A LIBERDADE RELIGIOSA DO VATICANO II – PARTE 3

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Vaticano II e a Cidade Católica 

Procuremos encerrar o assunto. A Declaração conciliar sobre liberdade religiosa se mostra desde logo contrário ao Magistério constante da Igreja225, e também não se situa na direção dos direitos definidos pelos últimos Papas226. Pelo que vimos, ela também não se apóia em nenhum fundamento revelado. Por último, é importanteexaminar se ela se acha de acordo com o sprincípios católicos que regem as relações da cidade temporal com a religião. 

Limites da Liberdade Religiosa 

Para começar, o Vaticano II afirma que a liberdade religiosa deve-se restringir aos “justos limites” (DH. I), “de acordo com as regras jurídicas (…) conformes à ordem moral objetiva, que são requeridas para salvaguardar eficazmente os direitos de todos (…) a autêntica paz pública (…) assim como a proteção devida à moralidade pública” (DH. 7). Tudo isto é muito razoável, mas deixa de lado a questão essencial que é a seguinte: o Estado não tem o dever, e por conseguinte o direito de salvaguardar a unidade religiosa das pessoas na Religião verdadeira, e de proteger as almas católicas contra o escândalo e a propagação do erro religioso, e somente por isso limitar o exercício dos cultos falsos e inclusive proibi-los, se necessário?

Tal é a doutrina exposta com veemência pelo Papa Pio IX na “Quanta Cura”, onde o pontífice condena a opinião daqueles que, contrariamente à doutrina da Escritura, da Igreja e dos Santos  Padres, não temem afirmar que “o melhor governo é aquele em que não se reconhece ao poder a função de reprimir por sanções, aos violadores da Religião católica, salvo se o exigir a paz pública (PIN. 39, Dz. 1690). O sentido óbvio da expressão “violadores da Religião católica”, é: aqueles que exercem publicamente um culto diferente  do católico, ou que não observam publicamente as leis da Igreja. Pio IX ensina portanto, que o Estado governa melhor quando reconhece em si mesmo o ofício de reprimir o exercício público de cultos falsos,  somente  pelo  motivo  de  serem  falsos  e  não  apenas  para salvaguardar a paz pública; somente pelo motivo de que contrariam  a ordem cristã e católica da Cidade, e não porque a paz e a moralidade públicas possam ser afetadas.

Por isso deve-se dizer que os “limites” fixados pelo Concílio à liberdade religiosa são como poeira nos olhos que oculta o seu defeito radical, que é o de não levar em conta a diferença entre a verdade e o erro. Contra toda justiça, pretende-se atribuir o mesmo direito à verdadeira religião e às falsas, e artificialmente procura-se limitar os prejuízos por meio de barreiras que estão longe de satisfazer às exigências da doutrina católica. De bom grado compararia “os limites” da liberdade religiosa aos muros de segurança das auto-estradas, que servem para conter os veículos quando o motorista perdeu o controle deles. Seria preferível entretanto, certificar-se antes se estão dispostos a respeitar os regulamentos de trânsito. 

Falsificação do Bem Comum Temporal 

Vejamos agora os vícios fundamentais da liberdade religiosa. A argumentação conciliar se apóia em falso conceito personalista do bem comum, reduzido à soma dos interesses particulares, ou como se diz, ao respeito das pessoas em detrimento da obra comum que se deve cumprir para maior glória de Deus e o bem de todos. Já João XXIII em “Pacem in Terris”, tende a adotar este ponto de vista parcial e por conseguinte, falso. Ele escreve: “Para o pensamento contemporâneo, o bem comum reside sobretudo na salvaguarda dos direitos e dos deveres da pessoa humana”227.

Certamente Pio XII, enfrentando os totalitarismos contemporâneos, lhes opôs legitimamente os direitos fundamentais da pessoa humana228, o que não significa que a doutrina católica se limite a isto. Ao forçar a verdade em um sentido paternalista, acaba-se entrando no jogo do individualismo furioso que os liberais lograram introduzir na Igreja. Como destacaram Charles de Koninck (“De la Primauté du bien Commum contre les Personnalistes”) e Jean Madiran (“Le Príncipe de Totalité”), não se luta contra o totalitarismo exaltando o indivíduo, mas recordando que o  verdadeiro bem comum temporal está ordenado positivamente, mesmo se indiretamente, ao bem da Cidade de Deus, na terra e no Céu. Não nos façamos cúmplices dos personalistas em sua secularização do direito!

