NA TEMPESTADE DO MUNDO – A MULHER FORTE

tempFacta est quasi navis institoris, de longe portans panem suum. (Prov. XXXI, 14)
Ela converte-se n’um como navio d’um mercador, que traz de longe as suas riquezas 

Senhoras,

A mulher deve vigiar o interior de sua casa; está nisto um dos princípios dos seus deveres. Não se humilha nunca descendo às minudencias do lar, porque é um modo de descer que em nada compromete a dignidade, a autoridade e o caráter. Nós vemos todos os dias a luz do sol, que, sem nada perder do seu brilho e da sua esplendida majestade, a toda parte chega, iluminando os planos mais inferiores. O trabalho manual, qualquer que seja a sua forma, quer se fie a lã ou o linho, quer se tome o fuso ou a agulha, quer se vigie a cozinha ou a preparação dos vestidos, o trabalho manual é um dos maiores e mais úteis recursos na vida das mulheres. Ora um dos cancros da nossa época é vê-lo abandonado, ou, pelo menos, raramente praticado.

Quer isto dizer que o trabalho intelectual deve ser abandonado e que o papel da mulher tem de limitar-se à vigilância da cozinha e ao fabrico de rendas?

Cremos ter estabelecido o contrário, indicando-vos a linha do centro entre todos os extremos. Sem querer fazer de vós mulheres sábias, o que seria um papel ridículo e comprometedor sob diversos pontos de vista; sem querer obrigar todas as mulheres a estudarem, o que, muitas vezes, seria impossível, pareceu-nos que para várias, que para algumas e em diferentes graus de iniciação, o estudo é uma coisa muito útil, e fácil nos foi confirmar estes princípios por autoridades consideráveis, e em particular, pelo exemplo da mãe de santo Agostinho. Continuemos a explicação do livro dos Provérbios, seguindo sempre a ordem dos versículos.

“Ela converte-se n’um como navio d’um mercador, que traz de longe as suas riquezas”.

Um navio a mulher!

Esta idéia da Escritura parece-me tão bela e tão fecunda em bosquejos cheios de graça e de verdade, que vos solicito permissão para nela me deter, e, até, para a ela consagrar inteiramente esta conferência. Devo dizer-vos que este entretenimento é absolutamente rochelez, porque o compus com as minhas recordações dos passeios à beira-mar.

Vede aquele navio habilmente construído; é gracioso e solido, e quando se lança sobre as vagas, munido de todas as velas, elegante e donairoso, é um dos ornamentos do oceano. De longe poderia ser tomado por uma ave gigantesca, que, com as asas abertas, adejasse sobre a superfície líquida.

– Construção do Navio

Não basta que o navio seja gracioso; é necessário que seja solidamente construído para que se não desconjunte na primeira agitação, nem sossobre com a primeira rajada de vento. Mas escolheu-se a madeira para o construir; trabalharam-se com minucioso cuidado os materiais que se juntaram com toda a arte. Algumas vezes, quando a embarcação é de grande lote e tem de afrontar o mar largo, forra-se de cobre, para que possa resistir a todos os choques, e para que o ferro, depois de ter sofrido uma preparação elétrica, se não oxide ao contato da água.

Maravilhosa imagem da mulher forte!

Ela é graciosa como um navio bem construído: a sua palavra, os gestos, os modos, tudo tem a beleza e a elegância da embarcação. Ela é o ornamento da família e da sociedade; nas reuniões de pessoas gradas apresenta-se como as yoles que se admiram no nosso porto, cuja história e origem se desejam conhecer. Ela é a aplicação viva da letra da Bíblia:

A mulher graciosa encontrará a glória: Mulier gratiosa inveniet gloriam (Prov. XI, 16)

Mas a graça seria inútil, tornar-se-ia, até, perigosa, se não fosse acompanhada; assim a mulher forte é sólida como navio, o seu temperamento cristão é vigoroso, e ela pode resistir aos grandes mares, afrontar as vagas não respeitosas e continuar a sua derrota pelo meio delas; é forrada e cavilhada de cobre, isto é, de virtudes sérias, à prova do choque das paixões. Gosta de permanecer na onda salgada entre os perigos as vida, porque se conserva intacta, fazendo respeitar o pavilhão de sua família.

