DO NOVO SUPREMACISMO AO TRANSCOMUNISMO

La Cappa eBook de Marcello Veneziani - EPUB Livro | Rakuten Kobo Brasil

Extraído do livro La Cappa, de Marcelo Veneziani – Tradução de Gederson Falcometa

Deixemos a arte e a literatura e voltemos ao mundo atual que se pretende corrigir. O que leva as pessoas dotadas de razão, algumas das vezes eruditas, a se tornarem intolerantes, teimosas, incivilizadas, rudes; qual é o dispositivo mental, a mácula, que gera preconceitos e legitima novas obtusidades? O primeiro vício decorre da rejeição da realidade em prol da representação ideológica e moralista: mascarar a realidade para esconder, corrigir, padronizar, negar as diversidades, a dura verdade. Se algo não agrada ou contrasta com o esquema, as conotações são alteradas. Moralismo corretivo.

O segundo é inverter a causa e o efeito. Denunciar a repressão mas esquecer a violência ou o abuso a que reage; aliás, inverte a sequência, a violência reage à repressão, é um protesto contra ela.

O terceiro é usar o caso para quebrar a regra. Se houver um abuso na família ou se um policial cometer um crime, inicia o processo a família ou as forças de ordem, se invocam leis especiais contra eles, se deslegitimizam. Mas um em cada cem casos de abuso mostra que a regra geral vale para todos os outros. Perde-se o senso das proporções entre a realidade e as suas degenerações, destroem-se as instituições e derrubam-se as regras em nome da exceção para refazer a norma.

O quarto é tomar a parte pelo todo, o que como figura retórica é chamado de sinédoque. No campo adverso existem em suas margens também minorias extremistas, negacionistas, violentos; então todo esse mundo será tachado de extremista, negacionista, violento. E se entre mil opiniões você expressou uma que é considerada inadequada, será crucificado por isso. Reducionismo: o todo reduzido a uma parte, uma palavra suprime o contexto.

Quinto, como mais um reforço da tese precedente, surge o abuso da propriedade transitiva: se A é próximo de B e B tem relações com C que foi visto com D, o resultado é que A e D são cúmplices, da mesma coisa; o teorema é confirmado ignorando a realidade e a lógica, os vínculos e as diferenças. Afinal, com o sistema de vasos comunicantes e da cumplicidade progressiva, qualquer um pode ser reduzido a criminoso.

O sexto é subverter o senso comum: o que é real é irracional, o que é natural é antinatural, o que é usual ou majoritário é desprezível e inaceitável. E isso porque a realidade é apenas prisão e imposição da qual devemos nos libertar. O senso comum é uma ideologia prevaricante, deve ser corrigida. Eu sou o que quero ser: a realidade não existe, mas é como a vejo neste instante. Pura subjetividade momentânea. Ao aplicar esta regra, o sétimo, o relativismo oportunista, triunfa. O mesmo fato é julgado de forma oposta se for realizado por sujeitos opostos por finalidade, ideologia, pertencimento. Aqueles que estão de determinado lado certo podem dizer e fazer o que os outros são proibidos. Se parece escandaloso e deplorável para alguns, torna-se compreensível para outros. Para ater-se ao velho Gramsci, a violência (ou cesarismo) é progressiva ou regressiva dependendo de quem a perpetra: nós ou eles.

Quem discorda é delinquente, o deliquente é um dissidente da sociedade. Segue-se, em oitavo lugar, o moralismo intermitente que rejeita a natureza, a realidade, a tradição. Salvo apelar-se à indulgência em caso de crimes ou criminosos de categorias protegidas: nestes casos deve-se compreender o contexto, a situação. E se são práticas generalizadas, por que negá-las ou processá-las, melhor legalizá-las. Nono, a rejeição das diferenças naturais, às quais opor tutela e tutores, próteses e suportes, para que qualquer seleção e competição, mesmo profícua, seja neutralizada e distorcida. Ajudar os desfavorecidos é bom e correto, mas deletar todo mérito, capacidade e excelência, mata a sociedade, a qualidade e a aspiração de melhorar. Por fim, o décimo ponto pode ser definido como o prêmio da infidelidade: incentivar e apoiar qualquer mudança de status, de sexo, de relacionamento, porque a liberdade é a negação do destino, da origem e da natureza. Daí a primazia do mutante e do nômade; mal é o que persiste e quem persevera em sua identidade.

