CARTA DE MARCEL DE CORTE A JEAN MADIRAN “SOBRE A MISSA NOVA” – 1970 – “PAULO VI É UM HOMEM CHEIO DE CONTRADIÇÕES”

Fonte: Blog Rorate Caeli – Tradução: Dominus Est

Marcel De Corte

Devo confessar-lhe, meu caro Jean Madiran, que mais do que uma vez me senti tentado a abandonar a Igreja Católica em que nasci. Se não o fiz, dou graças a Deus e ao bom senso de camponês com que Ele me abençoou. A Igreja — murmuro para mim mesmo neste momento — é como um saco de trigo infestado de carunchos. Por mais numerosos que sejam os parasitas — e, à primeira vista, estão enxameando! — não afetaram todos os grãos. Alguns, por muito poucos que sejam, permanecem férteis. Estes brotarão e os carunchos morrerão depois de terem devorado todos os outros. Bon appétit, meus senhores, estão comendo a vossa própria morte.

Enquanto isso, sofremos de fome, de fome de sobrenatural. O número de padres que nos distribuem o pão da alma diminui a um ritmo alarmante. Na hierarquia, a situação é ainda pior. E no topo, de onde se poderia esperar algum consolo, é desastroso.

Confesso que, durante muito tempo, me deixei enganar por Paulo VI. Pensava que estava tentando preservar o essencial. Repetia para mim próprio as palavras de Luís XIV ao Delfim: “Não receio dizer-lhe que, quanto mais elevada é a posição, mais coisas há que não se podem ver ou saber senão quando se a ocupa”. Não sendo papa, nem sequer clérigo, disse a mim mesmo: “Ele vê o que eu não posso ver, devido à sua posição. Por isso, confio nele, mesmo que a maior parte dos seus atos, atitudes e declarações não me agradem e que as suas constantes (aparentemente constantes) manobras me deem a volta à cabeça. Pobre homem, é digno de pena, tanto mais que é evidente que não está à altura do cargo… Mas mesmo assim, com a ajuda de Deus…”

No entanto — e isto é para glória da humanidade — não há nenhum exemplo na história de um enganador que não tenha acabado por se desmascarar. Ao esforçar-se demasiado por ser o que não é, acaba por revelar a sua verdadeira natureza. Demasiada astúcia volta contra si mesma. Os homens estão dispostos a tolerar um pouco de artimanha, especialmente quando tem um toque italiano. Mas há um limite e, para além dele, deixa-se de ser um bom ator e torna-se prisioneiro da sua própria charada, enredado nas suas próprias proezas de ilusão.

Para mim, a virada deu-se com a controvérsia sobre a Santa Missa. Até então, era possível ser enganado, iludido e ludibriado. Era o preço das honras devidas aos poderes estabelecidos. Mas agora, o tempo de “brincar comigo”, como dizia o meu velho professor, acabou. É uma frase que usava quando estávamos no campo, onde essa franqueza é natural, e ele era muito mais enérgico. Ao Padre Cardonnel, cheio de literatura e que a vomita a toda a gente, falta-lhe essa deliciosa espontaneidade de linguagem, essa afirmação orgulhosa e viril de quem já não suporta ser enganado nem por um momento. “Acabou. Acabou. Acabou”, diria ele ao colega imprudente que tivesse levado as coisas longe demais.

Digo isso com toda a calma e reflexão, com toda a confiança de um homem de origem camponesa, onde o catolicismo é transmitido de pai para filho, onde o sobrenatural é palpável, que deixou de cultivar os campos como os seus antepassados (dos quais sou muito indigno) para cultivar as mentes, de quem Deus tirou um filho dedicado à Igreja, e que se sente, da cabeça aos pés, profundamente enraizado na Igreja. Digo-lhe com firmeza, sem a menor hesitação: “NÃO. Estou farto. Não me vão enganar. Não me vão levar pelo caminho do jardim. Não vou fingir que Paulo VI é um novo São Pio X, profundamente transformado, para melhor, claro, como convém à nossa era progressista”.