– Velas do Navio

O navio tem numerosas velas, de todas as grandezas, de todas as formas e em todas as posições; tem-nas para qualquer direção do vento; desfranda-as com engenhosa arte e segundo as circunstâncias, e ora são todas soltas, perfeitamente pandas, apresentando um formoso quadro aos olhos do espectador, ora parecem reservar-se produzindo-se somente em uma ordem, e conforme uma escolha determinada. Quando os ventos são contrários, a embarcação, inteligente, aproveita-os ainda no seu fim, manobra habilmente, parece desviar-se da sua derrota e corre por diferentes abordagens, forçando o vento espantado a tornar-se-lhe favorável. Em tempo seco, quando a calmaria no mar apresenta a imagem da imobilidade, a embarcação utiliza-se de um recurso que a ciência lhe põe à disposição; ascende as caldeiras, e agita-se um movimento desconhecido, e o mar é obrigado, no meio da sua surpresa, a abrir-lhe uma larga e rápida esteira.

A mulher forte também tem velas no espírito e no coração; possui uma multidão de recursos, que combinados com toda a honra, retidão e probilidade, servem para a conduzir na direção sempre difícil dos negócios do mundo. Quando o vento é favorável navega com todas as velas, e deixa que o sopro da prosperidade a conduza ao porto suspirado, mas como sábio piloto põe os olhos no vento e não confia na fixidez das coisas deste mundo, como o marítimo na constância do oceano.

Tanto que ela percebe uma modificação nos homens ou nas coisas, varia as suas combinações com a retidão de uma alma prudente, dispõe os meios para as conseqüências e arria as velas que seriam inúteis a até perigosas. Se o vento se torna absolutamente contrário, a mulher forte muda logo de orientação, dá outra posição ao barco, põe inteira confiança na vigorosa construção dele, tem a certeza da contextura sólida das velas, e, todavia, não é tão temerária que lute, face a face, com a tempestade. Adota uma posição média, em que se tomam as abordagens, em que se força o vento a cair obliquamente sobre as velas com ímpetos moderados, com força demasiado fraca para poder virar o navio, mas bastante poderosa para lhe poder dar um impulso, e fazê-lo ir precisamente aonde o vento não quereria … Depois, se o vento cessa rapidamente e a derrota da embarcação é ameaçada de outro contratempo – a calmaria – a mulher forte recorre ao vapor, a energia da sua alma, ao vigor de uma caráter rijamente temperado.

Quero dizer que a mulher com a finura do seu espírito, com a ductilidade do seu caráter, a flexibilidade da sua natureza, a perspicacidade da sua inteligência e a faculdade adivinhadora do seu coração, pode, quando põe todos os recursos á disposição da sabedoria e da virtude, livrar-se de todos os perigos, de todas as situações difíceis, e forçar, pouco e pouco, todos os elementos contrários a prestarem-lhe justiça e a auxiliá-la na sua viagem. 

Mas para conseguimento disto, senhoras, é necessário que pertençais a classe das mulheres fortes, na calmaria, e possuir-vos do vigor moral; é preciso que haja alguma coisa de viril no vosso caráter. A mulher perde demasiadas vezes o equilíbrio no meio da tempestade, e cai desfalecida; ou agita-se ela própria, e altera-se algumas vezes, mais tempestuosamente ainda que o mar. Em tais violências ou prostrações o navio sofre sempre.

Não nos cansamos em contemplar a graciosa embarcação. 

Tem ela uma qualidade muito preciosa e muito rara, qual é a de se bambolear sobre as vagas, a de ter uma força de elasticidade com a qual as segue: sobe com elas, com elas desce, e, todavia, prossegue na derrota. Ela gosta mais deste modo de avançar do que da luta, prefere a agilidade dos movimentos á violência que se precipitaria de contínuo, procurando cortar bruscamente as ondas.

