Fonte: DICI – Tradução: Dominus Est
Caros fiéis, amigos e benfeitores,
Estamos vivendo um momento muito especial da história, excepcional por assim dizer, com a crise do coronavírus e todas as repercussões que ela teve. Milhares de perguntas surgem em tal situação, para as quais haveria outras tantas respostas a dar. Seria utópico pretender dar uma solução a cada problema em particular, e não é esse o propósito destas poucas reflexões. Ao contrário, gostaríamos de analisar aqui um perigo de certo modo mais grave do que todos os males que atualmente afligem a humanidade: é o perigo que os católicos correm de reagir de forma excessivamente humana ao castigo que atualmente atinge nosso mundo, tornado pagão através de sua apostasia.
Com efeito, durante várias décadas, esperávamos um castigo divino, ou alguma intervenção providencial que viesse remediar uma situação que, durante muito tempo, poderia nos parecer perdida. Alguns imaginavam uma guerra nuclear, uma nova onda de pobreza, um cataclismo, uma invasão comunista ou mesmo um choque petrolífero… Em suma, poderíamos esperar algum evento providencial pelo qual Deus puniria o pecado da apostasia das nações, e suscitaria reações salutares entre aqueles que estivessem bem dispostos. Em todo caso, esperávamos algo que revelasse os corações. Porém, se não há necessariamente os contornos que prevíamos, as angústias pelas quais estamos passando, sem dúvida, desempenham esse papel revelador.
O que está acontecendo com a crise que vivemos agora? Procuremos analisar os sentimentos que estão conquistando os corações dos nossos contemporâneos e procuremos, sobretudo, examinar se as nossas disposições para conosco, católicos, são capazes de se elevar ao nível de nossa fé.
Medos demasiado humanos
Para simplificar, descobrimos três tipos de medo que estão hoje emaranhados em quase todos os homens e que esgotam todas as suas energias.
Em primeiro lugar, existe o medo da epidemia como tal. Não se trata aqui de discutir a nocividade do coronavírus: mas o certo é que nosso mundo sem Deus se apega à vida mortal como sendo seu bem absoluto, diante do qual todos os outros se inclinam e perdem sua importância. Inevitavelmente, portanto, essa perspectiva distorcida engendra uma ansiedade universal e incontrolável. O mundo inteiro parece estar enlouquecendo. Hipnotizados pelo perigo que ameaça a “prioridade das prioridades”, literalmente em pânico, todos se mostram fundamentalmente incapazes de refletir sobre outra questão, ou de se elevar acima de uma situação que está acima de seu controle.
Depois, há o espectro da crise econômica. Evidentemente, é perfeitamente normal que um pai se preocupe com o futuro de seus filhos, e Deus sabe que nessa época as preocupações mais legítimas abundam. Mas quero falar sobre esse medo mais geral e, definitivamente, muito mais egoísta, que é o se tornar um pouco mais pobre e de não poder mais gozar do que era considerado como garantido e objeto de direitos intocáveis. Esta perspectiva está estreitamente ligada à anterior: porque se a vida aqui embaixo é o bem supremo, as riquezas que nos permitem desfrutá-la mais, ou tanto quanto possível, tornam-se também, por necessidade, um bem supremo.
A tudo isso, finalmente, acrescenta-se o medo da perda das liberdades individuais, da qual os homens têm desfrutado até agora. Nunca antes houve uma consciência tão geral dos “direitos humanos”.
Poderíamos desenvolver longamente a análise desse medo triplo e de tudo o que está relacionado a ele. Digamos apenas que seu fundamento é essencialmente natural, puramente humano, e que poderíamos resumi-lo nesta preocupação de que nada será como antes da crise: esse “antes” sendo confundido e universalmente percebido como bem-estar ideal e inalienável, cuja gloriosa conquista iluminou a humanidade.
Porém, se analisarmos a fundo esse medo e os comportamentos que ele provoca, paradoxalmente encontraremos subterfúgios semelhantes aos que os pagãos da antiguidade utilizavam para explicar qualquer fenômeno que estava acima de seus conhecimentos. Este mundo antigo, reconhecidamente cultivado, civilizado, organizado, mas infelizmente ignorante da Verdade, recorreu a monstros, a deuses de todos os tipos e, sobretudo, a mitos grosseiros, para traduzir o que não se conseguia compreender. Hoje, assistimos a reações semelhantes: face ao medo, face à incerteza do futuro, nasce toda uma série de explicações, indo em todas as direções, sistematicamente contraditórias entre si, e que se entrelaçam indefinidamente. Sua inconsistência é manifestada pelo fato de serem continuamente superadas, no espaço de algumas horas ou semanas, com explicações mais sofisticadas, mais refinadas, aparentemente mais convincentes, mas não necessariamente mais verdadeiras. Estamos perante mitos reais, onde elementos reais se confundem com histórias fictícias, sem que sejamos capazes de indicar os limites. E vemos germinar uma grande aspiração a alguma solução milagrosa, utópica, capaz de dissipar de uma só vez essas névoas e resolver todos os problemas.
