CARAPAÇA E COLUNA VERTEBRAL

primeiro

O globalismo está na pauta do dia, e entre as projeções publicadas aqui e ali por inquestionáveis especialistas[1], podemos antever um futuro sombrio. Como viver na cova do leão e ainda permanecer íntegro?

Fonte: Le Chardonnet n° 367 – Tradução: Dominus Est

Sua descrição costumava ser, em parte, ficção científica, e em parte testemunhos sobre países totalitários: uma sociedade coletivista monitorada nos mínimos detalhes por uma inteligência artificial implacável, uma pressão social perniciosa para estabelecer a imoralidade na sociedade, etc. O mais preocupante é que não se trata de nos deixar uma escolha. Alguns estão até mesmo considerando abolir as eleições, visto hoje temos os meios para saber mais rapidamente o que a população[2] “deseja”  as máquinas decidirão, sem nós, qual é a “nossa” vontade geral, e seremos fortemente convidados a obedecê-las para “obedecermos a nós mesmos” de uma forma mais espontânea e unânime… Um tanto abalados por estes projetos filantrópicos excessivamente invasivos, perguntamo-nos o que fazer. A sociedade reinicializada que querem nos impor apenas remotamente se assemelhará ao cristianismo, e poderíamos muito bem encontrar-nos como cristãos no ainda pagão Império Romano, forçados a viver à parte da imoralidade pública e dos falsos cultos. Mas em tal sociedade a jurisprudência acaba por se afirmar: christianum esse non licet. Então, como viver na cova do leão e ainda permanecer íntegro?

Onde está o limite?

Mais precisamente, até que ponto podemos ou devemos entrar no sistema, sob o risco de participar formalmente do pecado? A polêmica atual sobre a moralidade das vacinas é testemunha disso. Como saber em que momento permanecer no sistema é aceitar a Marca da Besta? E se permanecermos, quem nos garante que teremos força para parar no limite? A experiência das práticas revolucionárias já mostrou como é possível fazer com que almas zelosas abandonem sua fé, envolvendo-as cada vez mais em ações ambíguas. Se deixarmos nos levar por essa engrenagem, tudo se seguirá[3] .

Risco zero?

Uma primeira atitude para resistir consiste em recusar tudo. Não só o pecado, mas também tudo o que se assemelha à sua sombra, porque isso seria cooperar com o projeto globalista, e recusa-se “custe o que custar” [4]. Isso equivale a ver o pecado onde ele não existe. Ao não saber reconhecê-lo onde realmente está, determina-se um curso de ação que parece ainda mais seguro, visto ser mais difícil e exigente. E, no entanto, engana e dispensa a necessidade de formar um juízo para apreciar o bem e o mal (certo e errado). Supondo que um dia não possamos mais suportar tal disciplina, demasiadamente estrita e mal fundamentada, tudo sucumbirá. Há almas escrupulosas que acabam abandonando tudo por não poderem suportar as limitações que impuseram a sim mesmas.

O Panzer e a coluna vertebral

Diz-se que os animais que formam uma carapaça são aqueles que não têm coluna vertebral. A carapaça[5] retém tudo por fora e, se ela se rompe, tudo se perde. A coluna vertebral mantém a estrutura unida mesmo que a pele (ou casca) sofra alguma lesão. A coluna vertebral do cristão é, pelo lado da inteligência: a fé e o conhecimento dos princípios da moralidade; pelo lado da vontade: as virtudes pelas quais amamos o bem a ser feito, em todas as suas realizações, desenvolvidas pela gama de várias virtudes morais sob a orientação da caridade. Quem tem fé e conhece a moral sabe quais os princípios a seguir, em geral. Aquele que tem virtude moral ama o bem a ser feito e o reconhece quando o vê em casos concretos. Conhecer os princípios e praticar a virtude alimenta a prudência pela qual, reconhecendo uma situação moral, aplicamos a ela o princípio universal correspondente, julgamos o que deve ser feito como se fosse de segunda natureza e, acima de tudo, o fazemos. Assim, as virtudes são a capacidade de adaptação aos casos concretos, a flexibilidade de uma alma firme, onde o rigor é apenas uma cãibra dolorosa.

