NINGUÉM PODE SERVIR A DOIS SENHORES

Interessante artigo em que o Pe. Jean-Michel Gleize, professor no Seminário Internacional São Pio X (Ecône) da FSSPX, nos mostra porque não se pode chorar sobre o catastrófico texto da Amoris Laetitia se não se chora antes pelo Concílio Vaticano II.

É preocupante constatar que, entre todos aqueles que emitiram algumas reservas sobre a Exortação Apostólica Amoris Laetitia, e cuja oposição ao relativismo moral é suficientemente conhecida, muitos poucos se voltaram às verdadeiras fontes do mal. Quase ninguém nem mesmo colocou em dúvida publicamente os erros graves e contrários a toda Tradição da Igreja presentes, desde então, nos textos do Concílio Vaticano II, erros que hoje encontram seu resultado lógico na Amoris laetitia”.

Fonte: FSSPX México – Tradução: Dominus Est

Em 29 de junho de 2016, quarenta e cinco teólogos de todo o mundo enviaram ao decano do Sacro Colégio, cardeal Angelo Sodano, um estudo crítico da Exortação pós-sinodal Amoris laetitia onde 19 proposições do documento romano são censuradas. O documento conclui assim: “As proposições abaixo censuradas foram condenadas em muitos documentos do Magistério. É necessário e urgente que sua condenação seja repetida pelo Soberano Pontífice  de maneira definitiva e sem possibilidade de apelação, e que seja declarado com autoridade que a Amoris Laetitia não pede que seja criado, nem se considere como verdadeira nenhuma dessas proposições.

Esta confissão é de grande importância.Quarenta e cinco teólogos, na verdade, acabam de reconhecer publicamente os méritos de toda iniciativa empreendida por D. Marcel Lefebvre e a Fraternidade São Pio X, que hoje tem mais de 40 anos. Não podemos deixar de reconhecer a coragem e lucidez que os inspira. Mas também não podemos esquecer que esta iniciativa levou o antigo arcebispo de Dakar a refutar erros que são mais graves do que aqueles que a Amoris laetitia apresenta. A recente Exortação do Papa Francisco autoriza o relativismo moral na ação pastoral da Igreja. Mas essa relativização da moral, tão grave em si mesma, não é mais que uma remota consequência de outro relativismo muito mais profundo, que é de ordem doutrinal. E é precisamente esse relativismo, o centro de todos os ensinamentos do Concílio Vaticano II:

  • o relativismo da nova eclesiologia modernista, conduzindo ao colegialismo e latitudinarianismo ecumênico, com a Constituição Lumen Gentium e o Novo Código de Direito Canônico, publicado em 1983; 
  • relativismo da liberdade religiosa, conduzindo ao indiferentismo dos poderes públicos e da negação do reinado social de Cristo, com a declaração Dignitatis Humanae sobre a liberdade religiosa e a constituição pastoral Gaudium et Spes. 

Os pontos essenciais desse relativismo foram denunciados publicamente por D. Lefebvre e D. Castro Mayer, em uma Carta Aberta dirigida ao Papa João Paulo II no dia 21 de novembro de 1983.

É preocupante constatar que entre todos aqueles que emitiram certas reservas sobre a Exortação Apostólica Amoris Laetitia, e cuja oposição ao relativismo moral é suficientemente conhecida, muito poucos se voltaram às verdadeiras fontes do mal. Quase ninguém, nem se quer, colocou em dúvida publicamente os erros graves e contrários a toda Tradição da Igreja, presentes desde então, nos textos do Concílio Vaticano II, erros que hoje encontram seu resultado lógico na Amoris laetitia. Para dar um simples exemplo: quem sonhou em denunciar a inversão dos fins do matrimônio, apoiada pelo Novo Código e promovida pela maneira personalista da pregação de João Paulo II? No entanto, é essa inversão dos fins do matrimônio que está colocada como princípio e fundamento da reforma pastoral levada a cabo pelo último Sínodo e da qual a recente Exortação quis apresentar a síntese.

