A NOVA ORDEM MUNDIAL É “NOVA”?

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Se por um lado os meios tecnológicos tornam cada vez mais possível um governo mundial de homens “amantes de si mesmos, avarentos, altivos, soberbos, blasfemos, desobedientes a seus pais, ingratos, malvados, sem afeição, sem paz, caluniadores de nenhuma temperança, desumanos, inimigos dos bons, traidores, protervos, orgulhosos e mais amigos de deleites do que de Deus” (2Tim. 3, 2-4), tais como aqueles que o Apóstolo disse que viriam no fim dos tempos, pelo outro não é novo esse impulso na alma humana. Diz o Padre Álvaro Calderón, FSSPX:

O impulso imperial – nesta linha de impérios providenciais – provém da forte tendência que têm os bens universais a serem difundidos. É o desejo de Adão em ter a quem comunicar as riquezas de sua alma, pelo que lhe foi dado a mulher, ou seja, a família, ou seja, a sociedade. Aquele que tem ciência tem o desejo de ensinar, e aquele que sabe organizar sofre a desordem nos demais. Aquele que por sua vez ama o dinheiro, que é puramente material, só pensa em despojar os demais, pois este se gasta ao comunicá-lo, enquanto que os bens universais quanto mais se distribuem, mais se tem. Os impérios de Daniel eram impérios de cultura e não de dinheiro[1], eram impérios fundados em um bem comum espiritual e não carnal, em um bem universal e não particular.

Mas a obscura realidade do pecado original continua com suas consequências, por isso que a ideia do império sofre conflito, conflito esse que desencadeou-se justamente em Babel. Até então era a “terra de uma só língua e um mesmo modo de falar”[2], mas o esforço cultural desse povo unido foi empregado para construir um altar para a glória do homem e não para a de Deus: “Disseram ainda: vinde, façamos para nós uma cidade e uma torre, cujo cimo chegue até ao céu, e tornemos célebre o nosso nome”[3]. Por isso que Deus se viu obrigado a confundi-los e dividi-los: “Eis que são um só povo e têm todos a mesma língua: começaram a fazer esta obra, e não desistirão do seu intento, até que a tenham de todo executado. Vamos, pois, desçamos e confundamos de tal sorte a sua linguagem, que um não compreenda a palavra do outro”[4]. Babilônia permanece em seu projeto de unificação e glória, mas Deus se mostrou contrário à ideia imperial – «Ecce unus est populus», e dividiu-a –, pois um poder político tão grande em corações soberbos não deixaria de produzir um grande mal.

“Ao serem confundidas as línguas, foi confundida e dividida a religião. Daí que a tarefa de reunificação imperial traria consigo, como vimos, aquilo que poderíamos chamar de um «humanismo». O homem é um animal essencialmente político-religioso, e não há império possível se não se resolve o problema da religião, que desde Babel havia ficado fragmentada e cada vez mais desfigurada. Mas na falta de uma clara manifestação divina que consagrasse um Pontífice e restabelecesse o vínculo religioso com Deus, o único princípio e fundamento verdadeiramente universal era a razão: o mais divino do homem. A tarefa imperial supõe, então, a unificação em torno dos bens culturais mais universais, a ciência e o direito, com uma regulamentação das caprichosas religiões dentro da ordem do razoável, o que leva necessariamente a um desprestígio das tradições religiosas. Isso é o que já observamos em Ciro, e mais em Alexandre e sobretudo em Augusto: é o império do «humanismo».

“Acreditamos não estar transferindo indevidamente ao passado o que vivemos em nosso tempo: se não se conta com uma religião universal – ou não se quer contar –, não há outro modo de unificar politicamente os povos senão com um enfoque ecumênico não muito distinto do Vaticano II. É claro que se o primeiro Concílio de Jerusalém tivesse tomado o mesmo caminho, a Igreja não haveria tido os louros dos seus muitíssimos martírios, porque César nos ofereceria com gosto um belo altar em seu Panteão (Пαν-Θειον: templo consagrado a todos os deuses).

“Ora, o poder político em corações soberbos não deixa de cair sob o domínio de Satanás, mas há domínio e domínio.”