Eu recomendo-vos, senhoras, – esta ciência do equilíbrio sobre as vagas, porque é a melhor das táticas, em muitas circunstâncias. Sim, o melhor, o mais seguro, o mais perfeito, é, muitas vezes, deixar as ondas no seu vai e vem, deixá-las bater o navio em todos os sentidos, e exclamar tranquilamente como o Profeta:

“Meu Deus! É a vossa providência quem governa e abre a senda no meio dos mares, quem prepara uma via segura por sobre as ondas; mostrais assim que podeis salvar a gente de todos os perigos, ainda mesmo quando se embarca sem conhecimentos náuticos: Etiamsi sine arte aliquis adeat maré.” (Sabedoria XIV, 3-4)

Depois desta oração do marítimo, o melhor, muitas vezes, é não fazer coisa alguma e esperar, seguir o movimento das vagas e não procurar mesmo contrariá-las. É preciso, sim, conservar com cuidado a destreza e imponderância que nos colocam sempre á superfície das vagas; é preciso nada perdermos dos nossos hábitos e das nossas convicções verdadeiras, e flutuarmos á mercê de Deus, esperando dias melhores. Nada aplaca tanto as ondas como este procedimento, pois elas acabam por compreender que nada ganham atacando certos navios, e resignando-se a sorte de não serem escusadas, acalmam-se muito mais facilmente.

Uma piedade séria e profunda, enraizada na alma poderá dar-vos a destreza e a energia que luta tanto mais, quanto mais parece ceder. O que sobre este assunto parece tão simples, tão natural, tão necessário, é extremamente difícil. Custa muito ao amor próprio chegar lá; são necessários sacrifícios a todos os instantes, sacrifícios de idéias e de afetos; são necessárias imolações constantes, pois a vaidade julga-se ferida, atacado o caráter, e todas as susceptibilidades despertam ao mesmo tempo. 

Não, a natureza abandonada a si própria nunca produzirá tais efeitos, com quanto pareçam tão simples, tão fáceis, tão indispensáveis á felicidade; quando muito compreender-lhe-á beleza ideal; mas o amor próprio terá as suas revoltas e tornar-se-á mau conselheiro, não quererá ceder, gostará mais de resistir e sofrer as conseqüências deploráveis da sua pertinácia. A verdadeira piedade, destacando-nos do humano, levantando-nos da terra e elevando-nos o caráter, predispõe-nos naturalmente para o estado vigoroso e forte do equilíbrio, em que a prudência é o nosso lastro, e em que os movimentos impetuosos do nosso amor próprio são contidos por uma sabedoria superior.

– Ancoras do Navio

O navio tem ainda outro recurso: se o tempo está mau, lança ancora, que é um grosso instrumento de ferro, recurvo para dois lados, em uma extremidade, e que anda suspenso nos flancos da embarcação. Em mares alterosos e perigos na derrota, arria-se a ancora. Esta massa desce ao mar, e, pelo peso, fixa o navio, convertendo-se em uma espécie de fundamento sólido, no meio dos abismos.

A alma deve ter também uma ancora, ou várias ancoras suspensas nos seus lares, para que, quando a tempestade estale, as lance nas profundidades do Ser divino, permanecendo imóvel, esperando a bonança.
A ancoras da alma são de várias espécies, e sob este nome compreendo tudo quanto pode sustentar-nos e ficar-nos: – princípios sólidos e vigorosamente estabelecidos, uma grande firmeza de caráter, amizades sérias e cheias de confiança, e, sobretudo, uma crença inabalável em Deus, uma energia de fé capaz de transtornar as montanhas. Tais são as verdadeiras ancoras para a alma, e nunca a corrente que as suspende se quebra quando é fabricada no céu. 

Eu suplico-vos, senhoras, para que, no meio das dificuldades da vida de família, no meio das alterosas vagas, que chegam subitamente e agitam o navio humano em todos os sentidos, peço-vos para que sigais o meu conselho: lançai ancora e permanecei assim!

E que fazer depois? – me perguntais vós. Nada mais que sustentá-la e orar. Não é isto o que faz o nauta em pleno mar?

– Bússola do Navio

Todo o navio tem uma bússola. Com este pequeno instrumento o marítimo sabe onde está e as regiões a que se dirige, e pela agulha magnetizada conhece a situação da derrota do baixel. Os astros podiam bastar-lhe em muitas circunstâncias, e a estrela polar é a melhor indicação para a direção ao norte, mas as nuvens cobrem muitas vezes o céu, e a cintilação das estrelas está oculta. Neste caso a bússola é indispensável, porque substitui a luz das alturas.