É um pouco como o antigo grito de confusão, angústia e desespero que reaparece, passados dois mil anos, em uma humanidade novamente tornada pagã. E não poderia ser de outra forma: mostra, para quem sabe ver, como a humanidade sem Deus está desamparada e fadada à loucura. Acima de tudo, é notável que o homem moderno que perdeu sua fé e, portanto, não acredita mais, esteja disposto a acreditar em tudo sem um verdadeiro discernimento.
Nossa esperança está ancorada no céu
Mas, no que nos diz respeito, temos certeza de que estamos completamente imunes a esse espírito? É claro que os três medos que acabamos de mencionar são compreensíveis e, até certo ponto, legítimos. O que não é legítimo é deixar que esses medos impeçam ou sufoquem qualquer consideração sobrenatural e, sobretudo, que comprometam a possibilidade de se beneficiar dessa provação.
Com efeito, nunca nos esqueçamos que só permanecemos na realidade e na verdade se mantivermos um olhar baseado na fé. Nada escapa a Deus e à sua Providência. É certo que, acima das contingências que nos atingem, Deus tem um plano preciso. E que a lembrança aos homens de sua condição mortal, bem como da fragilidade de seus projetos, pertence a este plano.
Deus mostra em primeiro lugar ao homem de hoje, envenenado pelo positivismo (esta negação de uma ordem divina), que a natureza que o rodeia é Sua obra e que obedece às Suas leis. Deus faz o Prometeu moderno, doutrinado pelo transumanismo (essa negação dos limites do homem), entender que a natureza que Ele criou escapa à técnica e ao controle das ciências humanas. Esta é uma lição extremamente necessária, especialmente hoje em dia. Devemos valorizá-la cuidadosamente e torná-la nossa, mais ainda que o homem moderno, cego por seu sonho de poder absoluto, se tornou incapaz de a agarrar. E devemos encontrar ali um novo estímulo para adorar a grandeza de Deus e viver intimamente em sua dependência.
Mais concretamente, o que nos diria Nosso Senhor, Aquele a quem nada escapa e que tudo previu de antemão? “Por que temeis, gente de pouca fé? Não acreditais que sou verdadeiramente Deus, que sou verdadeiramente todo-poderoso, que dirijo tudo na minha sabedoria e na minha bondade? Existe um único fio de cabelo em vossas cabeças que cai sem meu conhecimento e minha permissão? Não sou Eu o mestre da vida e da morte? Achais que um vírus pode existir sem mim? Que os governos podem promulgar leis sem que eu permaneça o Senhor? O que poderia acontecer se eu estivesse com vós no barco, no meio da tempestade?“
Todo o problema está aí, ou seja, na resposta que podemos dar a essas perguntas. Nosso Senhor está realmente no barco de nossa alma? Em caso afirmativo, temos realmente este olhar de fé, que nos permite interpretar cada acontecimento do nosso quotidiano à Sua luz? Conseguimos manter total confiança Nele, mesmo quando não compreendemos bem o que está acontecendo? As respostas eternas que nossa fé nos oferece são suficientes ou sentimos necessidade de diluí-las naquelas, continuamente atualizadas, que podemos encontrar na internet? Os meses que se passaram aumentaram nossa confiança em Nosso Senhor ou contribuíram para nos fechar em nós mesmos e em nossa confusão? Cada um de nós deve responder a essas perguntas com sinceridade, diante de sua consciência.