Como é que se ousa proclamar que não há uma “nova Missa”, que “nada mudou”, que “tudo está como antes”, quando nada ou quase nada resta da Missa que tantos santos valorizaram com amor? Quando os “peritos” nomeados para trabalhar nesse projeto de demolição por razões de utilidade pública o descreveram repetidamente como uma verdadeira “revolução” litúrgica? Quando as consciências simples dos fiéis comuns foram abaladas por essa reviravolta? Como exclamou uma senhora idosa ao sair da igreja no primeiro domingo do Advento, esmagada pelo “novo rito” (o adjetivo é de Paulo VI, que gosta de brincar com as contradições): “Isso! Uma missa? Já não se consegue reconhecê-la!” Isso era tão evidente que o celebrante, por distração ou por pressa, tinha omitido a consagração do vinho! Mas o que é que isso importa numa missa onde o conceito de sacrifício está, por definição, ausente?

Não vou repetir aqui os argumentos contra essa nova liturgia. Outros, bem informados, competentes e fiáveis, já o fizeram e fizeram-no bem. Quando as opiniões dos especialistas coincidem com o senso comum de um cristão comum, não há necessidade de acrescentar os seus próprios comentários. Tudo já foi dito por ilustres especialistas, teólogos e canonistas experientes, sacerdotes e religiosos devotos, e até por aquela boa mulher comum que exprimiu o mais profundo e sentido protesto das massas cristãs contra essa “transformação”: “Já não se consegue reconhecê-la!” Isto resume-o na perfeição: “Já não se consegue reconhecê-la!” Os fiéis sentem-no por instinto: “Já não há nada de católico nisso”.

“Essa Missa representa, tanto no seu conjunto como nos seus detalhes, um afastamento notável da teologia católica da Santa Missa, tal como foi formulada na vigésima segunda sessão do Concílio de Trento, que, fixando definitivamente os ‘cânones’ do rito, ergueu uma barreira intransponível contra qualquer heresia que pudesse atentar contra a integridade do Mistério”. As palavras severas do Cardeal Ottaviani dificilmente podem ser contestadas por qualquer pessoa de boa fé que tenha estudado o novo Ordo Missæ e considerado todos os seus detalhes. Ninguém de boa fé pode ignorar a sua triste realidade depois de ter ouvido, como aconteceu na Bélgica depois de 30 de novembro, todos os domingos e no Natal, “a nova Missa”, pré-fabricada por tecnocratas da fé. Espremido entre uma pomposa e teatral Liturgia da Palavra e uma Liturgia da Refeição “self-service”, o SANTO SACRIFÍCIO DA MISSA, ou seja, o ESSENCIAL, é despachado num piscar de olhos por um clérigo que, nove em cada dez vezes, segundo a minha experiência, não parece acreditar um único momento no que está fazendo.

Repito: isso foi exaustivamente demonstrado e, contra estas provas e argumentos, nada mais foi oferecido em resposta do que retórica serpentina e jeremíades.

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Esta “nova Missa” DEVE SER REJEITADA com toda a energia e coragem do Padre Roger-Thomas Calmel, O.P. e de acordo com as diretrizes estabelecidas por Jean Madiran, mesmo que tenham de ser ajustadas individualmente conforme necessário, com a devida cautela e dependendo das circunstâncias, com a dupla intenção, sempre presente, de rejeitar o que é herético no ofício e de aceitar apenas o que é ortodoxo.

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Da minha parte, tapo cuidadosamente os meus ouvidos com cera. Escondo-me ao fundo da igreja, atrás de uma cortina, cujo biombo engrosso sentando-me na cadeira mais baixa que consigo encontrar. Leio a Santa Missa no Missal que a minha santa mãe me deu, depois de o anterior ter sido usado até ficar em farrapos. Leio a Imitação de Cristo em latim durante o o bate-papo que se finge de sermão. Participo com todo o meu coração na renovação do Sacrifício do Calvário. Obrigo o sacerdote que distribui a comunhão nas mãos das “ovelhas” que ele foi encarregado de domesticar a dar-mo na grade da comunhão, onde me ajoelho. E, durante a última algazarra, saio para meditar, rezando para que o Senhor me torne ainda mais surdo ao clamor do mundo, tanto literal quanto figurativamente.

