Que a Igreja possui poder sobre os sacramentos, isso é certo. Mas determinar a extensão exata desse poder pode revelar-se um tanto complexo.
Fonte: Courrier de Rome n° 662 – Tradução: Dominus Est
Uma situação complexa
Se um homem casado recebe o sacramento da Ordem, ele desobedece gravemente a lei da Igreja latina, mas o sacramento da Ordem é validamente recebido, desde que a matéria, a forma, o ministro e a intenção estejam presentes. Este homem casado é verdadeiramente um padre. É certo que ele está proibido de exercer seu ministério, mas se desobedecer e rezar uma Missa, esta Missa será válida. Por outro lado, se um padre tenta se casar, o seu matrimônio é inválido, em virtude de uma decisão da Igreja. Não há, portanto, paridade entre as duas situações, o que pode parecer estranho. Pode-se pensar que o matrimônio se opõe à recepção da Ordem da mesma forma e com as mesmas consequências que a Ordem se opõe à recepção do matrimônio. No entanto, no caso, a desobediência à lei da Igreja torna o sacramento apenas ilícito, enquanto no outro o sacramento é inválido, ou seja, nulo.
A Igreja não errou ao arrogar-se o poder de estabelecer impedimentos matrimoniais dirimentes, isto é, invalidantes?
Daí segue uma objeção:
Objeção
Um sacramento é infalivelmente eficaz se as condições exigidas por Cristo forem atendidas. A Igreja não tem o poder de declarar inapta uma matéria ou forma sacramental apta. A Igreja não pode, portanto, constituir, por direito eclesiástico, senão impedimentos proibitivos. Ela também pode declarar impedimentos dirimentes de direito divino. Mas ela não tem o poder de estabelecer impedimentos dirimentes de direito eclesiástico, isto é, não tem o poder de tornar inválido e nulo um matrimônio que, segundo o direito natural e a vontade de Cristo, é válido.
A mesma dificuldade é encontrada com a exigência da forma canônica do matrimônio. Antes do Concílio de Trento, os casamentos clandestinos eram válidos. Portanto, um jovem poderia casar de forma verdadeira, válida e sacramental com uma jovem sem a presença de testemunhas. A simples troca de consentimentos era suficiente. Mas a Igreja, em 1563, exigiu a presença de testemunhas para a validade do matrimônio, de modo que a partir de então um casamento clandestino era inválido, de acordo com a lei eclesiástica(1). Dessa forma, a Igreja não está excedendo seus direitos ao impor tais exigências?
A validade de um sacramento
Para responder à objeção, recordemos que, para receber um sacramento, são necessárias certas condições. Na ausência dessas condições, o sacramento é inválido, ou seja, nulo, ou apenas ilícito, ou seja, válido, mas proibido? Santo Tomás responde fazendo uma distinção: “A natureza do sacramento supõe, no sujeito que o recebe, condições tais que, sem elas, ninguém pode se beneficiar do sacramento ou de seus efeitos. Outras condições são impostas, não pela natureza do sacramento, mas por alguma lei cujo propósito é honrar o sacramento. Quem não as possui recebe o sacramento, mas não o seu efeito.”(2)
Em outras palavras, existem dois tipos de impedimentos ou incapacidades sacramentais. Os primeiros são consequência da própria natureza do sacramento. Se estiverem presentes, o sacramento não é apenas ilícito, mas também inválido. Por exemplo, um homem quer batizar seu cachorro, uma mulher quer receber o sacerdócio, um não batizado quer receber a confirmação, um louco quer se casar. Nessas situações, nada acontece, não há sacramento.
Por quê?
Porque o sujeito é radicalmente inapto. Para ser batizado, é preciso possuir uma alma racional. Para ser padre, é preciso ser do sexo masculino. Para receber a confirmação, é preciso ter recebido o sacramento que é a porta para os outros (batismo). Para contrair o matrimônio, é preciso entender o que é um compromisso vitalício.
O segundo tipo de impedimento é exigido não pela natureza do sacramento, mas por uma lei positiva de Deus ou da Igreja. Esses impedimentos tornam o sacramento ilícito e infrutífero, mas não inválido. Por exemplo, um batizado em estado de pecado mortal recebe a Confirmação, uma criança recebe o sacramento da Ordem, um homem que fez voto particular de castidade se casa. Nessas situações, quem recebe o sacramento desobedece gravemente à lei de Deus ou à Igreja, de modo que não recebe a graça. Mas o sacramento existe, de modo que o batizado em estado de pecado mortal recebeu verdadeiramente o caráter da Confirmação, a criança tornou-se verdadeiramente sacerdote, o homem que fez um voto particular de castidade está verdadeiramente ligado por toda a vida à sua esposa. Nestas situações, a matéria é apta, embora as condições para receber o sacramento não estejam em conformidade com a vontade de Deus e da Igreja.
A Igreja respondeu solenemente, no Concílio de Trento, à questão dos impedimentos ao matrimônio: “Se alguém disser que só aqueles graus de consanguinidade e de afinidade que se declaram no Levítico (Lv 18, 6 ss) podem impedir de contrair matrimonio e dirimi-lo depois de contraído; ou que a Igreja não pode dispensar de alguns desses impedimentos ou estabelecer outros [graus] que impeçam e dirimam — seja excomungado.”(3).
“Se alguém disser que a igreja não pôde estabelecer impedimentos dirimentes do matrimonio, e que errou ao estabelecê-los — seja excomungado.”(4).
No entanto, essas afirmações claras e solenes do Magistério não fornecem a explicação. Qual é a origem de tal poder?