Pois na vida ainda é necessário ter uma bússola, um indicador celeste para se não andar caminho errado. A maior desgraça de muitas mulheres é não a terem tido em muitas circunstâncias da sua vida, e, sobretudo, na sua mocidade. Um dia estalou a tempestade e as trevas condensaram-se, e não sabendo aonde se dirigiam despedaçaram-se de encontro a uns escolhos. 

A melhor bússola da mulher será uma piedade esclarecida, e tão doce como firme; a luz da fé deve sempre iluminar-lhe a derrota, e no interior da alma deve ter uma prudência cheia de sabedoria, um instinto celeste, uma consciência reta que sirva para a dirigir na marcha e para lhe indicar a verdadeira posição dos objetos. Com estas precauções, senhoras, não flutuareis á mercê de qualquer vento de doutrina, e sabereis que há derrotas que a mulher cristã não deve seguir, e que há certos escolhos que devem ser evitados se não quer naufragar. 

A bússola pode ainda estender-se de outro modo: – há imaginações que a não têm, ou que as têm desorientada, e, neste caso, colocam o norte ao sul, o oriente ao ocidente, e não poucas vezes vêem os objetos invertidos. Perdem, de contínuo, o norte, para me servir de uma expressão marítima: nada tem de fixo, nada certo, ou antes, tem uma mobilidade perpétua, um reviramento de bordo, tão freqüente como inopinado, de modo que delas se pode dizer que só logram constância na inconstância.

Que conselho a dar-lhes, uma vez que a religião os deve ter para todas as situações da vida e para todas as formas de caráter? Ser-lhe-á especialmente útil a prática da humildade; e uma profunda desconfiança de si próprias e das suas apreciações, uma sábia lentidão nos seus movimentos e resoluções servirão para prevenir numerosos perigos e impedir passos em falso. Eu aconselho-as, além disto, a fazerem-se rebocar por outra embarcação, munida de bússola e governada por um hábil piloto, a deixarem-se dirigir e conduzir por pessoas sábias e dedicadas, e a não fazerem coisa alguma sem prévio conselho. Deste modo suprirão, quanto é possível, a impotência natural, e sem esta indispensável precaução, o número dos seus naufrágios será incalculável.

Continuemos, pois, na análise do nosso navio.

– Mastro do Navio

Como se chama as árvores limpas de córtex, despidas de ramos e de folhas que se elevam no meio dele? Três principais conto eu: servem de ponto de apoio ao cordame, ás vergas e a todo o aparelho da embarcação. Quando o barco tem os mastros partidos perde a força, luta mais dificilmente e está próximo da sua ruína.

Do mesmo modo é necessário que a alma tenha pensamentos fortes, princípios sólidos que sejam uma como armação da vida moral, e não aplico este conselho somente em matérias religiosas, mas ainda em tudo quando pode interessar a vida humana, nos negócios temporais, e nas regras de conduta nas relações com os homens e as coisas. Em tudo são necessários princípios, não princípios sistemáticos, porque o sistema é um perigo e uma causa de continuas imprudências, de faltas mais ou menos graves; são necessários princípios, que, sem saírem da linha da verdade, tenham bastante elasticidade para se prestarem a todas as exigências da sabedoria e da caridade.

Eles convertem-se em pontos de apoio da existência, e mastros do navio humano; em volta deles grupam-se e ligam-se as idéias da alma, o conjunto dos seus projetos e resoluções, e os cabos e cordas variadas que compõem a rede da vida. 

Desditosa a alma que não tem mastreação!

Porque não terá resistência nem poderá lutar no meio das contradições e das correntes opostas, e porque terá um movimento irregular e desordenado como o de uma embarcação que navega á mercê de todos os ventos contrários.