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Devo dizer que, por vezes, fico furioso quando ouço chegar aos meus ouvidos algumas idiotices, como esta, cuja autenticidade garanto: “Oremos, meus irmãos, para que entre os jovens, homens e mulheres, reunidos pelos seus penteados e roupas semelhantes, não haja mais diferença de sexo”. Mas podemos habituar-nos a tudo, mesmo aos disparates mais ridículos. Como dizia com razão Léon Bloy, é preciso ser moderado no desprezo, porque há muitos que o merecem.

Não dissimulemos a verdade. A nossa recusa implica um julgamento sobre os atos e as palavras de Paulo VI, e mesmo sobre a sua pessoa, com quem devemos, contra a nossa vontade, praticar a virtude da “correção fraterna”, que São Tomás de Aquino considerava um prolongamento das virtudes da esmola e da caridade, e que, segundo ele, se deve praticar mesmo publicamente com os superiores, depois de ter esgotado todos os meios ocultos para o fazer (Suma Teológica, II-IIae, q. 33). Pode presumir-se com segurança que um inferior tão respeitador da autoridade papal como o Cardeal Ottaviani não tornou pública a sua carta memorial a Paulo VI sem antes ter exercido toda a prudência diplomática possível. “Se um superior é virtuoso”, escreve um comentador da Suma, “aceitará com gratidão todas as advertências que lhe possam dar clareza. Será o primeiro a admitir que é justo adverti-lo e que ele não é intocável em todos os aspectos”. E acrescenta, seguindo São Tomás, que a advertência deve ser pública “quando, por exemplo, um superior declara publicamente heresias manifestas ou causa grande escândalo, pondo assim em perigo a fé e a salvação dos seus subordinados”.

O Cardeal Ottaviani não é certamente o único a pensar que Paulo VI, com as suas palavras e atos, está “afastando-se notavelmente da teologia católica da Santa Missa”. Com efeito, é inconcebível que o Papa tenha simplesmente passado por cima de um documento tão importante e o tenha assinado descuidadamente. O Ordo Missæ e a Nova Missa que vigorosamente rejeitamos foram desejados e impostos por Paulo VI a todos os Católicos.

Como é que uma tal atitude pode ser possível da parte de um Papa durante um período tão crítico da história da Igreja? Não posso deixar de me colocar essa questão. E não posso continuar a calar a minha resposta. Os riscos são demasiado grandes para que os leigos deixem os padres de todas as classes lutarem sozinhos, sem o apoio de alguns fiéis que eles alertaram para o perigo, contra o “escândalo” da Nova Missa.

Não se trata de se indignar — por mais tentador que seja — mas de compreender.

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Paulo VI é um homem cheio de contradições. É um homem que exalta o Santo Sacrifício da Missa em termos grandiosos e tradicionais no seu “Credo do Povo de Deus”, mas que o desvaloriza na Nova Missa que impõe à cristandade católica. Este é um homem que assina e promulga as declarações oficiais do Concílio sobre o latim, “a língua litúrgica por excelência”, sobre o canto gregoriano, um tesouro a preservar zelosamente, e que, além disso, se compromete publicamente a preservá-los, mas que renega a sua assinatura e a sua palavra depois de ter consultado, numa questão tão importante como o modo de expressão do culto oferecido a Deus, apenas peritos litúrgicos, alguns dos quais são suspeitos e outros pertencem a comunidades cristãs dissidentes. Este é o homem que se encarrega de censurar o Catecismo holandês, mas que tolera a difusão dos erros dogmáticos que ele contém. Este é o homem que autoriza o Catecismo francês, cujos erros, omissões e distorções da Verdade revelada são tanto mais graves quanto é destinado às crianças, mas que investiga os desvios da fé no mundo inteiro. Este é o homem que proclama Maria Mãe da Igreja, mas que permite que inúmeros clérigos de todos os escalões manchem a pureza do seu nome. Este é o homem que reza em São Pedro e na Câmara de Reflexão nas Nações Unidas, de estilo maçônico. Este é o homem que dá audiência a duas atrizes deliberada e provocantemente vestidas com minissaias, mas que depois fala contra a crescente onda de sexualização no mundo. Este é o homem que diz ao Pastor Boegner que os católicos não são suficientemente maduros para o controle da natalidade com “a pílula”, mas que publica Humanæ vitæ, permitindo que esta seja contestada por conferências episcopais inteiras.

