Uma doença do Espírito
Mais do que urna confusão, o catolicismo liberal é uma doença do espírito[112]. Simplesmente o espírito não consegue descansar senão na verdade. Basta que ele se atreva a afirmar algo para que se apresente a ele o contrário, que ele se sente obrigado a considerar também. O Papa Paulo VI é o protótipo deste espírito dividido, de um ser de dupla personalidade. Inclusive podia-se fisicamente ler isto em sua face, em constante vai e vem entre as contradições, e animado de um movimento pendular que oscilava regularmente entre a novidade e a tradição. Dirão alguns: Esquizofrenia intelectual?
Creio que o P. Clérissac viu a natureza desta doença em maior profundidade. É uma “falta de integridade de espírito”, de um espírito que não tem “suficiente confiança na verdade”[113]:
“Esta falta de integridade de espírito nas épocas de liberalismo, se explica no lado psicológico por dois aspectos: os liberais são receptivos e receosos. Receptivos porque assumem com muita facilidade os estados de espírito de seus contemporâneos; receosos porque, por medo de contrariar estes diversos estados de espírito, se encontram em constante inquietude apologética; parecem sofrer eles mesmos as dúvidas que combatem, não têm suficiente confiança na verdade, querem justificar em demasia, demonstrar em demasia, adaptar demais ou mesmo desculpar em demasia.”
Colocar-se em harmonia com o mundo
Desculpar em demasia, que expressão oportuna! Querem desculpar todo o passado da Igreja: as cruzadas, a inquisição, etc.; porém quanto a justificar e demonstrar, eles só o fazem timidamente, principalmente quando se trata dos direitos de Jesus Cristo; mas adaptar, a isso certamente eles se entregam: eis seu princípio:
“Partem de um princípio prático que consideram inegável: que a Igreja não seria ouvida no ambiente concreto onde Ela deve cumprir sua missão divina, se Ela não se harmonizar com ele.”[114]
Posteriormente os modernistas quererão adaptar a prédica do Evangelho à falsa ciência crítica e à falsa filosofia imanentista da época, “esforçando-se em tornar a verdade cristã acessível aos espíritos treinados para negar o sobrenatural.”[115] Segundo eles, para converter os que não crêem no sobrenatural, é necessário fazer abstração da Revelação de Nosso Senhor, da Graça, dos milagres… Se você tem de tratar com ateus, não fale de Deus, coloque-se no nível dele, sintonize-se com ele, entre no seu sistema! Por esse caminho você será em breve marxista-cristão: eles é que o terão convertido!
Este foi também o pensamento da Missão de França a respeito do apostolado entre os operários, e que ainda sustentam numerosos sacerdotes: se queremos convertê-los devemos trabalhar com os operários, compartilhar suas preocupações, conhecer suas reivindicações, não nos mostrar como sacerdotes; assim chegaremos a ser como o fermento na massa… ― e por aí foram os padres se convertendo e virando agitadores sindicais ― “Sim, nos dirão, compreenda: era necessário assimilar completamente o ambiente, não chocar, não dar a impressão de que se queria evangelizar ou impor uma verdade.” ― Que erro! Estes indivíduos que não crêem, têm sede de verdade, têm fome do pão da verdade que estes sacerdotes extraviados não querem repartir com eles.
É também este falso pensamento que foi sugerido aos missionários: inicialmente não falem de Jesus Cristo a estes pobres indígenas que morrem de fome! Dai primeiro de comer, depois ferramentas, depois ensinai a trabalhar, o alfabeto, a higiene… e por que não? o controle da natalidade! Mas não falem de Deus, pois eles têm o estômago vazio! Eu porém, diria: precisamente porque são pobres e desprovidos de bens terrenos eles são extraordinariamente acessíveis ao Reino dos Céus, para estes “procurai primeiro o Reino dos Céus”, procurai ao Deus que os ama e sofreu por eles, para que eles participem por suas misérias, de Seu sofrimento Redentor. Se ao contrário, vocês pretendem se pôr em seu nível, fa-los-ão gritar contra a injustiça e acender neles o ódio. Mas se levam Deus a eles. os levantarão, os elevarão, eles serão verdadeiramente enriquecidos.
Reconciliar-se com os Princípios de 1789
Em política, os católicos liberais vêem verdades cristãs nos princípios da Revolução de 1789, sem dúvida um pouco desajustados; porém uma vez purificados, os ideais modernos são plenamente assimiláveis pela Igreja: liberdade, igualdade, fraternidade, democracia (ideológica) e pluralismo. Erro que Pio IX condena no Syllabus: “O Pontífice Romano pode e deve se reconciliar e transigir com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna.” (prop. conden. N° 80, Dz. 1780)
“O que vocês querem? declara o católico liberal, não se pode ir sempre contra as idéias de seu tempo, remar continuamente contra a corrente, parecer retrógrado ou reacionário”. Já não se quer mais o antagonismo entre a Igreja e o espírito liberal laico, sem Deus. O que se quer é reconciliar o irreconciliável: a Igreja e a Revolução. Nosso Senhor Jesus Cristo e o príncipe deste mundo. Não se pode imaginar empreendimento mais ímpio e mais diluente do espírito cristão, do bom combate pela fé, do espírito de luta, ou seja, do zelo em conquistar o mundo para Jesus Cristo.