É sem puritanismo ou laxismo que São Thomas More foi leal ao seu soberano, o terrível Henrique VIII, até ao limite do aceitável, antes de dizer o non possumus que o conduziu ao cadafalso. E fê-lo sem ceder à pressão da própria família: “Lady Alice, disse ele à esposa, que assim seja. Pois não vejo como poderia desfrutar de minha bela casa ou qualquer outra coisa pensando que depois de ter me afastado por sete anos antes de me reerguer, me encontraria cara a cara com alguém que me expulsaria e diria que eu já não teria parte alguma naquele lugar. Como amará sua casa, aquele que tão rapidamente se esquece de seu mestre?”[6] Como dizia um profundo pensador, só o futuro nos revelará o que nos há reservado … Por hoje, cabe a nós nos formar e praticar todas as virtudes.

Que garantia?

Mas então que garantia temos de perseverar amanhã? Para falar a verdade, não aquela que gostaríamos: os acontecimentos de amanhã, tanto os melhores como os piores, ainda não foram determinados porque as suas livres causas ainda não foram estabelecidas. E quanto ao socorro divino, se ele é de fato determinado desde toda a eternidade, Deus não nos comunica seus desígnios. É um dogma de fé que não podemos saber sem revelação se seremos salvos [7], nem podemos saber com absoluta certeza se estamos em estado de graça: “Ninguém sabe se é digno de louvor ou culpa.” (Ecl 9, 1) Assim, devemos nos desesperar? Deus certamente não quer que nos angustiemos: Ele “é fiel e não permitirá que sejais tentados além de suas forças; mas em caso de tentação, dar-vos-á os meios de lhe resistir“(I Cor 10,13)

Certeza da disposição

Acima de tudo, Ele quer que O alcancemos. É este esforço para alcançá-lo que nos dá a certeza, não do amanhã, mas de caminhar hoje na direção correta. “Não que eu tenha já alcançado o prêmio, ou seja, já perfeito, mas prossigo para ver se de algum modo o poderei apreender, porque eu (que andava fugido e o perseguia) também fui apreendido por Jesus Cristo. Irmãos, não julgo ter já alcançado a meta (da perfeição cristã). Mas somente faço uma coisa: esquecendo-me do que fica para trás e avançando para as coisas que estão adiante, prossigo para a meta, para o prêmio da celeste vocação de Deus em Jesus Cristo” (Fil 3, 12-14)

Pe. Nicolas Cadiet, FSSPX

Notas

  1. Cf., por exemplo, a agora famosa obra de Klaus Schwab e Thierry Malleret – Covid19 – The Great Reset, Forum publishing, 2020, a ser complementada por outras publicações de Schwab, as publicações do Fórum de Davos, as visões de Jacques Attali, etc.
  2. Cf. a Smart-city charta, Ministério do Meio Ambiente da Alemanha, 2017, p.43.
  3. Veja testemunhos como Rose Hu, Com Cristo nas Prisões da China, Clovis, 2013, ou F. Dufay, mep, Na China, a estrela contra a cruz, Nazareth-Press, Hong-Kong, sem data.
  4. Em outro contexto, recusar-se a participar das Missas celebradas una cum porque isso seria aprovar todas as artimanhas do atual pontificado, reiterar todos os sacramentos recebidos no novo rito – inclusive o batismo – porque nunca se tem certeza absoluta das condições de validade, etc.
  5. Os alemães dizem isso com uma palavra evocativa, Panzer.
  6. Citado por Bernard Cottret, Thomas More, Tallandier, Paris, 2012, p.272.
  7. Concílio de Trento, 6ª sessão, Decreto sobre a justificação, 13 de janeiro de 1547, DS 1565-6