Este é o homem que proclama que a lei sobre o celibato clerical nunca será abolida, mas que permite que seja questionada incessantemente, ao mesmo tempo que facilita aos padres que desejam casar-se. Este é o homem que proíbe a comunhão na mão, mas que a permite, autorizando mesmo certas igrejas, por indulto especial, a ter leigos a distribuir as hóstias sagradas. Este é o homem que lamenta a “auto-destruição da Igreja”, mas que, apesar de ser o seu chefe e cabeça, nada faz para a impedir, deixando-a acontecer com o seu próprio consentimento. Este é o homem que emite a Nota prævia sobre os seus poderes, mas que permite que ela seja descartada no Sínodo de Roma como ultrapassada e relegada ao esquecimento, etc.

Poder-se-ia continuar a enumerar as contradições do Papa. O próprio homem é uma permanente contradição e versatilidade, bem como uma ambiguidade fundamental.

Por isso, há duas possibilidades.

Um homem que não consegue ultrapassar as suas próprias contradições internas e que as mostra abertamente a todos, não consegue ultrapassar as contradições externas com que se depara no governo da Igreja. É um Papa fraco e indeciso, como outros na história da Igreja, que esconde as suas vacilações por detrás de uma torrente de retórica que o imperador Juliano, chamado o Apóstata, chamou, falando dos bispos arianos do seu tempo que a praticavam tão habilmente, “a arte de minimizar o que importa, exagerar o que não importa e substituir a realidade das coisas pelo artifício das palavras”. Às vezes, em uma única frase de um discurso papal, o preto e o branco são combinados e reconciliados por truques sintáticos.

A segunda hipótese não é menos provável: o Papa sabe o que quer e as contradições que apresenta são apenas aquelas que um homem de ação, movido pelo objetivo que quer atingir, encontra-as no seu caminho e com as quais não está minimamente preocupado, levado como está pela força da sua ambição.

A este respeito, podemos presumir, sobretudo depois do Novus Ordo Missæ e da nova Missa, que a intenção de Paulo VI é reunir numa única ação litúrgica o clero e os leigos das várias confissões cristãs. Como qualquer político experiente, o Papa sabe que é possível unir pessoas com “opiniões filosóficas e religiosas” fundamentalmente diferentes, como dizíamos nos encontros da minha juventude. Se assim for, podemos esperar, num futuro próximo, novas manifestações de ação ecumênica pontifícia, segundo o modelo das manobras políticas.

É verdade que as duas interpretações do comportamento de Paulo VI podem ser combinadas. Um homem fraco foge da sua fraqueza ou, mais precisamente, de si mesmo, e mergulha numa ação em que as contradições são apenas fases diferentes das mudanças essenciais à própria ação. Esses temperamentos estão claramente voltados para o mundo e para as metamorfoses que ele implica e que influenciam as suas ações. Pode-se, então, aceitar sem dificuldade um “novo catecismo”, inconciliável com o catecismo antigo, “porque há um mundo novo”, como dizem os bispos franceses, e, na linguagem do mundo, “um mundo novo” não tem nada em comum com o anterior, assim como uma moda nova não tem nada em comum com uma moda antiga. “Por isso, já não é possível, acrescentam, considerar os ritos como permanentemente fixos em um mundo em rápida evolução”. Estejamos avisados: a nova missa é como a revolução permanente que agrada a todos os adolescentes e adultos que ainda não ultrapassaram as suas crises de puberdade, porque mascara as contradições que não conseguem ultrapassar, precisamente porque essas contradições são parte integrante deles.