Se refletirmos um pouco, a subversão de a toda a ordem moral está contida no falso princípio enunciado no número 2 da declaração Dignitatis Humanae :

“Este Concílio Vaticano declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Esta liberdade consiste no seguinte: todos os homens devem estar livres de coacção, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado com outros, dentro dos devidos limites ”

Como observou um dos padres conciliares no próprio Vaticano II, a tese verdadeiramente nova e, por assim dizer, o ponto essencial e que é subjacente a todo o texto [da declaração sobre a liberdade religiosa] e que constitui como a alma, ainda que apenas implicita, pode-se enunciar dessa forma:

“O homem possui um verdadeiro direito (isto é, real e não putativo) e objetivo (e não apenas subjetivo), que é um direito natural – como tem sido dito que o fundamento desse direito reside na dignidade da pessoa humana, ou seja, neste conjunto de direitos que Deus, o autor da natureza outorgou a cada homem de maneira inalienável – de poder manifestar e propagar sem qualquer impedimento externo, e mesmo entre os seguidores da única religião verdadeira, suas idéias religiosas e morais, ainda que sejam objetivamente más e falsas, contanto que seja de boa fé e atue dentro dos limites estabelecidos pela autoridade civil, para preservar a ordem pública”.[1] “Que os autores deste esquema não venham nos dizer que quiseram entender a liberdade religiosa apenas no sentido de um direito à imunidade em relação a uma coerção externa, pois diríamos então, que é necessário responder-lhes, depois de uma reflexão madura e evitando brincar com as palavras, que este direito assim concebido, de não ser impedido de levar a cabo uma ação é um direito negativo, relativo e consecutivo, que exige absolutamente encontrar a sua justificação e seu fundamentação em outro direito positivo, absoluto e anterior, direito de realizar livremente uma determinada ação. Por exemplo, a imunidade face a toda coerção externa, ou melhor, o direito que obriga os outros a não limitar a minha liberdade de ação externa, não mais é que a conseqüência, e por assim dizer, a proteção de outro direito anterior, que resta provar. “[2]

Colocando em princípio o direito à imunidade, em matéria religiosa, sobre toda a coerção vinda de toda autoridade, o Vaticano II expunha esse mesmo tema, ou melhor, pressupunha o direito a agir em questões religiosas, independentemente de qualquer autoridade. Princípio que leva de antemão à ruína de toda a ordem moral. Na verdade, essa ordem moral é, em si mesmo, a ordem das ações humanas convenientemente orientadas ao seu fim. No entanto, as ações humanas são aquelas de uma natureza em que os indivíduos têm necessidade de viver em sociedade para atingir seu fim e o exercício da autoridade é necessário na vida social. A autoridade é, então, uma coisa necessária à ordem social, por natureza. “O homem é por natureza um animal social, incluído no mesmo estado de inocência, os homens sempre tiveram uma vida social. Mas a vida social de uma multidão não poderia ter existido sem um líder que busca o bem comum; já que muitas pessoas buscam necessariamente muitos objetivos, mas um só não busca senão um. Por isso, disse Aristóteles: “Toda vez que muitos elementos são ordenados a um só fim, sempre há um que lidera e dirige”[3]. Além disso, a palavra “autoridade” vem do latim “auctoritas”, que ao mesmo tempo é derivada do verbo “augere”, que significa aumentar. A autoridade aumenta, proporciona uma maior perfeição porque organiza a vida em sociedade, o que torna possível a aquisição do bem comum e assim, o bem de cada um.

