CARTA AOS AMIGOS E BENFEITORES – N° 85

fellay082610Fonte: La Porte Latine – Tradução: Dominus Est

Caros Amigos e Benfeitores,

Estas últimas semanas nos mostram – com a multiplicação de ataques terroristas na Europa e na África, com a sangrenta perseguição de numerosos cristãos no Oriente Médio – quão profundamente perturbada está a situação do mundo. Na Igreja, o recente Sínodo sobre a família e a próxima abertura do Ano Santo não deixam de causar preocupações legítimas. Diante de tal confusão, nos parece útil compartilhar nossas reflexões respondendo às vossas perguntas. Acreditamos que esta apresentação permitirá destacar mehor como nós, que estamos ligados à Tradição, devemos reagir aos problemas encontrados hoje.

Em 01 de setembro o Papa Francisco deu a todos os fiéis, por iniciativa própria, a possibilidade de se confessarem com os sacerdotes da Fraternidade São Pio X durante o Ano Santo. Como o senhor interpreta este gesto? Ele traz algo de novo para a Fraternidade?

Na verdade, fomos surpreendidos por este ato do Santo Padre por ocasião do Ano Santo, pois ficamos sabendo, como todo mundo, pela imprensa. Como recebemos esse ato? Permita-me recorrer a um exemplo. Quando o fogo se enfurece, todos entendem que aqueles que têm os meios devem se esforçar para apagá-lo, sobretudo se não há bombeiros. Assim tem agido os padres da Fraternidade, durante todos os anos desta terrível crise que sacode a Igreja sem interrupção por 50 anos. Em especial, frente à trágica falta de confessores, nossos sacerdotes se entregaram ao serviço das almas dos penitentes, utilizando a situação de emergência previsto pelo Código de Direito Canônico.

O ato do papa faz que durante o Ano Santo tenhamos uma jurisdição ordinária. Seguindo com a metáfora, ela consiste em dar-nos a insígnia oficial de bombeiros, apesar de nos terem negado durante décadas. Em si, para a Fraternidade, seus membros e seus fiéis, isto não agrega nada de novo; no entanto esta jurisdição ordinária tranquilizará aqueles que tem preocupações e todas as pessoas que até agora não se atreviam aproximar-se de nós. Pois, como dissemos no comunicado em que agradecemos ao Papa, os padres da Fraternidade só desejam uma coisa: “exercer com renovada generosidade seu ministério no confessionário, seguindo o exemplo de dedicação incansável que o santo Cura d’Ars deu a todos os sacerdotes”.

Durante o Sínodo sobre a família o senhor dirigiu um apelo ao Santo Padre, e em seguida, um comunicado. Por quê?

O objetivo do nosso apelo era apresentar ao Sumo Pontífice da melhor forma possível a gravidade da hora presente e o alcance decisivo da sua intervenção em questões morais tão importantes. O Papa Francisco teve conhecimento da nossa petição em 18 de setembro, antes de sua partida para Cuba e os Estados Unidos, e fez-nos saber que não mudaria nada da doutrina católica do matrimónio, particularmente, no que se refere à indissolubilidade. Mas o que temíamos, é que, de concreto, estabeleceria uma prática que iria ignorar a indissolubilidade do matrimônio. E isso é o que aconteceu, por um lado, com o Motu proprio da reforma do procedimento de declaração de nulidade do casamento, e por outro com o documento final do Sínodo. Por isso fiz a declaração, que procura lembrar o ensinamento constante da Igreja sobre uma infinidade de pontos discutidos e que algumas vezes foram colocados em dúvida durante este mês de outubro. Eu não vou lhes esconder que o triste espetáculo que deu o Sínodo me parece vergonhoso e escandaloso por várias razões.

Quais são estes pontos vergonhosos e escandalosos?

Pois bem, por exemplo esta dicotomia entre doutrina e moralidade, entre o ensinamento da verdade e da tolerância do pecado e as piores situações imorais. Que se seja paciente e misericordioso com os pecadores, é claro, mas como se converterão se não se denuncia a situação do pecado, se já não ouvem falar sobre o estado de graça e de seu oposto: o estado de pecado mortal, que mergulha a alma em uma morte espiritual e a entrega aos tormentos do inferno? Se medirmos a ofensa infinita que causa o menor pecado mortal à honra e santidade de Deus, morreríamos de medo. A Igreja deve condenar o pecado com firmeza, todos os pecados, os vícios e erros que corrompem a verdade do Evangelho. Não deve concordar ou mostrar uma compreensão defeituosa por comportamentos escandalosos, nem pelos pecadores públicos que violam a santidade do casamento. Por que a Igreja já não tem a coragem de falar assim?

