de falar, dispersar suas assembléias, e repudiar seus juramentos; o que Ele proíbo é derramar seu sangue e matá-los”217. A autoridade destes Padres da Igreja me parece suficiente para refutar a interpretação abusiva que faz o Concílio da mansidão evangélica. Sem dúvida Nosso Senhor não pregou medidas militares, o que não é motivo para transformá-lo em um apóstolo da tolerância liberal.
A Liberdade do Ato de Fé
Por último invocam a liberdade do ato de Fé (DH. 10). Aí há um duplo argumento. Eis o primeiro: por motivos religiosos, impor limites ao exercício de um culto dissidente, seria por via indireta forçar seus adeptos a abraçar a Fé católica. Realmente o ato de Fé deve estar livre de toda coação: “Quem ninguém seja coagido a abraçar a Fé católica contra a sua vontade” (Direito Canônico de 1917, can. 1351).
Baseado na sã teologia moral, eu respondo que tal coação é legítima conforme as regras do “voluntário indireto”. Com efeito, ela tem como objeto direto limitar o culto dissidente, o que é um bem218, e somente por efeito indireto e remoto o incitar certos não católicos a se converter, mais por temor ou conveniência social do que por convicção, o que não é o ideal, mas que pode ser permitido por razão grave.
O segundo argumento é básico e exige maior estudo. Ele se apóia na concepção liberal do ato de Fé. Segundo a doutrina católica219, a Fé é uma anuência, uma submissão da inteligência à autoridade de Deus que revela, sob o impulso da vontade livre movida pela graça. Por um lado o ato de Fé deve ser livre, ou seja, deve escapar à toda coação exterior que tivesse por objeto ou por efeito direto obtê-lo contra a vontade da pessoa220. Por outros lado, sendo o ato de Fé uma submissão à autoridade divina, nenhum poder ou terceira pessoa tem o direito de se opor à influência da Verdade primeira, que tem o direito inalienável de iluminar a inteligência do fiel. Disto se segue que o fiel tem direito à liberdade religiosa; ninguém tem o direito de o coagir, e ninguém tem o direito de impedi-lo de abraçar a Revelação divina ou de realizar com prudência os atos exteriores de culto. Entretanto os liberais, esquecidos do caráter objetivo, completamente divino e sobrenatural do ato de Fé divina, e os modernistas que correm no seu rastro, fazem da Fé uma expressão da convicção subjetiva do sujeito221 no final de sua procura pessoal222, ao tentar responder às grandes interrogações que lhe apresenta o universo223. A Igreja que propõe o fato da Revelação divina exterior, dá lugar à invenção criadora do sujeito, ou pelo menos o sujeito deve se esforçar para ir de encontro à fonte…224. Sendo assim, então a Fé divina é rebaixada ao nível das convicções religiosas dos não cristãos, que pensam ter uma fé divina, quando não têm mais do que uma persuasão humana, pois o motivo para aderir à sua crença não é a autoridade divina, mas o livre julgamento de seu espírito. Está aí sua inconseqüência fundamental: os liberais pretendem manter para este ato de persuasão completamente humano, os caracteres de inviolabilidade e isenção de toda coação que não pertencem senão ao ato de Fé divina. Eles asseguram que pelos atos de suas convicções religiosas, os adeptos de outras religiões se põem em relação com Deus, e que a partir daí esta relação deve ficar livre de toda coação que puder afetá-la. Eles dizem: “Qualquer fé religiosa é respeitável e intocável”.
Mas estes últimos argumentos são visivelmente falsos, pois por suas convicções religiosas os adeptos das outras religiões não fazem mais do que seguir invenções do seu próprio espírito, produções humanas que não têm em si nada de divino, nem em seu princípio, nem em seu objeto, nem no motivo pelo qual aderiram a elas.
Isto não quer dizer que não há nada de verdadeiro em suas convicções, ou que não possam conservar sinais da Revelação primitiva ou posterior. Mas a presença destas “semina Verbi”, não basta por si para fazer de suas convicções um ato de Fé divina. Principalmente porque se Deus quisesse suscitar este ato sobrenatural por sua Graça, na maioria dos casos se veria impedido pela presença de inúmeros erros e superstições aos quais estes homens continuam ligados.
Frente ao subjetivismo e ao naturalismo dos liberais, devemos reafirmar hoje o caráter objetivo e sobrenatural da Fé divina que é a Fé católica e cristã. Somente ela tem o direito absoluto e inviolável ao respeito e à liberdade religiosa.
Do Liberalismo à Apostasia – Mons. Marcel Lefebvre
Acompanhe a publicação dos capítulos aqui, ou compre por aqui ou aqui
211 Pio XII faz esta distinção, a respeito das extrações de órgãos realizadas em corpos de defuntos. Cf. Discurso aos especialistas em cirurgia ocular, 14 de maio de 1956.
212 Pio XII, Radiomensagem de Natal, 24 de dezembro de 1941. PIN. 804.
213 Esta explicação, por breve que seja, evita usar termos complicados de direito objetivo e subjetivo, de direito concreto e abstrato
214 Cf. cap. XXIV.
215 João Paulo II, discurso na audiência geral de 22 de outubro de 1986
216 “Contra Epis. Parmeniani”, 3, 2. Citado por São Tomás “Catena Áurea”, in Matthaeum XIII, 29-30.
217 Homilia 46, sobre São Mateus, citado por Santo Tomás, loc. Cit. A questão da morte dos hereges, não vem ao caso.
218 É um bem para a Religião católica, até para o bem comum temporal, quando este repousa sobre a unanimidade religiosa dos cidadãos.
219 Vaticano I Const. Dog. “Dei Filius” Dz nº 1789, nº 1810; Santo Tomás, II-II, 2, 9 e 4, 2.
220 Cf. explicação anterior.
221 Cf. São Pio X, “Pascendi”, nº 8, Dz. Nº 2075.
222 Cf. Vaticano II, “Dignitatis Humanae”, nº 3.
223 Cf. Vaticano II, “Nostra Aetate” nº 2.
224 O P. Pierre Reginald Cren O. P. opõe à noção da Fé, sua concepção personalista da revelação: “La Revélation: dialogue entre la liberte divine et la liberte humaine”, seu artigo consagrado à liberdade do ato de Fé (Lumiére et Vie, nº 69, La Liberte Religieuse, pág. 39)