Concretamente e em outras palavras, o Estado (não falo dos países não cristãos) antes de se preocupar em saber se as pessoas dos muçulmanos, dos Krishna, e dos Moon são molestados demais pela lei, deve velar e salvaguardar a alma cristã do país, que é o elemento essencial do bem comum de uma nação ainda cristã. Questão de detalhe, dir-se-á. Não! Questão fundamental: é ou não é uma doutrina católica a concepção global da cidade católica? Ruína do Direito Público da Igreja 

Eu diria que o pior da liberdade religiosa do Vaticano II são as suas conseqüências: a ruína do direito público da Igreja, a morte do Reinado social de Nosso Senhor Jesus Cristo, e por último o indiferentismo religioso dos indivíduos. Segundo o Concílio, a Igreja pode ainda gozar de um reconhecimento especial por parte do Estado, mas ela não tem um direito natural e primordial a este reconhecimento, mesmo em uma nação de maioria católica; acabaram com o princípio do estado confessional católico, que fez a felicidade das nações que haviam permanecido católicas. A principal aplicação do Concílio foi a supressão dos Estados católicos, sua laicização em virtude dos princípios do Vaticano II, inclusive a pedido do próprio Vaticano. Todas as nações católicas (Espanha, Colômbia, etc.) foram traídas pela própria Santa Sé, como aplicação do Concílio. A separação da Igreja e do Estado foi proclamada como o “regime ideal” pelo Cardeal Casaroli e por João Paulo II, quando se fez a reforma da Concordata Italiana.

Por princípio, a Igreja se encontra reduzida ao direito comum reconhecido pelo Estado a todas as religiões; por uma impiedade inominável, se encontra em pé de igualdade com a heresia, a perfídia e a idolatria. Assim seu direito público é radicalmente aniquilado.

Na doutrina e na prática, não fica nada do que havia sido o regime das relações públicas da sociedade civil com a Igreja e as outras religiões,   e   que   se   pode   resumir   com   as   seguintes palavras: reconhecimento   da   verdadeira   Religião   e   eventual   tolerância, limitada, das outras religiões. Assim antes do Concílio o “Foro    dos Espanhóis”, carta dos direitos e deveres do cidadão espanhol, previa sabiamente:

“O exercício e a prática da Religião católica, que é a Religião do Estado espanhol, gozarão de proteção oficial. Ninguém será incomodado nem por crença, nem pelo exercício privado de  seu culto. Não serão permitidas nem cerimônias nem manifestações externas diferentes das da Religião do Estado”229.

Esta intolerância aos cultos dissidentes está  perfeitamente justificada: por um lado ela pode ser imposta ao Estado em nome de sua “Cura Religiones”, de seu dever de proteger a Igreja e a Fé de seus membros; por outro lado, a unanimidade religiosa dos cidadãos na verdadeira Fé, é um bem precioso e insubstituível que é preciso guardar a todo custo, ainda que apenas pelo próprio bem temporal de uma Nação católica. Isto é o que expressava o esquema sobre as relações entre a Igreja e o Estado redigido pelo Cardeal Ottaviani. Este documento expunha simplesmente a doutrina católica sobre a questão, doutrina aplicável integralmente a uma nação católica:

“Assim, da mesma maneira que o poder civil pensa ter o direito de proteger a moralidade pública, assim também com o fim de proteger os cidadãos contra as seduções do erro, de guardar a Cidade na unidade da Fé, que é o bem supremo e fonte de numerosos benefícios mesmo temporais, o poder civil pode por si mesmo regular e moderar as manifestações públicas  dos  outros  cultos  e  defender  os  cidadãos  contra a difusão das falsas doutrinas que, a juízo da Igreja, põem em perigo sua eterna salvação”230.

