DEVER DE ESTADO OU DEVERES DE ESTADO

O que é esse “dever de estado” que frequentemente é objeto de nossos exames de consciência?

Fonte: Le Seignadou (set/22) – Tradução: Dominus Est

A expressão “dever de estado” não aparece no Evangelho, nem no restante das Sagradas Escrituras. Parece estar ausente dos escritos dos primeiros Doutores da Igreja para aparecer apenas muito tardiamente. Encontramo-la nos escritos de São Francisco de Sales, na Introdução à Vida Devota (especialmente nos capítulos 3 e 8 da primeira parte). Ou ainda no Catecismo de São Pio X: “Por deveres do próprio estado entendem-se aquelas obrigações particulares que cada um tem por causa do seu estado, da sua condição e da situação em que se acha. (…) Foi o mesmo Deus que impôs aos diversos estados os deveres particulares, porque estes derivam dos seus divinos Mandamentos. No quarto Mandamento, sob o nome de pai e mãe, entendem-se também todos os nossos superiores; assim deste Mandamento derivam todos os deveres de obediência, de amor e de respeito dos inferiores para com os seus superiores e todos os deveres de vigilância que têm os superiores sobre os seus inferiores.” (Catecismo de S. Pio X, 3º parte, capítulo 5)

O que pensar disso? O cumprimento do dever de estado é uma obrigação moral descoberta apenas mais tarde?

Uma expressão muito vaga

Na realidade, essa lenta e tardia aparição da palavra se deve à reviravolta da mentalidade do homem moderno. Mais ou menos marcado pela filosofia moderna que se afasta da realidade das coisas, o homem hoje prefere falar uma linguagem abstrata. Ele falará, portanto, do “dever do estado”, expressão geral que tem a vantagem muito interessante de permanecer vaga e confusa… e, portanto, não permitir identificar claramente qual é o dever envolvido. Portanto, como cumprir um dever do qual não conhecemos seus precisos contornos? Como saber se cumprimos nossa obrigação? A expressão “dever do estado”, por mais necessária que seja, não deixa de ser demasiado confusa.

Algumas luzes sobre o assunto serão encontradas quando soubermos que os Antigos, isto é, os escritores da antiguidade greco-romana, e também os primeiros Padres da Igreja, falaram em uma linguagem mais concreta. Seu realismo fazia com que evocassem os “deveres” (no plural) desta ou daquela profissão ou função na sociedade, ou seja, as atitudes moralmente boas a adotar em nesta ou naquela situação. Cícero, por exemplo, assim evoca o que se deve fazer para ser um homem honesto em seu tratado “De officiis”. Santo Ambrósio retomará esta ideia escrevendo “De officiis ministrorum”, enquanto a A Pastoral do Papa São Gregório Magno explica e detalha todos os deveres incumbidos a um Bispo ou a um Superior eclesiástico.

Mas quais são esses “deveres do estado”? Um “estado” é uma situação estável e permanente que afeta uma pessoa. Existem, de fato, vários “estados” e, por conseguinte, outros tantos deveres que lhes são inerentes. Assim, por exemplo, o mesmo homem é ao mesmo tempo criatura em relação a Deus, filho em relação aos pais, pai em relação aos filhos, empregado em relação ao seu patrão, cidadão em relação a sociedade em que vive, membro da Igreja em virtude de seu batismo, etc. Este homem terá, portanto, muitos deveres de estado: rogar a Deus, honrar seus pais, educar seus filhos, obedecer a seu chefe, tomar parte na vida da Igreja e da sociedade, e assim por diante. Encontra-se, além disso, no final de quase todas as epístolas de São Paulo, uma lista de vários conselhos e recomendações dirigidas a cada categoria de pessoas, e isso de acordo com seus respectivos deveres. “Vós, pois, como escolhidos de Deus, santos e amados, revesti-vos de entranhas de misericórdia, de benignidade, de humildade, de modéstia, de paciência; sofrendo-vos uns aos outros, e perdoando-vos mutuamente, se algum tem razão de queixa contra o outro; assim como o Senhor vos perdoou a vós, assim também vós (deveis perdoar aos outros).  Mas, sobretudo os fiéis devem viver para o céu. Sem honra, sem valor diante de Deus isto, tende caridade, que é o vínculo da perfeição; e triunfe em vossos corações a paz de Cristo, à qual também fostes chamados para (formar) um só corpo; e sede agradecidos. (…) Tudo o que fizerdes, em palavras ou por obras, (fazei) tudo em nome do Senhor Jesus Cristo, dando por ele graças a Deus Pai. Mulheres, estai sujeitas a vossos maridos, como convém, no Senhor. Maridos, amai vossas mulheres, e não sejais ásperos para com elas. Filhos, obedecei em tudo a vossos pais, porque isto é agradável ao Senhor. Pais, não provoqueis à indignação os vossos filhos, para que se não tornem pusilânimes. Servos, obedecei em tudo os vossos senhores temporais, não servindo só quando sob as (suas) vistas, como para agradar aos homens, mas com sinceridade de coração, temendo a Deus. Tudo o que fizerdes, fazei-o de boa vontade, como (quem o faz) pelo Senhor, e não pelos homens; sabendo que recebereis do Senhor a herança (do céu) como recompensa. Servi a Cristo SenhorAquele, pois, que cometer injustiça, receberá segundo o que fez injustamente; e não há acepção de pessoas diante de Deus (Col, 3,12-25)