(Extraído de Padre Álvaro Calderón, FSSPX, El Reino de Dios, La Iglesia y el orden político, pp. 271-272)

Vejamos também o que diz São João Crisóstomo em sua sétima homilia à segunda Carta de São Paulo a Timóteo (trad. Editora Paulus) quando fala do homem que tem uma fome voraz (βουλιμία) e insaciável por bens materiais, que quer que morra todo o mundo para que todos os bens fiquem para si:

Não existe homem mais ingrato que o cobiçoso, tão insensível quanto o avarento. É inimigo da terra inteira. Aborrece-se por existir tanta gente. Queria que existisse apenas um deserto a fim de se apossar de tudo. E imagina várias coisas semelhantes. Oxalá houvesse um terremoto na cidade, diz ele, e todos fossem soterrados, somente eu subsistisse e, se possível, tomasse todos os bens! Oxalá grassasse uma peste e tudo perecesse, exceto o ouro! Oxalá viesse um dilúvio, ou inundação do mar! Imagina somente inúmeras calamidades, nada de bom, almejando que sobrevenham terremotos, raios, guerras, pestes etc. Dize-me, miserável e infeliz, mais vil que todos os escravos, se tudo fosse ouro, acaso poderias, esgotado pela fome, livrar-te por meio dele?

Se houvesse um terremoto, derrocasse a terra, perecerias tu conjuntamente, com tua perniciosa cupidez. Se na terra não se encontrasse mais homem algum, não acharias meios de subsistência. Imaginemos que os homens tivessem desaparecido inteiramente da terra, e todo ouro e prata fluíssem de certo modo até vossa casa (Imaginação estulta e impossível!) e douradas as riquezas, ouro, prata, vestes de seda, caíssem por si mesmas em tuas mãos, que utilidade teriam? Desta maneira, a morte é que viria de surpresa, devido à carência de padeiros, agricultores; as feras devorariam tudo, e os demônios encheriam de pavor a tua alma. E agora efetivamente os demônios, e muitos, já se apoderaram dela, mas nesse caso então te levariam à loucura, e logo à perdição. Mas eu não quero isto, replicas; queria ter agricultores e padeiros. Ora, eles fariam despesas. Mas não queria que gastassem. A tal ponto a cobiça é insaciável!

O que há de mais ridículo? Vistes que é impossível? Quer ter muitos servos, e se entristece por precisarem de alimento, diminuindo-lhe os recursos. E então? Dize-me. Queres homens feitos de pedra? Tudo isto provoca zombaria, ondas, procela, inverno, tempestade, grande perturbação da alma: Sempre faminto, sempre sedento. Dize-me. Não havemos de ter compaixão dele, de deplorá-lo?”

O santo Crisóstomo, como se pode ver, fala até naquele desejo oculto do cobiçoso de, se fosse possível, ter “homens feitos de pedra” (homines lapídeos ou λιθίνους ανθρώπους) que lhe serviriam sem, em contrapartida, gerar os gastos que geram um empregado. Mas, então, o que são hoje os cada vez mais desenvolvidos e autônomos robôs senão a realização tecnológica desse desejo oculto dos avarentos de possuírem riquezas sem por isso precisar dividi-las com a força de trabalho que a gera? 

É verdade que a robotização, em suas primeiras etapas, acabou tendo o efeito reverso: ao criar novos campos até então desconhecidos, destruiu antigos e acabou com profissões inteiras, mas acabou, por outro lado, criando outros novos e realocando novamente a força de trabalho que então ficara ociosa. Mas e quando esses robôs adquirirem autonomia dentro do processo de produção em cada vez mais áreas? É uma questão para os futuristas e economistas.

Cada vez mais, porém, nos aproximamos da interessante época onde a força de trabalho (que é a verdadeira geração de riqueza) não será mais uma força humana, mas a matéria produzindo matéria. Sempre haverá uma “nova” etapa onde os cobiçosos tentarão abocanhar todas as riquezas da terra para si e, quanto maior for essa riqueza, mais insaciável ela será e maior o desejo homicida de seus possuidores (os potentados de hoje possuem uma pujança política e econômica que na Antiguidade os pagãos comparariam ao poder de deuses; mas em vez de saciar essa sanha por bens materiais, o desejo de possuir cada vez mais bens materiais aumentou na mesma proporção, quiçá mais: “sempre faminto, sempre sedento”).

Mas tudo isso, como mostraram o Padre Calderón e São João Crisóstomo, não é a “Nova Ordem Mundial”, pois ela é velha como o diabo e segue o desejo original do primeiro assassino: Caim, que criou toda uma civilização para proteger sua mente perturbada pelos demônios que o assaltavam (Gn. 4, 17). Essa é a Velha Ordem dos caídos, sempre de cara nova, mas sempre velha e podre por dentro.

Notas:

  1. Resumimos no dinheiro tudo o que é material e carnal: prazer, violência, etc., pois tudo isso se consegue com dinheiro. Assim também resumiu Nosso Senhor quando falou só de dois senhores: Deus e Mamon.
  2. Gn. 11, 1.
  3. Gn. 11, 4.
  4. Gn. 11, 6-7.