No entanto, houve iniciativas positivas por ocasião deste Sínodo. Por exemplo, o livro dos onze cardeais – após o dos cinco cardeais no ano passado – e também o trabalho dos prelados africanos, de juristas católicos, o vademécum de três bispos …

As boas iniciativas que apareceram recentemente defendendo o matrimônio e a família cristã dão uma luz de esperança. Há uma reação saudável, mesmo não tendo o mesmo valor. Esperemos que isto seja o começo de um despertar em toda a Igreja que conduza a uma recuperação e a uma conversão verdadeira.

Antes do verão em um sermão em Saint Nicolas du Chardonnet, em Paris, Mons. De Galarreta disse que parecia que a Igreja começava a fabricar “anticorpos” contra as propostas aberrantes sobre o casamento realizadas pelos progressistas, que se encaixam nos costumes contemporâneos em vez de tentar corrigi-los de acordo com o ensinamento evangélico. Esta reacção é moralmente benéfica. E como a moral está intimamente ligada com a doutrina, este pode ser o início de um retorno da Igreja à sua Tradição. Rezemos diariamente por isso!

Em nome da misericórdia há quem, como o Cardeal Kasper, quer, se não mudar a doutrina da Igreja sobre a indissolubilidade do casamento, pelo menos, suavizar a disciplina da Igreja sobre a comunhão do “divorciados novamente casados”, ou modificar seu julgamento sobre as uniões contra a natureza. Que se deve pensar de todas essas exceções chamados “pastorais”?

A Igreja pode legislar, ou seja, estabelecer as suas próprias leis, que são esclarecimentos da lei divina. Mas no âmbito do matrimônio sobre a qual hoje debate, Nosso Senhor já resolveu a questão de uma forma clara e evidente: “O que Deus uniu, não o separe o homem” (Mateus 19:6), e imediatamente depois “quem se casar com a repudiada comete adultério “(Mat. 19: 9). Portanto, a Igreja só tem uma coisa a fazer, recordar a lei divina e consagrá-la em suas leis eclesiásticas. Em nenhum caso ela pode permitir qualquer discrepância; isso seria falhar na sua missão que é transmitir o depósito revelado. Para ser claro, no assunto em questão, a Igreja só pode comprovar que não houve matrimônio no início, mas não pode fazer nulo ou dissolver um casamento válido em si.

Desde então, as leis eclesiásticas podem adicionar condições necesárias para a validade de um casamento, mas sempre de acordo com a lei divina. Assim, a Igreja pode declarar um casamento inválido por falta de forma canônica, mas nunca será a proprietária da lei divina a que está sujeita. E mais, deve-se afirmar que na diferença da lei humana e eclesiástica, a lei divina não permite exceções, pois não foi feita por homens, que não pode prever todos os casos e são obrigados a deixar um espaço para exceções . Deus infinitamente sábio previu todas as situações, como escrevi no apelo ao Papa: “A lei de Deus, uma expressão do seu amor eterno para com os homens, constitui por si só a suprema misericórdia para todos os tempos, todas as pessoas e todos as situações “.

O Motu proprio de 8 de setembro que simplifica o procedimento das declarações de nulidade matrimonial, não é uma forma de oferecer facilidades canônicas para escapar ao princípio da indissolubilidade do matrimônio, embora o mesmo a recorde?

É verdade que o novo Motu Proprio que regula as disposições canônicas relativas aos processos de anulação pretende responder a um grave problema atual: o de muitas famílias rompidas por uma separação. Examinar esses casos para propor uma solução mais rápida, na medida em que corresponde à lei divina do casamento, ótimo! Mas, no contexto atual da sociedade moderna, secularizada e hedonista, e dos tribunais eclesiásticos em que já se pratica o que é proibido, este Motu proprio poderia facilmente tornar-se uma ratificação legal da desordem. O resultado poderia ser ainda pior do que o remédio proposto. Temo que um dos pontos-chave do Sínodo foi resolvido indiretamente e ocultamente, abrindo o caminho para um suposto “divórcio católico” porque, na verdade, há a possibilidade de muitos abusos, especialmente em países onde os bispos são pouco exigentes e estão imbuídos com o liberalismo e do subjetivismo …

O Ano Santo que deve se abrir em 8 de Dezembro, acaso não foi colocado sob o sinal de uma misericórdia onde arrependimento e conversão estariam ausentes?

