Fonte: FSSPX Itália – Tradução: Dominus Est
Por que os sacerdotes da Fraternidade São Pio X exercem um apostolado, mesmo não tendo uma estrutura canônica “oficial”? Neste artigo o autor demonstra como a atual situação “extraordinária” que se instalou na Igreja há quarenta anos torna necessário o recurso às “normas extraordinárias”, previstas no Código de Direito Canônico, e que não apenas justificam, mas impõem a esses sacerdotes um apostolado em favor das almas, cuja salvação é a lei suprema.
“Dirigindo-se depois a eles, disse:
Quem de entre vós que, se o seu filho ou o seu boi
cair num poço, o não tirará logo
ainda que seja em dia de sábado? (Lc 14,5)
Mesmo após o levantamento das ditas excomunhões, o ministério dos sacerdotes da Fraternidade São Pio X continua a ser definido como ilegítimo, porque não se enquadra em uma forma canônica. Na verdade, esses padres realizam confissões e administram os sacramentos como se fossem párocos, enquanto as autoridades ordinárias da Igreja não lhes tenha concedido qualquer título para exercer qualquer tipo de ministério.
Por isso, propomos neste texto examinar sob qual título os sacerdotes da Fraternidade continuam a exercer o seu apostolado e com base em que normas divinas e jurídicas. Na verdade, eles invocam, frequentemente, um “estado de necessidade”.
Mas o que é esse estado e quais faculdades jurídicas permitem seu exercício? O estado de necessidade é uma espécie de selva, de regressão a um estado pré-social, ou, em vez disso, uma situação extraordinária onde são aplicadas normas extraordinárias quando seria errôneo pretender aplicar literalmente as ordinárias? Existe, de direito e de fato, uma situação que torna impossível, inútil ou mesmo prejudicial a aplicação das leis positivas ordinárias e, ao invés disso, a exigência da aplicação de normas mais elevadas, certamente não arbitrárias, mas previstas pelo legislador e pela lei divina?
Neste artigo, queremos mostrar quão absolutamente legítimo, apropriado e adequado à situação é o tipo de apostolado realizado pela Fraternidade São Pio X.
A Necessidade, definição e divisão
Falamos aqui do estado de necessidade espiritual, isto é, da necessidade de receber os sacramentos (e secundariamente outras ajudas que predispõem à recepção dos mesmos, dos sacramentais à instrução às várias obras de misericórdia espiritual). Não estamos falando do estado de necessidade corporal, que diz respeito à obrigação, na caridade, de prestar ajuda segundo as obras de misericórdia corporais.
O estado de necessidade espiritual pode ser de três tipos, se o dividirmos quanto à sua gravidade:
- necessidade extrema:é aquela em que um perigo certo e iminente de perder a própria alma sem a ajuda de outrem é inescapável. É o caso da criança que corre o risco de morrer sem o batismo ou do pecador em risco de morte que não sabe ou não pode praticar um ato de contrição perfeita, seja ele fiel ou infiel.
- necessidade grave:é aquela em que só se supera com grande dificuldade, por exemplo, em caso de perigo próximo da perda da fé ou da graça. Essa necessidade é típica do pecador em perigo de morte (a diferença com a anterior está no fato de que aqui se supõe que ele pode pelo menos salvar-se com um ato de contrição perfeita), mas também daqueles que estão em perigo iminente de se perder sem ajuda.
- necessidade comum: é aquela em que sem ajuda pode-se cair no pecado, mesmo que o perigo possa ser superado sem tal ajuda. Aqui, o adjetivo ‘comum’ indica o fato de que tal situação é habitual na maioria das situações na vida dos homens.
Claramente os pastores de almas são por justiça obrigados a ajudar seus súditos em tais necessidades, pecando mais ou menos gravemente de acordo com o tipo de necessidade em que se encontram; os outros sacerdotes (e também os leigos, ao seu nível) podem ser por caridade obrigados a ajudar os mais necessitados espiritualmente, cada um segundo as suas possibilidades e com mais ou menos urgência segundo a gravidade da própria necessidade.
A situação atual: uma grave necessidade geral
Agora nos perguntamos qual é a situação atual, e que estado de necessidade é esse em que hoje se encontram os fiéis da Igreja. Posteriormente, tentaremos entender como se pode e como se deve vir em socorro de tal situação.