A partir dessas premissas toma forma um novo e velho monstro global, ainda que mutante: o transcomunismo. Alinham-se os seguintes fatores dispersos: a hegemonia mundial de um comunismo geneticamente modificado, como o chinês, hibridizado com o mercado global e com o uso capilar de novas tecnologias, reforçado em seu dirigismo pela pandemia e pela expansão comercial que está colonizando o mundo; o desembarque em massa de migrantes no Ocidente, um proletariado mundial que “não tem pátria” – como diziam Marx e Engels – e “não tem nada a perder a não ser suas correntes”; a dominação planetária, a partir dos Estados Unidos, da ideologia corretiva que quer «abolir o estado atual das coisas», como prescreve o Manifesto Comunista, e substituí-lo por uma nova humanidade; a recaída da biopolítica sobre os direitos civis, a ideologia transgênero que modifica a natureza humana e subverte as identidades, as definições e as conotações sexuais; finalmente, as mensagens de Bergoglio sobre a abolição “moral” da propriedade privada e sobre o destino comum de todos os bens: o papa é candidato a capelão militante do novo comunismo “terceiro-mundista”. Percursos diversos, mas levam a esse objetivo: o transcomunismo. Pode-se objetar que o comunismo acabou há décadas, mesmo que sobreviva em algumas áreas; é grotesco ainda falar de comunismo. Pode ser verdade, mas ainda falamos de nazi-fascismo e ele morreu com sangue no distante 1945. Se o fascismo é uma categoria eterna, o ur-fascismo, como Eco o definiu, então não é insensanto falar de ur-comunismo com sua mutação transgênica, suas variantes para se adaptar ao novo. Quem acredita em Befanas também acreditará em bruxas…

Como aqui a história e a cultura não têm nada a ver com isso, mas apenas a psicose, a paranóia e a especulação, vamos nos divertir aplicando o teorema de Eco ao comunismo. Ecoando seu texto, não em um desconto na Versão ur-comunista. Por outras palavras, o comunismo é eterno, não terminou com o Muro de Berlim, com a queda da URSS ou com a mutação dos comunistas, mas continua vivo, não só como mentalidade, mas como um verdadeiro regime no país mais populoso do mundo, a China.

Hoje o proletário é chamado de migrante, a revolução se faz com desembarques e direitos civis, as classes a serem resgatadas hoje são os negros, os ciganos, as mulheres, os homossexuais e os transexuais. Opondo-se aos Ur-comunistas são “as forças obscuras da reação que estão à espreita”, como se chamavam os oponentes na época do comunismo. Tudo o que é real e natural merece ser apagado e derrubado. É preciso manter viva a memória histórica, lembrou Eco, para se opor ao fascismo; o mesmo se passa com o comunismo, o regime que mais fez vítimas entre mais povos e num período histórico mais longo e mais próximo de nós. O comunismo no poder também tem um histórico peculiar: matou mais comunistas do que qualquer outro regime. Ao contrário das outras ditaduras do século XX, o comunismo no poder exterminou seus próprios povos e seus próprios militantes e o fez sem a necessidade de guerras, nacionalismos e racismos. Porque opõe o mundo melhor e perfeito ao mundo real e imperfeito. O comunismo teria sua nobreza se fosse realizado voluntariamente, por aqueles que renunciam a seus rendimentos e propriedades em favor dos pobres. Mas a pretensão aberrante do comunismo é forçar toda a sociedade a assumir a utopia igualitária e niveladora. Méritos e habilidades não contam, propriedade é roubo, riqueza é abuso e privilégio, nascimento em um lugar é mero acidente. E no fundo a pretensão de “endireitar o mundo”, uma forte versão strong do corretismo.

Há anos destacamos a virada liberal da esquerda oriunda do comunismo e do socialismo, que coincidiu com a deriva neoburguesa e neocapitalista. Mas algo novo está acontecendo: a linha radical se acentua e recomeçam obrigações e proibições, censuras, remoções e restrições dos espaços de liberdade: surge a casa da intolerância, entre totens e tabus, interditos e intocáveis, e dispensa cânones corretivos. Por um lado, a New Left marcha ao lado da sociedade neoburguesa e neocapitalista, elogia a globalização, coloca-se no Ztl do establishment, é a guarda vermelha do poder econômico, burocrático, judiciário, midiático e intelectual. E nesse contexto, engaja-se em campanhas por uma sociedade permissiva, mais individualista e global. Mas por outro lado remonta a alma radical e as batalhas liberistas e de libertação são ladeadas por batalhas corretivas e punitivas para trazer a sociedade de volta aos módulos rígidos e uniformes do PC. Um caso de esquizofrênia: liberal na esfera privada e radical na esfera pública, permissiva e intolerante.

Mas qual é a relação entre cultura progressista e liberdade? Os filósofos políticos do passado recente, de Isaiah Berlin a Ralf Dahrendorf até a Norberto Bobbio, distinguiram entre liberdade de e liberdade para, ou entre liberdade negativa, como um não-impedimento, ausência de restrições, típica do liberalismo, e liberdade positiva, que, ao contrário, está relacionada à emancipação, à justiça social e à igualdade. A posição descendia de Nietzsche que colocava um outro tema: liberdade para fazer o quê? Por outras palavras, a qualidade e a dignidade da liberdade medem-se pelo uso que dela se faz e pela forma como se vive. A implicação é que a liberdade não é igual para todos, mas diferentes graus e diferenças devem ser reconhecidas e não podem terminar em igualdade e homogeneização.