– Leme do Navio

Não basta ainda a mastreação, é necessário também um leme, – pequena peça de madeira meio oculta na água. O piloto, sem que isto se perceba, comunica-lhe um movimento que varia constantemente nos lugares difíceis, e a mobilidade do leme é a verdadeira força que conduz o barco, que lhe dá um impulso que pode variar a cada instante, e que lhe inclina a marcha em sentidos postos. O navio dirigido, assim, por mão hábil e inteligente, transpõe todos os escolhos, vence todas as dificuldades. – A alma também deve ter o seu leme, isto é, um espírito de sabedoria, largo e esclarecido, que em um olhar abrace o horizonte, descubra as dificuldades da travessia e comunique á derrota a linha reta; que sem sair das vias da verdade e da justiça, possa desviar, segundo as circunstâncias, obliquar tanto para bombordo como para estibordo, e fazer da existência uma linha quebrada, composta de linhas retas.

Será isto bastante para a condução do navio?

– Conhecimento dos mares

Não, senhoras; a embarcação mais sólida, melhor equipada, mais provida de velas, com excelente mastreação e leme habilmente manobrado, poderia sossobrar depois de algumas horas ou de alguns dias de viagem. É necessário que o piloto conheça perfeitamente o estado dos mares e das costas, a profundidade da água, a posição dos escolhos, dos bancos de areia, o sopro dos ventos e da direção das correntes; é necessário que tenha, mas bem a fundo, o conjunto de conhecimentos que constituem a ciência náutica. Além disto uma carta minuciosa aonde tudo se ache consignado, para que saiba que em tal lugar encontrará uma costa perigosa, um cabo aonde o mar é furioso, um recife aonde facilmente iria abalroar, um baixio que lhe faria encalhar a embarcação e uma corrente que a sepultaria.

Vós deveis ter também, senhoras, uma carta do mar, mais que todos, difícil e tempestuoso, o mar da vida. Eu me explico: conheceis, tanto quanto possível, o forte e o fraco do que vos cerca; não vos apoieis em certas praias, porque ireis de encontro a grandes rochedos, e desconfiai do desfiladeiro de homem ou das coisas, onde sois obrigadas a passar. Em tal lugar há correntes pérfidas, e, tanto mais, quanto menos se anunciam á superfície. Mais longe está um banco de areia. – O que é um banco de areia? – perguntais vós. É o homem, é a mulher, é o caráter com o qual contáveis, talvez. Não vos apoieis nele, peço-vos; é um banco de areia sem solidez, o vosso baixel encalharia nele, e, uma vez encalhado, seria, talvez, difícil retirá-lo.

Há naturezas de que não se desfaz a gente como se pretende, quando se está preso na areia sem fim; parecem-se muito com o estreito de Maumusson, onde os navios, tendo tocado o fundo, descem gradualmente e com uma força, cuja potência a lentidão não modifica.

Vós contais tal praia, freqüentais tal companhia e pretendeis que o vento vos é ali favorável. Engano, talvez: 

O vento sopra, é verdade, do vosso lado quando estais presentes; mas voltai as costas e pedi notícias a algum marítimo dedicado que permaneceu na praia, e ele vos dirá que as vossas palavras, os atos, a vossa própria recordação, tudo foi despedaçado por uma brisa fria e violenta.

Que mais direi ainda? No mar há peixes guarnecidos de dentes que rasgam as carnes dos nadadores, surpreendendo-os no momento em que menos o pensam, porque estes seres malvados navegam sempre entre duas águas. Do mesmo modo há também caracteres que caminham sempre debaixo da água, para me servir de uma expressão de São Gregório de Nazianzo: – “Os armênios – dizia ele – não são nem simples nem francos, são absolutamente dissimulados e semelhantes aos rochedos que se escondem sob as águas do mar.” (Oraç. XLIII, nº 17)

Vós não pensáveis talvez na existência destes peixes humanos, e só começais a suspeitá-la quando vos ferem com os seus dentes cruéis e tanto mais perigosos, quanto mais ocultos. Escondem-se no oceano, ou sob veludo, quando habitam a terra, porque estes seres são anfíbios. 

Volto, porém, ao nosso navio.