As Confusões Mantidas Revelam a Apostasia Latente 

Como vimos, o “Foro” dos espanhóis tolera o exercício privado de falsos cultos, mas não tolera suas manifestações públicas. Esta é uma classificação clássica que “Dignitatis Humanae” se negou a aplicar. O Concílio definiu a liberdade religiosa como um direito da pessoa em matéria religiosa “em particular ou em público, só ou associado” (DH. 2). O documento conciliar justificava esta falta de qualquer distinção: “com efeito, a natureza social do homem requer que ele expresse exteriormente os atos internos de religião, que em matéria religiosa tenha intercâmbio com outros homens, que professe sua religião sob uma forma comunitária” (DH. 3).

Sem dúvida alguma, a religião é um conjunto de atos da alma, não  só interiores (devoção, oração) como também exteriores (adoração, sacrifício) e não somente privados (oração familiar) mas também públicos (ofícios religiosos nos edifícios de culto, digamos nas igrejas, procissões, peregrinações, etc.). Mas o problema não está aí, a questão é saber de que religião se trata: se é a verdadeira, ou se é uma falsa. Quanto à verdadeira Religião, ela tem o direito de exercer todos os atos citados acima, “com uma prudente liberdade”, como diz Leão XIII231, ou seja dentro dos limites da ordem pública, não de maneira intempestiva. Mas os atos dos cultos falsos, devem ser diferenciados uns  dos outros de maneira cuidadosa. Os atos puramente internos escapam por sua natureza a todo poder humano232. Entretanto os atos privados externos às vezes podem ser submetidos à regulamentação de um Estado  católico,  se  perturbam  a  ordem  pública,  por  exemplo,  as reuniões de oração de não católicos em residências particulares. Finalmente os atos de culto público ficam sob o jugo das leis que visam eventualmente, proibir toda publicidade dos falsos cultos. Mas como poderia o Concílio concordar em fazer esta distinção, já que se negava a distinguir a verdadeira Religião das falsas, o Estado católico do Estado não católico, do Estado comunista, do Estado pluralista, etc? Pelo contrário, o esquema do Cardeal Ottaviani não deixava de fazer todas estas distinções, absolutamente indispensáveis. Mas precisamente, e aí se vê a futilidade e a impiedade do desígnio conciliar, Vaticano II quis definir um direito que conviesse a todos os casos, independentemente da verdade. É o que haviam pedido os maçons; havia aí uma apostasia latente da Verdade que é Nosso Senhor Jesus Cristo.

Morte do Reinado Social de Nosso Senhor Jesus Cristo

 Se o Estado já não reconhece ter um dever especial a respeito da verdadeira Religião do verdadeiro Deus, o bem comum da sociedade civil já não está ordenado para a cidade celestial dos bem- aventurados, e a cidade de Deus sobre a terra, quer dizer a Igreja, se encontra privada de sua influência benéfica sobre toda a vida pública. Queiram ou não, a vida social se organiza fora da verdade  e da lei divina. A sociedade se torna atéia. É a morte do Reinado  Social de Nosso Senhor Jesus Cristo.

É por certo o que fez o Vaticano II, quando Mons. de Smedt, relator do esquema de liberdade religiosa, afirmou três vezes: “O Estado  não é uma autoridade competente para fazer o julgamento da  verdade ou falsidade em matéria religiosa”233. Que declaração monstruosa a de afirmar que Nosso Senhor não tem mais o direito de reinar, de reinar sozinho, de impregnar todas as leis civis com a lei do Evangelho! Quantas vezes Pio XII condenou semelhante positivismo jurídico234, com pretensão de que se deve separar a ordem jurídica da ordem moral porque não se poderia expressar em termos jurídicos a distinção entre a verdadeira e as falsas religiões. Vamos reler o “Foro dos espanhóis”!

