LEI DA ORAÇÃO OU LEI DA FÉ/CRENÇA? O MOVIMENTO ECCLESIA DEI

Loi de la prière ou loi de la croyance ? • La Porte Latine

A ilusão do Movimento Ecclesia Dei foi pretender separar os dois em nome da causa tradicional.

Fonte: Courrier de Rome n°649 – Tradução: Dominus Est

A Missa em Lille, celebrada há quase 50 anos por D. Lefebvre em 29 de agosto de 1976(1), ficou marcada, sem dúvidas, aos olhos do grande público e da mídia, como o ponto culminante da reação dos fiéis católicos à reforma litúrgica inaugurada pelo Papa Paulo VI sete anos antes, em 3 de abril de 1969, com a promulgação do Novus Ordo Missae. Durante esses anos, vozes foram ouvidas e as colunas do Courrier de Rome foram amplamente abertas a todos os experientes teólogos e canonistas da época, que se tornaram os intrépidos defensores do Missal dito “de São Pio V”. Isso foi particularmente evidenciado nas edições de 1973-1974, onde o Pe. Raymond Dulac (1903-1987)(2), Pe. Jacques-Emmanuel des Graviers(3), o professor Louis Salleron (1905-1992)(4) e seu filho Pe. Joseph de Sainte-Marie (1932-1984)(5) tentaram justificar o vínculo dos católicos ao seu rito, ao rito católico e romano da Missa, até agora expresso no Missal dito “de São Pio V”, na versão dada pouco antes do Concílio Vaticano II pelo Papa João XXIII. Todos aqueles que contribuíram para o Courrier de Rome naqueles anos fizeram-no, em grande parte, para defender o direito, o bom direito dos católicos de receber da Igreja a Missa de sempre, a Missa celebrada segundo o Missal dito “de São Pio V”.

2. Essas reflexões chamaram a atenção de D. Aimé-Georges Martimort (1911-2000), co-fundador do Centro Nacional de Pastoral Litúrgica (1943), perito no Concílio Vaticano II (1962-1965), professor do Instituto Católico de Toulouse e consultor da Congregação para o Culto Divino. Em um estudo intitulado “Mas o que é a Missa de São Pio V?” publicado no jornal La Croix de 26 de agosto de 1976(6), ele procurou identificar mais de perto “as razões de uma oposição”. Pois é disso que se trata: o vínculo ao Missal conhecido dito “de São Pio V” é apenas a consequência de uma recusa: a recusa do novo Missal de Paulo VI. Por que essa recusa?

3. É necessário reconhecer em D. Martimort o mérito de ter rejeitado as explicações insuficientes ou incompletas, recordadas demasiadamente pelos meios de comunicação. A recusa do Novus Ordo Missae de Paulo VI não se justifica fundamentalmente apenas em razão dos abusos que se pode ocasionar durante esta ou aquela celebração, tampouco pela introdução de certas práticas, como o fato de celebrar de frente do povo, ou pelo uso da língua vernácula, ou ainda pelo abandono de algumas outras práticas, como o uso do latim e do canto gregoriano. Também não seria, ainda fundamentalmente, a notável modificação das orações do ofertório, das palavras da consagração, nem a introdução de novas orações eucarísticas.

4. A verdadeira razão desta recusa, como D. Martimort pensa ter descoberto ao ler os escritos dos primeiros editores do Courrier de Rome, encontra-se perfeitamente expressa, diz ele, “em um estudo de 29 páginas intitulado: Breve exame critico do Novus Ordo missae”, escrito por dois padres italianos e dirigido a Paulo VI pelos cardeais Ottaviani e Bacci.

Na carta de apresentação, explicaram ao Papa que este novo Missal, “considerando-se os novos elementos amplamente suscetíveis a muitas interpretações diferentes que estão nela implícitos ou são tomados como certos – representa, tanto em seu todo como nos detalhes, um surpreendente afastamento da teologia católica da Missa tal qual formulada na sessão 22 do Concílio de Trento”. A carta terminava com o desejo de que não fosse retirada “a possibilidade de continuar a recorrer ao íntegro e fecundo Missal Romano de São Pio V”. Em última análise, para D. Martimort, a “nova missa de Paulo VI”, contra a qual essas críticas foram dirigidas, era apenas um símbolo. “A reforma da liturgia da Missa”, escreveu ele na conclusão de seu estudo, “é a manifestação mais tangível, popular e universal da obra de aggiornamento da Igreja empreendida por João XXIII, proposta pelo Concílio e implementada pelo Papa Paulo VI”. A recusa do novo Missal de Paulo VI é a recusa das novidades do Concílio Vaticano II. A Missa de Paulo VI é, portanto, de fato, a Missa do Concílio.

5. Não é de se admirar. Pois é precisamente esta recusa que representa, em um primeiro momento lógico, a única razão, séria e convincente, de uma ligação inabalável ao Missal dito “de São Pio V”. Esse apego, com efeito, nada mais é do que o desejo de conformidade à lei da oração de sempre, à antiga Lex orandi, ainda hoje observada. E encontra sua motivação na recusa de uma lei de oração, de uma Lex orandi, que claramente parece ser, no mínimo, duvidosa. Encontramos aqui a aplicação de um princípio do direito segundo o qual, quando uma nova lei, que deveria revogar a anterior, parece nula ou mesmo simplesmente duvidosa, a lei precedente deve permanecer em vigor, até uma nova ordem e como por defeito(7). O dito Missal de São Pio V deve, portanto, permanecer a norma, a lei de oração da Igreja, Lex orandi in Ecclesia, pelo próprio fato de que a reforma de Paulo VI é duvidosa.