– Interior do Navio

Quereis comigo descer ao interior? Como tudo está admiravelmente disposto! Que sábia distribuição! Que limpeza! Que bom arranjo na sala de jantar, na câmara e nos beliches! O capitão vigia tudo e tudo se faz em perfeita ordem. Nenhum embaraço da carga, nem a mínima alteração entre os passageiros; a equipagem é numerosa, mas obedece como se fora um só homem.

 – Do mesmo modo a alma da mulher forte: visitai comigo os seus numerosos compartimentos; a sabedoria é o comandante do navio; tudo está em ordem, os pensamentos, os desejos, os projetos, as resoluções. O maquinismo interior funciona todo com maravilhosa simplicidade, o vapor da imaginação é perfeitamente regulado, cada coisa está no seu lugar, e pode em verdade dizer-se que a principal beleza da alma consiste no seu interior: Omnibus gloria ejus ab intus.

Que diferença quando a comparais com outras almas!

Se fosse possível percorrer-lhes o interior com um archote na mão! Que câmara escura! Que desordem! Os objetos mais disparatados postos em monte, uns sobre os outros; os mais estranhos pensamentos a abalroarem-se, os desejos mais bizarros procurando aproximar-se; em uma palavra, a imagem da mais formosa desordem, da mais completa ausência de regularidade, podendo dizer-se que estão sempre ocupadas nos eu desarranjo.

Não terminei ainda a explicação do texto:

“A mulher forte converte-se n’um navio d’um mercador, que traz de longe as suas riquezas”.

-Riquezas trazidas pelo Navio

Não basta que a embarcação seja graciosa e solidamente equipada, que tenha velas, mastros, vapor e um hábil piloto a bordo, conhecendo perfeitamente a derrota e o estado dos mares: é também necessário que se enriqueça. Bem vedes, o navio parte, vai á Índia, na América, e volta carregado de mercadorias.

Assim a mulher forte deve também enriquecer a família pelos seus cuidados, atenção, economia e contínua vigilância: é isto o seu negócio, o seu comércio, as suas viagens. Tem-se visto muitos mercadores fazerem consideráveis fortunas com pequenos lucros; mas os grãos de areia amontoaram-se pouco e pouco, cada vaga foi trazendo alguns, e, a final a praia cobriu-se; a água da cisterna tornou-se considerável, e no entretanto caiu gota a gota. A mulher pode também pelos cuidados, pela vigilância e pela severa economia chegar a admiráveis resultados; no fim de cada mês, ou mesmo de cada semana, pode entrar no porto da família com um carregamento inesperado.

Mas, senhoras, na vida outra coisa há além do dinheiro. Quantas riquezas morais e intelectuais não pode recolher a mulher forte, em cada dia, nas suas relações com as almas, e, sobretudo, com as almas sérias e cristãs! Pode tirar a nata ás conversações, ás leituras, aos discursos e fazer uma rica pirataria nos mares intelectuais; é nobre o ofício e perfeitamente honroso.

E quando entrar na família, dar-lhe-á parte das suas riquezas, abrir-lhe-á o porão do navio, e todos os filhos correrão pra quinhoarem da carga, como a família dos mercadores que esperam uma valiosa carregação expedida da América, ou melhor ainda, como os pequenos peixes que se vêem a espreitar os navios que chegam, e lançar-se sobre eles, como sobre uma pressa a que têm algum direito. Assim, sobre todos os pontos de vista da riqueza material ou espiritual, a mulher forte é verdadeiramente como o navio de um mercador que traz de longe os seus tesouros.

Um dos mais graciosos espetáculos que eu gozei na Rochelle, senhoras, foi o de ver, algumas vezes, nos meus passeios matinais, uma multidão de barquinhas saindo do porto e cobrindo o mar. Dir-se-ia que se enfileiravam em ordem de batalha contra o inimigo desconhecido que vinha desafiá-las, mas felizmente a flotinha só era dirigida contra peixes. Tinham um aspecto deslumbrante; os galhardetes, as cores variadas, as velas soltas, os movimentos e os pequenos balanços das embarcaçõezinhas, tudo contribuía para atrair a vista. Estas flotinhas partem vazias, mas regressam com seus carregamentos de riquezas. 

Que elas sejam a vossa imagem, senhoras!

A Mulher Forte – Mons. Landriot