Historicamente, a ideia de liberdade no mundo progressista, antifascista e marxista coincidiu com a ideia de libertação. Libertação dos povos e indivíduos do jugo da tradição, das hierarquias sociais e de classes, dos regimes autoritários, repressivos ou mesmo burgueses ou, como diziam, «da democracia formal». A liberdade individual era subordinada à libertação-emancipação das massas, o coletivo prevaleceu sobre o pessoal, a classe sobre o indivíduo. Hoje, a mesma esquizofrenia observada acima se aplica: isto é, a libertação individual com relação à natureza, sexo, tradição, esfera privada, é acoplada à coerção social em questões públicas, históricas, políticas, ideológicas e de saúde. Aqui se aplica a camisa de Nessus, a cama de Procusto, enfim, o regime de restrição e intolerância.

As políticas econômicas dos progressistas refletem a oscilação entre esses dois polos: por um lado, há de fato a conversão ao livre mercado, ao privado, ao capital, mas, por outro, permanece a ideia punitiva de golpear, taxar as fontes de riqueza, as atividades empresariais, a livre iniciativa, as propriedades e as casas. (O ódio pela casa própria é um dos pontos de convergência entre o comunismo, os seus derivados radicais e o capitalismo financeiro). Um capitalismo híbrido e contraditório, com perigosas intermitências de liberdade, promove no plano prático o desenraizamento que o progressismo persegue no plano ideológico. Mas não conhecemos regimes capital-progressistas bem misturados de coerção e libertação, com um consenso popular real, amplo e duradouro.

A tudo isso se soma o uso intolerante do antifascismo para censurar cada adversário, mantê-lo sob sopapos, empurrando-o de volta ao passado infame. É o paradoxo da deriva contrária a liberdade em nome da própria liberdade: um abuso que traz artificialmente de volta à vida experiências historicamente encerradas há várias décadas, com o objetivo de desqualificar opositores, afetando a liberdade de opinião, a diversidade de julgamentos históricos e subjugando a verdade e a realidade ao moralismo ideológico discriminatório. Assim são ao mesmo tempo permissivos e intolerantes: marchar pela libertação e ser inimigos da liberdade. É o pensamento duplo orwelliano inerente ao politicamente correto; ou a dupla verdade, antecâmara dos novos totalitarismos.

Para onde leva o politicamente correto? Ao Partido Conformista Internacional e suas filiais locais. Outrora o Partido Conformista, ainda sigla PC, era de extração clerical e moderada porque pressupunha a adesão a rituais e liturgias, tradições e legados de costumes e clichês a serem preservados; hoje, e não a partir de hoje, ele é de extração progressista e radical, ainda que permaneça clerical à sua maneira, mesmo separado de qualquer fé religiosa. A hegemonia do Partido Conformista e Progressista já foi denunciada na década de 1950 por um pensador livre e não de direita como Albert Camus. Num ensaio de 1957, O socialismo das potências, publicado na Itália em «Tempo presente», Camus escreveu: «O conformismo hoje é de esquerda, é preciso ter a coragem de dizê-lo. É verdade que a direita não brilha por perspicácia. Mas a esquerda está em plena decadência, prisioneira das palavras, enredada no seu vocabulário, capaz apenas de respostas estereotipadas, nunca à altura da verdade, da qual também pretendia tirar as suas próprias leis. A esquerda é esquizofrênica e deve curar-se, com críticas implacáveis, exercício do coração, raciocínio decisivo e com um pouco de modéstia”.

Camus capta os primeiros sinais do jargão politicamente correto, o enrijecimento da mente e do coração, a atrofia das faculdades intelectuais e críticas, a falta de modéstia, ou melhor, «a arrogância antipatriótica e o complexo de superioridade para com o povo», como ele observou nos mesmos anos Giacomo Noventa, também um socialista e democrata sui generis. Para Camus, a verdade não depende da posição de quem defende uma tese, mas da autenticidade na busca da verdade: «um jornal, um livro não são verdadeiros porque são revolucionários. Eles só têm chance de serem revolucionários se tentarem dizer a verdade» (Em luta contra o destino correspondência com Nicola Chiaromonte). Uma lição traída.

Além do desprezo pela verdade, o politicamente correto tem dois inimigos irredutíveis: a realidade do mundo e a variedade dos homens; de identidades, sensibilidades e opiniões. Corrigir significa padronizar, adequar a realidade ao protótipo. Fim das diferenças, essência qualitativa da liberdade. E pensar que até ontem todos se professavam liberais; ai de quem não se definir como tal…