Os epígonos manifestam este traço de forma mais evidente, e até mesmo exagerada. Marx dizia que a história repetia a tragédia de Napoleão I como comédia no reinado Napoleão III. Do mesmo modo, um certo bispo belga, que me parece uma espécie de mini-Paulo VI, acaba de ser encarregado de apresentar a nova missa ao público perplexo. “Isto, declarou ele em termos risíveis, marca o primeiro capítulo final da reforma litúrgica em curso desde o Vaticano II”. Assegura-nos que haverá um segundo capítulo final, e depois um terceiro, e assim por diante, sem parar. O homem que tenta fugir de si próprio através da mudança nunca o alcança, apesar dos seus esforços por vezes cômicos.

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Nesta perspectiva, é difícil encontrar dois papas na história que tenham divergido mais radicalmente do que São Pio X e Paulo VI.

Reli recentemente a encíclica Pascendi. Em quase todas as páginas, constato que aquilo que o primeiro rejeita, o segundo aceita, tolera e apoia.

São Pio X foi a rocha da doutrina, um homem que não abandonou o seu posto e nem o seu povo durante a tempestade, e que não fugiu a nenhuma das suas responsabilidades, como Paulo VI admite ter feito no notável discurso que pronunciou a 7 de dezembro de 1968: “Muitos esperam do Papa gestos dramáticos e intervenções enérgicas e decisivas. O Papa não acredita que deva seguir outra linha que não seja a da confiança em Jesus Cristo, a quem a sua Igreja está confiada mais do que a qualquer outro. É Ele quem acalmará a tempestade”.

São Pio X não era o homem de governo exclusivamente pastoral que Paulo VI pretendia ser no seu discurso de 17 de fevereiro de 1969, onde se dizia “aberto à compreensão e à indulgência”. Pelo contrário, foi um Papa que seguiu o exemplo dos seus predecessores, que defendeu a sã doutrina com extrema vigilância e firmeza inabalável, empenhado em salvaguardá-la de qualquer dano, recordando o mandato do Apóstolo: “Guarda o bom depósito” (2 Tim. I, 14)

Para São Pio X, “Jesus Cristo ensinou que o primeiro dever dos Papas é guardar com a maior vigilância o depósito tradicional da fé, rejeitando as novidades profanas das palavras”, contra “aqueles que desprezam toda a autoridade e, apoiando-se numa falsa consciência, tentam atribuir ao amor da verdade aquilo que é na realidade o resultado do orgulho e da obstinação”. Nunca teria admitido, como Paulo VI insinuou muitas vezes, que “a verdade se encontra igualmente nas experiências religiosas” de outras religiões e que o mesmo Deus é comum aos judeus, muçulmanos e cristãos. Ele nunca “concedeu honras aos mestres do erro”, como Marie-Dominique Chenu e a sua laia, “de modo a fazer crer que a sua admiração não se destina apenas às pessoas, que talvez não sejam desprovidas de mérito, mas aos erros que professam e defendem abertamente”.

São Pio X nunca teria sugerido que “o culto nasce de uma necessidade, pois tudo no sistema dos modernistas se explica por impulsos ou necessidades interiores”. Quantos textos de Paulo VI poderíamos enumerar aqui que afirmam exatamente o contrário, especialmente o seu discurso de 26 de novembro de 1969, onde justificou o seu repúdio do latim e do canto gregoriano na nova missa invocando a suposta necessidade de o povo de compreender a sua oração e de participar do ofício “na sua língua quotidiana”. São Pio X não aprovou a “grande ansiedade dos modernistas em encontrar uma forma de conciliação entre a autoridade da Igreja e a liberdade dos crentes”, como faz constantemente Paulo VI. Ele não professou “aquela doutrina perniciosíssima que faria dos leigos um fator de progresso na Igreja” e nem procurou “compromissos e transações entre as forças de conservação e de progresso na Igreja, a fim de realizar as mudanças e o progresso exigidos pelo nosso tempo”. Da mesma forma, São Pio X não seguiu o método “puramente subjetivo” que leva os modernistas “a colocarem-se na posição e na pessoa de Cristo e depois a atribuírem-Lhe o que teriam feito nas mesmas circunstâncias”, como faz Paulo VI quando afirma, depois de ter decretado unilateralmente o uso da missa nova, que a sua vontade “é a vontade de Cristo, o sopro do Espírito que chama a Igreja a esta transformação”, acrescentando, pateticamente, para mostrar que a sua inspiração coincide com a inspiração divina (embora especifique que não é o caso no seu Credo), que “este momento profético que atravessa o Corpo místico de Cristo, que é a Igreja, sacode-a, acorda-a e obriga-a a renovar a arte misteriosa da sua oração” (26 de novembro de 1969). “O que é mais seguro, dizia São João da Cruz, é fugir das profecias e das revelações, e se nos for revelada alguma coisa de novo em matéria de fé [a lex orandi é também lex credendi, e toda a novidade manifesta no culto é novidade na fé] não se deve de modo algum consentir nela” (Subida do Monte Carmelo, 1. II, cap. 19 e 27).