Em um segundo passo lógico, essa dúvida é propriamente motivada na observação feita pelo Breve exame crítico apresentado ao Papa Paulo VI pelos Cardeais Ottaviani e Bacci. A legitimidade de um novo Missal, que se afasta de maneira impressionante, em geral e nos detalhes, dos ensinamentos do Concílio de Trento, é certamente duvidosa. E este “afastamento”, observável na nova liturgia da Missa de Paulo VI é apenas “a manifestação mais tangível, popular e universal” do afastamento observável nos ensinamentos do Concílio Vaticano II. A nova lei da oração é, portanto, duvidosa na medida em que se desvia da lei da fé, já firmemente estabelecida ao longo dos séculos. É, com efeito, próprio da lei da oração estabelecer a lei da fé, pois a liturgia é, em si mesma, uma profissão de fé. O Papa Celestino I tornou-se famoso por ter dado a este princípio a sua formulação clássica e insuperável: legem credendi lex statuat supplicandi(8). A lei da oração estabelece a lei da fé. Desta lei de fé já estabelecida, nenhuma lei posterior de oração pode afastar-se, sob pena de cessar pelo próprio fato de ser o que deveria ser: Lex orandi in Ecclesia. O Missal de Paulo VI representa tanto menos para a liturgia da Igreja uma norma indubitável, quanto mais se afasta da doutrina católica claramente estabelecida. Por conseguinte, o argumento baseado no direito tem suas raízes em outro argumento, baseado na doutrina.

6. O vínculo ao dito Missal dito “de São Pio V” encontra, em última análise, sua justificação no vínculo à profissão de fé católica, mas através da recusa do Missal de Paulo VI, que está muito distante desta profissão de fé. Como, então, pretender permanecer ligado ao Missal dito “de São Pio V” sem recusar o Missal de Paulo VI? Tal seria o desafio de um argumento que se tornou puramente canônico ou legal. Recusando então a possibilidade de declarar duvidosa a legitimidade do novo Missal de Paulo VI, os fiéis católicos ligados ao antigo Missal dito “de São Pio V” não teriam outra solução senão reivindicar um regime de exceção, uma lei particular baseada nas necessidades pastorais, ou mesmo uma simples tolerância. 

Foi precisamente a intenção de conceder tal regime excepcional que presidiu a todos os indultos pelos quais tanto o próprio Paulo VI como João Paulo II concederam o uso do antigo Missal. O Motu proprio Summorum pontificum de Bento XVI faz parte dessa abordagem, da qual representa o resultado mais formal. Por parte da Santa Sé, entendemos que o uso do Missal tradicional não poderia pretender ser melhor. Mas do lado daqueles que reivindicam mais e melhor, há um desafio em querer retirar o benefício da Missa dentro de limites que, em princípio, permanecerão sempre muito estreitos. Este é o desafio das comunidades do Movimento Ecclesia Dei, pelo menos aqueles que gostariam de se reconhecer como beneficiários do Motu proprio Summorum pontificum do Papa Bento XVI. Este último quis fazer da aceitação do Missal de Paulo VI, reconhecido como lei ordinária da oração na Igreja, a condição sine qua non para o uso do Missal dito “de São Pio V”, considerado como lei extraordinária da oração na Igreja. Longe de restituir a este Missal anterior a 1969 suas “chancelas”, a iniciativa de Bento XVI apenas confirma as de seus predecessores. E pelo Motu próprio Traditionis custodes, o Papa Francisco apenas limitou-se a rever os limites dentro dos quais o uso do chamado Missal “de São Pio V” deve, em qualquer caso, permanecer prisioneiro.

7. A ilusão do Movimento Ecclesia Dei foi pretender separar – em nome da causa tradicional – a lei da oração e a lei da fé. Hoje, o Papa Francisco nos demonstra claramente que essa ilusão foi mortal. O Motu proprio Traditionis custodesé, sem dúvida, uma grande desolação para a santa Igreja de Deus. Mas devemos ao menos reconhecer nele o mérito de destacar o sentido e o alcance do Motu proprio Summorum pontificum, e assim dissipar, esperamos, essa ilusão mortal que gostaria de esquecer o grande princípio lembrado pelo Santo Papa Celestino: legem credendi lex statuat supplicandi . A Lei da oração é inseparável da Lei da fé.

Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX

Notas

  1. Bernard Tissier de Mallerais, Marcel Lefebvre, une vie. Clovis, 2002, p. 516.
  2. Para alguns elementos biográficos, ver o estudo do Pe. Grégoire Célier, “L’abbé Dulac et le droit à la messe traditionnelle” nas Atas do XIII Congresso Teológico do Courrier de Rome (14 e 15 de janeiro de 2017), p. 32-34
  3. Para alguns elementos biográficos, ver também o estudo de Jacques-Régis du Cray, “Des prêtres au secours de la doctrine et du sacerdoce”, ibidem, p. 26-27.
  4. Louis Salleron possui – felizmente – sua página na Wikipedia.
  5. Cf. Jacques-Régis du Cray, ibidem, p. 27-28.
  6. Disponível no site “Sacrosanctum concilium. Nove sed non nova”, página de domingo, 1º de janeiro de 2012.
  7. Código de Direito Canônico de 1917, cânon 6: “Se é duvidoso que uma disposição do Código esteja em desacordo com a lei antiga, é necessário ater-se ao que esta última decide”.
  8. São Celestino I (422-432), Indiculus, capítulo 8, DS 246.