É verdade que no clima atual, o apelo à misericórdia prevalece muito facilmente sobre a indispensável conversão que exige a contrição das próprias faltas e o horror do pecado, ofensa feita a Deus. Como eu lamentei na última Carta aos Amigos e Benfeitores (N.º 84), de modo complacente, o Cardeal hondurenho Maradiaga fez eco a uma nova espiritualidade, em que a misericórdia se vê truncada e amputada da penitência necessária, que não se recorda quase nunca.

No entanto, folheando os diferentes textos publicados relativo ao Ano Santo, e especialmente a Bula de proclamação do Jubileu, se vê presente a idéia fundamental da conversão e contrição dos pecados para obter o perdão. Apesar da referência a uma misericórdia equivocada que consistiria em devolver ao homem mais sua “dignidade incomparável” que o estado de graça, o Papa deseja favorecer o regresso daqueles que deixaram a Igreja e aumenta as iniciativas específicas para facilitar o uso do sacramento de penitência. Infelizmente não admira porque tantas pessoas deixaram a Igreja ou deixaram suas práticas, e se não há uma relação com certo Concílio, seu “culto do homem” e suas reformas catastróficas: o ecumenismo desenfreado, a liturgia desacralizada e protestantizada, relaxamento da moral, etc.

Os fiéis ligados à Tradição podem, consquentemente e sem risco de confusão, participar do Jubileu extraordinário decidido pelo Papa? Sobretudo porque esse Ano da Misericórdia pretende comemorar o 50º aniversário do Concílio Vaticano II, que teria derrubado as “muralhass” em que a Igreja estava fechada …

Obviamente surge a questão da nossa participação neste Ano Santo. Para responder, é necessário uma distinção: as circunstâncias em que se convoca um ano jubilar e a essência de um Ano Santo.

As circunstâncias são históricos e estão relacionados com as grandes comemorações da vida de Jesus, em particular, de sua morte redentora. A cada 50 anos, ou mesmo 25, a Igreja institui um Ano Santo. Desta vez, o evento de referência para a abertura do Jubileu não é apenas a Redenção – o 08 de dezembro está necessariamente ligado com a obra redentora iniciada com a Imaculada Mãe de Deus -, mas também com o Concílio Vaticano II. É chocante e algo que rejeitamos formalmente, pois não podemos nos alegrar, mas sim devemos lamentar as ruínas causadas por este Concílio, com a queda vertiginosa das vocações, o dramático declínio na prática religiosa e, sobretudo, a perda da fé, que o próprio João Paulo II chamou de “apostasia silenciosa”.

De qualquer forma permanece o que é essencial em um Ano Santo: trata-se de um ano especial em que a Igreja, de acordo com a decisão do Sumo Pontífice, que tem o poder das chaves, abre seus tesouros de graças para aproximar os fiéis a Deus, especialmente através do perdão dos pecados e remissão das penas devidas pelo pecado. A Igreja faz isso através do sacramento da penitência e das indulgências. Estas graças mantêm-se inalteradas. Seguem sendo sempre as mesmas, e só a Igreja, o Corpo Místico de Cristo, dispões delas. Se pode, da mesma forma, indicar que as condições para obter as indulgências do Ano Santo permanecem as mesmas: confissão, comunhão e oração pelas intenções do Papa – as intenções tradicionais e não as intenções pessoais. Ao recordar essas condições habituais, não se faz qualquer referência em nehuma parte à adesão às novidades conciliares.

Quando Mons. Lefebvre foi com todo seminário de Ecône à Roma, com o motivo do Ano Santo de 1975, não foi para celebrar os 10 anos do Concílio, apesar de Paulo VI recordar este aniversário na Bula de proclamação. Foi, no entanto, a oportunidade de expressar a nossa romanidade, nosso apego à Santa Sé, ao Papa – como sucessor de Pedro – tem o poder das chaves. Imitando nosso venerado fundador, durante este Ano Santo, vamos nos concentrar no que é essencial: a penitência para alcançar a misericórdia divina através de sua única Igreja, apesar das circunstâncias que se acreditou necessária invocar para comemorar este ano, como foi o caso em 1975, e ainda em 2000.