Por fim, não é evidente que, por detrás das intervenções de Paulo VI na cena mundial, se esconde a convicção, que São Paulo X rejeitava como perniciosa, de que “o Reino de Deus foi-se desenvolvendo lentamente no decurso da história, adaptando-se sucessivamente aos diferentes meios pelos quais passou, tomando emprestado deles, por assimilação vital, todas as formas […] que lhe serviram de propósito”?

Como John H. Knox observou num artigo penetrante na National Review (21 de outubro de 1969), não há dúvida de que “nunca houve e provavelmente nunca haverá um papa que tenha tentado tanto agradar aos liberais e que partilhe tão sinceramente tantas das suas crenças”. E, no entanto, Paulo VI, num ato de suprema contradição, rotula este progressismo de modernismus redivivus!

Em todo o caso, Paulo VI partilha evidentemente o objetivo principal dos modernistas de tornar a Igreja Católica aceitável para as igrejas não católicas e mesmo para todos os regimes ateus, como sugere o seu recente discurso de Natal (e muitos outros anteriores): A China e a Rússia merecem agora a deferência e a estima dos católicos! Recordemos o seu apoio entusiástico à juventude chinesa que Mao mobilizou para a “Revolução Cultural”!

Trata-se de um sonho, de uma ilusão cuja vaidade o próprio Evangelho nos revela: a Igreja, por mais chamativa que se tente fazer, nunca será amada pelo mundo. Por mais dura que seja a nossa avaliação de Paulo VI, devemos dizer, em última análise, que, apesar das inegáveis qualidades do seu coração, o atual Papa vê sistematicamente as coisas de forma diferente do que elas são. O seu espírito é falso.

Como todos os falsos espíritos, é inconscientemente cruel. Enquanto um contemplativo é gentil, um homem de ação que, como Paulo VI, vê o objetivo da sua ação através de uma lente onírica, é impiedoso para com as pobres almas de carne e osso que não vê ou, se vê, considera como obstáculos. Assim se explica a inflexibilidade do caráter de Paulo VI, aparentemente contraditória com a sua incapacidade de governar a Igreja. Um homem de ação é quase sempre desumano, mas quando se move numa atmosfera milenar e espiritualmente triunfante, é preciso então ter medo… Paulo VI avançará, sem olhar para trás, esmagando todas as resistências…

A menos que Deus lhe abra os olhos… Isso seria um milagre…

*

Resta-nos tentar incorporar na nossa vida a obrigação que São João da Cruz menciona numa das suas cartas: “Para ter Deus em todas as coisas, é preciso não ter nada em todas as coisas”. A Igreja entrou na Noite Escura dos sentidos e do espírito, a porta de entrada para a Aurora. A sua condição convida-nos a entrar na nossa.

Esta fonte eterna está escondida nas profundezas,

Bem sei onde tem a sua nascente,

Embora seja noite!

Fim.

 

* (Marcel De Corte nasceu na Bélgica em 1905 e morreu em 1994. Filósofo, herdeiro da grande tradição aristotélica, contemporâneo de Jacques Maritain, Étienne Gilson, Gabriel Marcel e Gustave Thibon, ensinou na Universidade de Liège até 1975. Colaborador frequente da revista católica Itinéraires e autor de mais de vinte obras de reflexão filosófica, interessou-se nomeadamente pelas evoluções sociais decorrentes da Revolução Francesa e da Revolução Industrial, principalmente no que diz respeito à desintegração moral e social do homem moderno).