Mais ainda, para cúmulo da impiedade, o Concílio quis que o Estado liberado de seus deveres para com Deus, passe a ser de agora em diante a garantia de que nenhuma religião “se veja impedida de manifestar livremente a eficácia de sua doutrina para organizar a sociedade e vivificar toda atividade humana” (DH. 4). Assim Vaticano II, convida a Nosso Senhor para vir organizar e vivificar a sociedade juntamente com Lutero, Maomé e Buda. É o que João Paulo II quis realizar em Assis, projeto ímpio e blasfemo. Em outros tempos, a união entre a igreja e o Estado católico teve como fruto a Cidade católica, realização perfeita do Reino Social de Nosso Senhor Jesus Cristo. Hoje a igreja do Vaticano II unida ao Estado que quer que seja ateu, dá à luz, desta união adúltera, a sociedade pluralista, a babel das religiões, a Cidade indiferentista  que é o desejo da Maçonaria. 

O Reinado do Indiferentismo Religioso

Dizem: “A cada qual sua religião!” ou então “A Religião católica e boa para os católicos, mas a muçulmana é boa para os muçulmanos!”. Esta é a divisa dos cidadãos da Cidade indiferentista. Como querem que pensem de outro modo quando a igreja do Vaticano II lhes ensina que as outras religiões “não estão  desprovidas de significação e de valor no mistério da salvação”235. Como querem que pensem de outro modo a respeito das outras religiões, quando o Estado concede a todas a mesma liberdade? A liberdade religiosa ocasiona fatalmente o indiferentismo dos indivíduos. Pio IX já condenava no “Syllabus” a seguinte proposição:

“É falso declarar que a liberdade civil de todos os cultos e o poder dado a todos de manifestar aberta e publicamente todos os pensamentos, lancem mais facilmente os povos na  corrupção dos costumes e do espírito e propaguem a peste do indiferentismo”236.

É o que nós vemos: depois da Declaração sobre a liberdade religiosa, a maioria dos católicos está persuadida de que “os homens podem encontrar o caminho da salvação eterna e obtê- la no culto de qualquer religião”237. Também se cumpriu o plano dos maçons: lograram, por um concílio da Igreja católica que ela “assumisse o grande erro do tempo atual, que consiste em (…) por em pé de igualdade todas as formas religiosas”238.

Será que todos os Padres conciliares que deram seu voto a “Dignitatis Humanae” e que proclamaram com Paulo VI a liberdade religiosa, perceberam que de fato tiraram o cetro de Nosso Senhor Jesus Cristo, arrancando-lhe a coroa de sua Realeza Social? Deram- se conta de que, concretamente, haviam tirado do trono a Nosso Senhor Jesus Cristo, do Trono de sua Divindade? Terão compreendido que fazendo-se eco das nações apóstatas, faziam s  Op. Cit. Pág. 15.ubir até Seu Trono estas execráveis blasfêmias: “Não queremos que Ele reine sobre nós” (Lc 19, 14); “Não temos outro rei, senão César!” (Jo 19, 15). Mas Ele, rindo do burburinho confuso de vozes que subia desta assembléia de insensatos, retira- lhes Seu Espírito.

Do Liberalismo à Apostasia – Mons. Marcel Lefebvre

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225 Capítulo XXVII, primeira parte.

226 Capítulo XXVII, segunda parte.

227 11 de abril de 1963, nº 61 da Encíclica.

228 Cf. especialmente mensagem radiofônica de Natal 1942

229 Citado pelo Cardeal Ottaviani, “L’Eglise et la Cite”. Imp. Poliglota Vaticano, 1963, pág. 275.

230 Ver o texto integral do documento no Anexo.

231 “Libertas”, PIN. 207.

232 Excetuando o poder da Igreja sobre seus súditos, que não é puramente humano

233 “Relatio de reemendatione schematis emendati, 28 de maio de 1965,  documento 4 SC.

234 Pio XII, Carta de 19 de outubro de 1945 para a XIX Semana Social dos católicos italianos, AAS, 37, 274; Alocução “Com vivo compiacimento” de 13 de novembro de 1945 ao Tribunal da Rota, PIN. 1064, 1072.

235 Dec. Sobre ecumenismo, “Unitatis Redintegratio”, nº 3.

236 Proposição 79.

237 Syllabus, proposição condenada nº 17.

238 Leão XIII, Encíclica “Humanum Genus”, sobre os maçons, 20