Podia-se comparar estes dois elementos, o essencial e as circunstâncias, com o conteúdo e a embalagem em que vem. Seria errado recusar as graças propostas em um Ano Santo porque é apresentada em uma embalagem defeituosa, salvo que se considere que esta embalagem altere o conteúdo, que as circunstâncias absorvam o essêncial, e que neste caso, a Igreja já não dispõe de graças próprias do Ano Santo, devido aos danos causados ​​pelo Vaticano II. Mas a Igreja não nasceu há 50 anos! E, pela graça de Cristo, que é “o mesmo ontem, hoje e sempre” (Hb 13: 8.), a Igreja segue e seguirá sendo a mesma, apesar deste Concílio de abertura a um mundo em perpétua mudança …

Em várias declarações recentes parece que o senhor quer antecipar o centenário de Fátima, convidando as pessoas a se prepararem desde agora. Por quê?

Dadas as perspectivas que aqui evocamos e para insistir sobre a urgência da conversão, pensamos unir essas boas obras de misericórdia corporais e espirituais, que somos convidados neste ano, com o centenário das aparições de Fátima, onde Nossa Senhora insistiu tanto na necessidade de conversão, de si mesmo e do mundo, e da necessidade das obras de penitência e de oração, especialmente do Rosário. Os pedidos da misericórdia divina está intimamente ligada às aparições de Fátima: a Virgem Santíssima convida-nos a rezar e fazer penitência, assim alcançaremos a misericórdia, e não o contrário. Acho que é muito conveniente unir dessa forma os próximos dois anos, dedicando dois anos a lutarmos para chegar o mais próximo possível tanto a Santíssima Virgem como a Nosso Senhor, tanto ao Imaculado Coração de Maria como do Sagrado Coração misericordioso.

A Fraternidade São Pio X vai organizar uma peregrinação internacional a Fátima entre os dias 21 e 23 de Agosto de 2017. Mas desde agora podemos, e devemos mesmo nos preparar, sobretudo quando se está minando seriamente a moral católica.

Mais do que nunca, neste 21 de novembro, que é um grande aniversário para nós, a declaração do Arcebispo Lefebvre em 1974 – verdadeira Carta Magna de nossa luta pela Igreja de sempre – conservemos em todas as circunstâncias e quaisquer sejam as dificuldades e provações, uma atitude católica. Tenhamos os pensamentos da Igreja, sejamos fiéis a Nosso Senhor, permaneçamos unidos a seu Santo Sacrifício, a seus ensinamentos e a seus exemplos. Eu li ontem que o cardeal Müller, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, temia uma “protestantização da Igreja”. E ele está certo. Mas o que é a nova Missa senão uma protestantização da missa de sempre? E o que pensar do Papa que, como seus antecessores, visita um templo Luterano? Como não ficarmos confusos ao ver como se está preparando o 500º aniversário da Reforma Protestante em 2017, e como está se elogiando agora a figura de Lutero, que foi um dos maiores hereges e cismáticos de história, ferozmente se opondo à Igreja Católica Romana? Realmente Mons. Lefebvre estava certo quando afirmava que “a única atitude de fidelidade à Igreja e à doutrina católica, para a nossa salvação, é a recusa categórica de aceitar a Reforma” porque entre a reforma iniciada pelo Concílio Vaticano II e a de Lutero há mais de um ponto em comum. E seguindo-o, repetimos que “sem nenhuma rebelião ou amargura, nem qualquer ressentimento, continuamos nossa obra de formação sacerdotal à luz do magistério de sempre, convencidos de que não podemos prestar maior serviço à Santa Igreja Católica, ao Sumo Pontífice e às gerações futuras “.

É o que vocês, queridos amigos e benfeitores da Fraternidade São Pio X, compreendem bem. Suas fervorosas orações, sua generosidade admirável e sua entrega constante são para nós um apoio valioso. Graças a vocês a obra de Mons. Lefebvre se desenvolve em todas as partes. Agradeço-lhes de todo o coração.

Peçamos a Nossa Senhora que nos obtenha todas as graças de que precisamos. Pedimos a Deus que conceda Suas bênçãos a vocês e suas famílias, para se prepararem para a grande festa do Natal por meio de um santo Advento, e que confiem no próximo ano, com as suas alegrias e as cruzes, à nossa Mãe do Céu.

Na festa da Apresentação da Santíssima Virgem, 21 de novembro de 2015

Bernard Fellay +