Se objetará que este direito à imunidade, o direito ao não exercício da autoridade, vale apenas em questões religiosas.Isto seria esquecer muito rápido que a religião é o próprio fundamento da ordem moral, já que ordena as ações humanas face Àquele que é o próprio princípio da ordem moral. A subversão de toda a ordem moral está então envolvida no falso princípio da Dignitatis Humanae, e não pode mais que, cedo ou tarde, desprender-se deste. Se nenhuma autoridade pode intervir para impedir aos homens atuar em assuntos religiosos contra a lei de Deus, uma vez que toda moral deriva desta lei, nenhuma autoridade saberia constituir-se como garantia da moral e fazer prevalece-la de forma eficaz. Então o homem torna-se um lobo para o homem, não somente sobre os fatos, mas no próprio princípio enunciado pelo Vaticano II. Pascal, desde então, dizia: “Maomé obtém a vitória matando, Jesus Cristo fazendo que matem aos seus.” Pascal quer dizer que Jesus fez que matassem seus discípulos sob o mandamento de preferir morrer ante tornarem-se cúmplices de falsas religiões. Os cristãos morreram mártires em nome do único direito da única religião verdadeira, porque se recusaram a aceitar o mesmo princípio da indiferença religiosa. Se a Tradição da Igreja é uma semente dos mártires, a liberdade religiosa recomendada pelo Concílio Vaticano II, torna o martírio impossível em seu próprio princípio: é uma semente do liberalismo.

Para finalizar, enfatizamos (e para chegar ao ponto que nos interessa) que o falso princípio da liberdade religiosa é aquele direito de ser livre de toda coerção (de qualquer poder humano): então não somente do poder temporal das autoridades civis, mas também o poder espiritual das autoridades eclesiásticas.O Vaticano II introduziu o falso direito à exceção de toda coerção e, portanto, de qualquer pena, de qualquer autoridade social, tanto do Estado como da Igreja. Esse falso direito é a própria negação do poder coercitivo, que é um componente essencial da autoridade, tanto na sociedade civil como na sociedade eclesiástica. O mesmo princípio deve então, logicamente, conduzir ao abandono das penas, sejam espirituais ou temporais. Por exemplo, se os pecadores públicos quiserem receber a Santa Comunhão durante uma celebração do culto público, proibi-los seria impedir-lhes de agir em público de acordo com sua consciência. O único recurso possível para justificar a disciplina canônica, até então seguida pela Igreja, e ainda mantida pelo Novo Código de 1983, seria recorrer aos “justos limites” que se impõe ao exercício do direito à liberdade em matéria religiosa. Mas como estes nunca são claramente definidos, deixa-se a porta aberta para todas as inovações possíveis. Não se diz, de fato, que o Vaticano II tinha como tarefa estabelecer “uma nova definição da relação entre a fé da Igreja e certos elementos essenciais do pensamento moderno”, e que isso levou a “adaptar ou igualmente corrigir certas decisões históricas “? [4] Em que, uma reforma da disciplina sacramental, apontando a autorização da comunhão pública aos pecadores públicos em geral (e não apenas aos divorciados novamente casados), não poderia se inscrever em uma tarefa semelhante?

A Amoris Laetitia não é mais que uma remota consequência, perfeitamente lógica e claramente previsível da Dignitatis Humanae. E para ter o direito de chorar hoje sobre as ruínas que se anunciam, seria necessário ter reagido anteriormente com toda força possível para denunciar as origens profundas desse drama. Neste caso, pode-se dizer claramente: Ninguém pode servir a dois senhores. Não se pode escolher entre a Gaudium et Spes e a Amoris laetitia, entre o Vaticano II e os abusos de um improvável “paraconcilio”. A escolha que se impõe deveria levar os católicos a denunciar esta infiltração inicial do modernismo na Santa Igreja, que foi cumprida no exato momento do Concílio. Assim, os argumentos utilizados para defender a verdadeira moral católica serão os bons, pois possuirão a Tradição Católica por inteiro.

Pe. Jean Michel Gleize.

  1. Mons. Carli “Discurso pronunciado durante a 128ª Assembleia Geral do Concílio Vaticano II, 15 de setembro de 1965 “, Ata IV, I, p.264.
  2. – Carli, ibid.
  3. Cf, São Tomás de Aquino, Summa Theologica, Parte 1, Pergunta 96, artigo 4, corpo.
  4. Bento XVI, “Discurso à Cúria de 22 de Dezembro de 2005″ em DC n ° 2350, col.59-63.