Da pusilanimidade à apostasia
Em todo este liberalismo que se diz católico, há uma falta de fé, ou melhor, urna falta de espírito de fé, que é um espírito de entrega total: não se trata mais de submeter o mundo todo a Jesus Cristo, restaurá-lo em tudo, “recapitular tudo em Cristo” como diz São Paulo (Ef 1,20). Já não há quem se atreva a reclamar para a Igreja a totalidade de seus direitos, ficam resignados sem lutar, acomodam-se muito bem, inclusive no laicismo. E por fim, chegam a aprová-lo. Dom Delatte e o Cardeal Billot caracterizam bem esta tendência à apostasia:
“A partir de então, uma linha dividiria os católicos (com Falloux e Montalembert do lado liberal, na França no século XIX) em dois grupos: os que tinham como primeira preocupação a liberdade de ação da Igreja e manutenção de seus direitos em uma sociedade cristã; e os que primeiro se esforçavam por determinar o que a sociedade moderna podia suportar do cristianismo, para logo convidar a Igreja a se reduzir a este limite.”[116]
Diz Billot que todo o catolicismo liberal está contido em um equívoco: “a confusão entre tolerância e aprovação”:
“O problema entre os liberais e nós (…) não está em saber se, dada a malícia do século, deve-se suportar com paciência o que escapa ao nosso poder, e ao mesmo tempo trabalhar para evitar males maiores e realizar todo o bem que ainda seja possível; o problema é precisamente se convém aprovar (…) o novo estado das coisas, cantar os princípios que são o fundamento desta ordem de coisas, promovê-los pela palavra, pela doutrina, pelas obras, como fazem os católicos chamados liberais” [117].
Deste modo Montalembert com seu slogan “a Igreja livre no Estado livre”[118] será o campeão da separação entre a Igreja e o Estado, recusando admitir que esta mútua liberdade levaria necessariamente à situação de uma Igreja submetida a um Estado expoliador. Do mesmo modo um De Broglie escreverá uma história liberal da Igreja, onde os excessos dos Césares cristãos ultrapassam o benefício das constituições cristãs. Assim também um Jacques Piou se fará o arauto da adesão dos católicos franceses à república: não tanto ao regime republicano, mas à ideologia democrática liberal; eis o canto da Ação Liberal Popular de Piou, por volta de 1900, citado por Jacques Ploncard d’Assac:[119]
Nós somos da Ação Liberal Queremos viver com liberdade
Um sim ou um não, à vontade
A liberdade é nossa glória Gritemos: Viva a Liberdade!
Aclamemos a Ação Liberal
Liberal, liberal,
Para todos que a lei seja igual.
Seja igual!
Viva a Ação Liberai de Piou!
Os católicos liberais de 1984 não se comportavam melhor quando cantavam seu canto da escola livre, nas ruas de Paris:
“Liberdade, liberdade, tu és a única verdade!”
Que praga estes católicos liberais! guardam sua fé no bolso e adotam as máximas do século. É incalculável o dano que causaram à Igreja com sua falta de fé e sua apostasia.
Terminarei com um trecho de Dom Guéranger, cheio deste espírito de fé de que vos falei:
“Hoje mais do que nunca (…) a sociedade tem necessidade de doutrinas firmes e coerentes consigo mesmas. Em meio à destruição geral das idéias, somente a asserção, uma afirmação nítida, sólida, sem misturas, logrará ter aceitação. Os ajustes se tornam cada vez mais estéreis e cada um arranca uma fatia da verdade (…). Mostrai-vos, pois, tal como sois no fundo: católicos convictos. (…)
Há uma graça unida à confissão plena e inteira da fé. Esta confissão, como diz o Apóstolo, é a salvação dos que a fazem, e a experiência mostra que é também daqueles que a escutam.”[120]
Do Liberalismo à Apostasia – Mons. Marcel Lefebvre
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[112] Padre A. Roussel. Libéralisme et Catholicisme, p.16.
[113] Pe. H. Clérissac O.P, Le Mystère de L’Eglise, Cap. 7.
[114] Dictionaire de Théol. Cat., T-9. col. 509.
[115] Jacques Marteaux. Les Catholiques dans I’inquiétude.
[116] Dom Delatte, “Vie de Dom Guéranger”, Solesmes, T II, pg. 11
[117] Citado pelo Pe. Le Floch, op. cit., pág. 58-59.
[118] Discurso de Malines. 20 de agosto de 1863.
[119] L’Eglise ocupée. DPF. 1975. pág. 136.
[120] Le Sens Chrétien de L’Histoire, Nouveile Aurore, Paris, 1977. pág. 31-32.