A especificidade do sacramento do matrimônio
A resposta teológica baseia-se no fato de que o matrimônio não é apenas um sacramento, mas também um contrato. Ora, ninguém contesta que a autoridade tem o poder de determinar certas condições para a validade dos contratos estabelecidos entre seus sujeitos. Por exemplo, a legislação civil pode estabelecer que um contrato é nulo se a data não constar nele. Da mesma forma, a autoridade eclesiástica tem o poder de estabelecer condições para que o contrato de casamento entre os batizados seja válido. Ao fazê-lo, ela não altera a substância do sacramento do matrimônio.
Eis a explicação do Cardeal Gasparri: “É verdade que a Igreja não pode fazer com que uma matéria e uma forma aptas, substancialmente inalteradas, se tornem inaptas para o sacramento. Por exemplo, que o vinho, permanecendo vinho, não seja mais apto para o sacrifício da Missa. Entretanto, a matéria e a forma aptas para o sacramento podem mudar substancialmente e, então, tornar-se impróprias. Por exemplo, o vinho, uma vez que se tornou vinagre, não é mais adequado para o sacrifício da Missa. Ora, no nosso caso, visto que a matéria e a forma do sacramento do matrimônio residem no contrato válido, a Igreja não pode garantir que o contrato válido deixe de ser matéria e forma aptas ao sacramento do matrimônio. Mas ela pode tornar o contrato inválido e, portanto, tem o poder de alterá-lo substancialmente. Consequentemente, não é de estranhar que seja inapto para o sacramento do matrimônio” (5).
O Dicionário de Direito Canônico diz, no mesmo sentido: “O poder soberano da Igreja se estende até mesmo aos impedimentos dirimentes, que tornam o contrato nulo. O caráter sacramental do matrimônio não o impede, pois, ao declarar certas pessoas inaptas para contrair, a autoridade eclesiástica afeta diretamente o contrato e indiretamente o sacramento, que só existe conjuntamente com um contrato válido” (6).
Analogia ao sacramento da ordem?
A história da Igreja nos traz uma referência que esclarecerá nosso argumento. Na Idade Média, a ganância dos clérigos os levou à prática da simonia. Os sacramentos eram avaliados em dinheiro, o que é um sacrilégio. Para combater esses graves abusos, alguns Papas, especialmente nos séculos XI e XII, pensaram que poderiam declarar inválidas as ordenações episcopais e sacerdotais simoníacas. Por exemplo, está escrito no cânon 10 do primeiro Concílio de Latrão, que ocorreu em 1110: “O que foi decidido para os simoníacos, nós também confirmamos de acordo com o julgamento do Espírito Santo por nossa autoridade apostólica. Assim, tudo o que foi adquirido, seja nas ordens sagradas ou nos assuntos eclesiásticos, mediante promessa ou doação em dinheiro, decidimos ser nulo e nunca poderá ter qualquer valor. Quanto àqueles que conscientemente aceitaram ser consagrados – ou melhor: profanados – por simoníacos, declaramos totalmente nula a sua efeito” (7). Estas palavras implicam que o Sumo Pontífice tem o poder de declarar nulo um sacramento que, sem esta intervenção, seria válido. No entanto, se houver matéria, forma e ministro com a intenção de fazer o que a Igreja faz, como pode o sacramento ser inválido? Na realidade, segundo a opinião dos teólogos que estudaram esses casos, os Papas que o fizeram simplesmente se enganaram. Eles acreditavam que seu poder se estendia onde, de fato, não se estende (8). As ordenações simoníacas são válidas, não importa o que os Papas digam. Com efeito, escreve Santo Tomás: “O pecado de simonia não impede a recepção do sacramento. Pode, porém, impedir a recepção da graça se houver pecado da parte de quem recebe o sacramento” (9). É claro que tais ordenações são gravemente ilícitas e culpáveis, mas isso é outro assunto.
Conclusão
Parece, portanto, que o matrimônio é um sacramento único, porque somente ele foi instituído por Cristo por modo de contrato. Ora, são as partes contratantes que são a causa eficiente de um contrato. Se esses contratantes estão sujeitos à Igreja pelo batismo, ela pode estabelecer impedimentos que tornem os contratantes inelegíveis para o matrimônio.
Santo Tomás explica a mesma coisa: “Os impedimentos são atribuídos ao matrimônio, e não aos outros sacramentos, porque (…) o casamento tem a sua causa em nós e em Deus, enquanto a causa dos outros sacramentos está somente em Deus” (10). E mais adiante: “O matrimônio tem por causa o consentimento dos contratantes: o mesmo não acontece com a Ordem cuja causa sacramental é determinada por Deus. Além disso, a Ordem que precede o matrimônio pode impedir que este seja válido, enquanto o matrimônio não pode invalidar a Ordem: a eficácia dos sacramentos é infalível, ao passo que os atos humanos podem encontrar impedimentos” (11).
Dessa forma, a Santa Igreja possui maior poder sobre o matrimônio do que sobre os outros sacramentos.
Pe. Bernard de Lacoste, FSSPX
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(1) Concílio de Trento, Decreto Tametsi, Dz 1814.
(2) Suppl. q. 39 art. 1.
(3) Sessão 24, Dz 1803.
(4) Sessão 24, Dz 1804.
(5) Tractatus canonicus de matrimonio, t. 1, n° 276.
(6) DDC de Naz, art. Impedimentos do matrimônio, t. 5, col. 290.
(7) Dz 707.
(8) Cardeal Journet, A Igreja do Verbo Encarnado, volume 1, § 6 do Excursus 2, pág. 143 e Albert Michel em O Amigo do Clero 1953, pág. 722. Este último conclui: “Os papas que procederam às “reordenações” foram vítimas de um erro de facto”.
(9) IV Sent. dist. 25 q. 3.
(10) Suppl. q. 50 ad 1.
(11) Suppl. q. 53 art. 4 ad 5.