Existem também alguns entre nós que temem, além da própria epidemia, a eclosão de uma perseguição de longo prazo contra o culto e, em particular, contra os cristãos. É compreensível que surja esta questão, porque sabemos muito bem que o mundo nos odeia e que mais cedo ou mais tarde isso tem que acontecer: seja durante a epidemia ou independente dela. Não vamos escapar disso. Esta é uma verdade evangélica, muito antes de qualquer previsão sobre a atual debandada: “Ouvireis falar de guerras e revoltas”, diz-nos Nosso Senhor; “Levantar-se-á nação contra nação, reino contra reino. Haverá grandes terremotos por várias partes, pestes e fomes; […] Levantar-vos-ão as mãos, e vos perseguirão; entregando-vos às sinagogas, nas prisões, e vos levarão à presença dos reis e dos governadores por causa de meu nome.[1] . “
Mas aqui também, nosso medo deve banhar-se na luz reconfortante de nossa fé: “Não tenhais medo” [2]. Tendo sido advertidos disso há muito tempo, devemos preparar-nos para tal, pacificamente, abandonando-nos incondicionalmente nas mãos da Providência, e sem procurar desesperadamente os meios de evitar essa perseguição. Pensemos nos cristãos dos primeiros séculos em meio à perseguição: aqueles que olhavam muito de perto os perseguidores, os instrumentos de tortura ou as feras, esquecendo-se do Deus de amor que os chamou para se unirem a Ele, não viram nada além do perigo, dor, medo…e acabaram apostatando. Não lhes faltavam informações claras, mas sua fé não era forte o suficiente, e não haviam sido suficientemente alimentadas pela oração ardente: “Velai, pois, sobre vós, para que não suceda que os vossos corações se tornem pesados com as demasias do comer e do beber, com os cuidados desta vida e para que aquele dia vós não apanhe de improviso, porque ele virá como um laço sobre todos os que habitam sobre a face de toda a terra. Vigiai, pois, orando sem cessar, a fim de que vos torneis dignos de evitar todos esses males que devem suceder e de aparecer com confiança diante do Filho do homem[3] . “
E então Nosso Senhor também nos adverte: “Não é o servo maior do que seu senhor. Se eles me perseguirem a mim, também vos hão de perseguir a vós [4] . Em qualquer prova existe o meio secreto e precioso de nos vermos configurados ao nosso Salvador, ao nosso modelo, e assim poder “completar na nossa carne o que falta aos sofrimentos de Cristo[5] .”
Finalmente, há uma reflexão final que pode nos ajudar a aderir à realidade e deixar o coronavírus em seu lugar. Paralelamente a esta crise atual, a Igreja atravessa outra muito mais terrível e devastadora, que deve nos afetar muito mais. Ai de nós se assim se não for assim, porque seria um sinal de que já não temos um olhar de fé! Esta outra crise é de fato muito mais mortal, pois aqueles que perderam sua fé por causa dela correm o risco de perder suas almas para sempre. A isso se soma, infelizmente, na atual conjuntura, a ausência total de uma mensagem sobrenatural da hierarquia da Igreja sobre os efeitos do pecado, sobre a exigência da penitência, sobre o amor à cruz, a preparação para a morte, o julgamento que aguarda todos os homens. Na verdade, é uma catástrofe dentro de uma catástrofe.
Quanto a nós, portanto, não percamos a esperança, que não se baseia nem no nosso esforço, nem nas nossas qualidades, nem nas nossas análises – por mais relevantes que sejam – mas nos infinitos méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo. É a ele que devemos sempre nos voltar, mais especialmente quando estamos sobrecarregados e curvados sob o fardo. É especialmente para nós que O conhecemos, um dever de caridade para com aqueles que vivem na trágica ignorância desta realidade tão reconfortante. Se realmente desejamos ser apóstolos de nosso próximo, nestas horas privilegiadas, o apostolado mais eficaz e adequado é o do exemplo de uma confiança ilimitada na Providência divina. Existe uma forma exclusivamente cristã de carregar a cruz e de esperar. Nosso desejo de voltar à normalidade deve ser, antes de tudo, o de recuperar totalmente essa confiança, alimentada pela fé, esperança e caridade.
Para obter estas graças preciosas, redobremos todos o nosso fervor, pais e filhos, na Cruzada do Rosário que nos aproxima e nos une, para que a nossa oração ardente encontre aí os acentos ardentes aos quais Deus não resiste. Pela Missa e pelas vocações, pelo mundo e pela Igreja, pelo triunfo da Virgem Maria.
Esta é a verdadeira saída da crise, sem esperar pelo fim da epidemia!
“Quem nos separará, pois, do amor de Cristo? (Será) a tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a espada? Segundo está escrito: Por ti somos entregues à morte todos os dias, somos reputados como ovelhas para o matadouro (Sl 44,23). Mas de todas estas coisas saímos mais que vencedores por aquele que nos amou. Porque seu estou certo que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas presentes, nem as futuras, nem as virtudes, nem a altura, nem a profundidade, nem nenhuma outra criatura nos poderá separar do amor que Deus nos manifesta em Jesus Cristo Nosso Senhor [6] .”
Deus vos abençoe!
Menzingen, 2 de fevereiro de 2021, na festa da Purificação da Santíssima Virgem Maria
Dom Davide Pagliarani, Superior Geral da FSSPX
Notas
- Lev 21, 9-12
- Lev 21, 9
- Lev 21, 34-36
- Jo 15,20
- Col 1, 24
- Rm 8, 35-39
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NOTA DO BLOG: Dois textos recentemente publicados que vão de encontro à essa Carta de nosso Superior Geral podem ser lidas nos links abaixo:
“NOSSA ÚNICA PREOCUPAÇÃO”- PE. GABRIEL BILLECOCQ, FSSPX
ELES TREMIAM DE MEDO ONDE NÃO HAVIA NADA A TEMER – PE. FRÉDÉRIC WEIL, FSSPX