Voltar ao real, ao concreto

Devemos então dizer “dever do estado” ou “deveres do estado”? Devemos usar o singular ou o plural nesse contexto? Pode parecer um pouco sem sentido ou inútil debater sobre o assunto… Mas, ao contrário, a questão é importante, não tanto por si mesma, mas por suas consequências. Por um lado, supomos que é mais fácil saber quais são os deveres dos Estados a cumprir quando os consideramos de forma concreta e no plural, do que permanecermos numa linguagem abstrata. Por outro lado, considerar uma ação concreta a ser tomada (rogar a Deus, educar os filhos, fazer o trabalho solicitado pelo patrão, etc.) permite também conhecer mais facilmente se deve agir. 

É a realidade tangível do ato a ser realizado que dita a forma pela qual ele é realizado. O cumprimento dos deveres de cada estado equivale, portanto, ao exercício das virtudes cristãs, que são elas mesmas o cumprimento do decálogo. É mais fácil perceber isso em um exemplo. Na confissão alguém pode acusar-se “por não ter cumprido seu dever de estado“. Fica muito vago… e pode facilmente corresponder a um aluno que não fez um exercício de matemática em aula, a um pai que não dedica tempo para educar seus filhos, ou mesmo a um empregado, que passa várias horas de seu tempo de trabalho em seu celular. A gravidade da ofensa a Deus nesses vários casos não é a mesma, é claro! 

Então, como pode a alma progredir na vida cristã e corrigir seus defeitos se não sabe claramente o que deve fazer e o que deve evitar? É aí que percebemos que há uma vantagem em conversar com ele(padres) sobre seus deveres na vida real, concreta, e sobretudo as virtudes a serem implementadas para cumprir essas obrigações. Com efeito, isso torna a vida moral mais entusiasmante ao apresentá-la em sua verdadeira luz: uma vida que nos conforma a Deus pela virtude; e não uma vida de obrigações do tipo protestante: “faça isso, não faça aquilo!”. 

Além disso, esta forma concreta de encarar as coisas também torna possível compreender com maior clareza o papel que assumimos na vida social. Contrariamente ao individualismo contemporâneo, o homem cristão recorda de que faz parte de um todo, da sociedade, da Igreja, e que deve participar em seu lugar na atividade desse todo. Os diferentes estados que afetam cada homem são as muitas funções que ele deve cumprir em relação aos outros. E está mais conforme à realidade considera-las como responsabilidades em vista um bem comum do que vê-las, simplesmente, apenas como imperativos morais.

São José, modelo de fidelidade aos seus deveres

O Papa São Pio X dirigiu uma oração a São José e na qual pedia-lhe a graça de bem cumprir seu dever de estado. O Santo Pontífice enumera, nessa ocasião, todas as virtudes e qualidades da alma que convém por em atividade a fim de cumprir as obrigações de maneira cristã. 

Glorioso São José, modelo de todos os que se dedicam ao trabalho, obtende-me a graça de trabalhar com espírito de penitência para expiação de meus numerosos pecados; de trabalhar com consciência, pondo o culto do dever acima de minhas inclinações; de trabalhar com recolhimento e alegria, olhando como uma honra empregar e desenvolver pelo trabalho os dons recebidos de Deus; de trabalhar com ordem, paz, moderação e paciência, sem nunca recuar perante o cansaço e as dificuldades; de trabalhar sobretudo com pureza de intenção e com desapego de mim mesmo, tendo sempre diante dos olhos a morte e a conta que deverei dar do tempo perdido, dos talentos inutilizados, do bem omitido e da vã complacência nos sucessos, tão funesta à obra de Deus!

Tudo por Jesus, tudo por Maria, tudo à vossa imitação, ó Patriarca São José! Tal será a minha divisa na vida e na morte. Amém.

Tudo é dito aqui. A fidelidade no cumprimento dos diversos deveres exigidos pelos diferentes Estados é a garantia da salvação. Com a condição de não submeter estes deveres, mas de vê-los em sua verdadeira luz: servir ao Bom Deus na caridade e honrá-Lo desenvolvendo os dons que Ele nos deu. Dessa forma, podemos ter um verdadeiro “culto do dever”, não por um bem próprio, mas porque é o Criador e o Redentor a quem, dessa forma, servimos. Ao chegar a noite de nossa vida, podemos então ouvir-nos dizer: “Está bem, servo bom e fiel, já que foste fiel em poucas coisas, dar-te-ei a intendência de muitas; entra no gozo do teu senhor. (Mt, 25, 21).

Pe. François Delmotte,FSSPX