Em toda a Igreja hoje existe uma crise notória. Essa crise consiste essencialmente no fato, até certo ponto também publicamente admitido pela autoridade suprema da própria Igreja, de que hoje é quase impossível continuar a viver como católicos nas estruturas ordinárias da Igreja (isto obviamente não afeta a indefectibilidade da Igreja, na medida que entram em ação, como vemos neste artigo, os meios extraordinários de que a Igreja é dotada).Todos os aspectos da vida católica se tornaram problemáticos: em primeiro lugar, a profissão externa e completa de fé sem ambiguidades, e depois também a liturgia, a vida sacramental, a vida de oração, o ensinamento da fé tanto no catecismo como na formação dos sacerdotes, o ensino moral em conformidade com a doutrina em todos os seus aspectos, a frequência de um ambiente perigoso para a fé, etc. Apenas para dar um exemplo concreto, basta pensar na dificuldade objetiva com que se defronta um fiel médio que necessita recorrer ao sacramento da confissão: supondo que ele encontre um confessor disposto a ouvi-lo e que ainda realmente acredite neste sacramento, os fiéis não tem mais – falando de modo geral – as garantias necessárias para ser confessado, instruído, orientado e absolvido de acordo com a moral que sempre caracterizou a prática católica, com particular referência ao sentido do pecado, ao drama do pecado mortal, ao conhecimento do que é o pecado, a necessidade de graça para ser perdoado e salvo, etc.
Todos esses fatores obviamente não têm o mesmo caráter geral, e nem todos têm a mesma importância; nem todos são necessariamente encontrados juntos, e nem são igualmente aprovados ou causados pelas próprias autoridades. Podemos dividi-los em dois grandes grupos, o primeiro geral e uniforme em todos os pontos, o segundo extremamente variável.
1 – Em primeiro lugar, todo fiel ou sacerdote hoje se vê obrigado a se posicionar contra os erros que comumente se propagam em todo o episcopado “residente”. Praticamente todos os bispos diocesanos professam, pelo menos externamente, os principais erros do Vaticano II. E esta profissão externa do erro (ou pelo menos um consentimento tácito) é exigido de todo o clero, incluindo aqueles que celebram o rito antigo, para poderem dizer que estão incluídos no quadro oficial da hierarquia e obter o cuidado das almas de maneira ordinária. Os raríssimos exemplos de párocos ou outros pastores ordinários que conservam seus postos ao mesmo tempo que se posicionam claramente contra as novas doutrinas e a nova liturgia não alteram a substância do problema, se não confirmam precisamente pela sua excepcionalidade. Portanto, o católico (e em particular o sacerdote) se encontra na objetiva dificuldade de não cair em uma profissão de fé, no mínimo ambígua, sobre as novas doutrinas, e de não participar ou aprovar um culto que, segundo a conhecida expressão dos cardeais Ottaviani e Bacci, “afasta-se de maneira impressionante da doutrina católica sobre a Santa Missa definida em Trento”. Esse estado de coisas, voltamos a enfatizar, é universal: neste aspecto, estamos perante uma necessidade geral comum;a persistência desta situação já seria suficiente para invocar o tal estado de necessidade.
2 – Em segundo lugar, à esta situação universal se acrescentam mil obstáculos colocados na vida católica pelos próprios pastores, que poderíamos chamar de “abusos” de vários tipos: dos abusos pastorais e litúrgicos (mesmo além das novas normas) às barbaridades doutrinais, que vão além da letra do Vaticano II, e que se ensinam desde o catecismo infantil aos seminários e universidades pontifícias, passando por numerosas cátedras episcopais. A autoridade suprema às vezes condena, às vezes tolera, às vezes encoraja esse estado de coisas; raramente passa a uma ação verdadeiramente eficaz: isto porque se atingiu uma situação de ingovernabilidade, fruto da abstenção de atos verdadeiros do Magistério (a ação da vontade segue os princípios aos quais a inteligência adere). Uma vasta literatura dá uma explicação detalhada dessas milhares de situações. Tais abusos podem ser mais ou menos graves, mais ou menos óbvios ou até inexistentes: eles agravam ou atenuam o estado de necessidade, mas não mudam sua natureza: pelo que dissemos no ponto anterior, a necessidade permanece grave e geral. Se cessasse a situação descrita no primeiro ponto, cessaria também o estado de necessidade, uma vez que desses “abusos” se poderia sair de modo ordinário, sem recorrer a meios excepcionais. Dizemos que “poderia”, não que seria fácil. Muitos padres e fiéis, mesmo sem contestar o Vaticano II, não conseguem evitar aqueles abusos que vão contra as próprias leis novas, devido às pressões que recebem do ambiente em que se encontram. Imagine a dificuldade, por exemplo, de até mesmo um pároco que quisesse tornar os ministros extraordinários da Comunhão verdadeiramente extraordinários (não estamos sequer falando de um pároco que quisesse restabelecer a Missa de sempre).
O que pode ou deve ser feito na grave necessidade geral
Segundo o Dictionarium morale et canonicum do Card. Pietro Palazzini, uma espécie de Suma dessas ciências, publicado às vésperas do Concílio pelos maiores canonistas e moralistas romanos e que, portanto, retoma as doutrinas mais corretas e as interpretações mais oficiais, diz que a grave necessidade comum corresponde à extrema necessidade do indivíduo, em razão da preeminência do bem comum sobre o bem privado. Este ponto tem duas consequências que decorrem uma da outra, a primeira ao nível das funções e a segunda no que diz respeito aos poderes conferidos nesta situação.
Segundo os preceitos da caridade, é um grave dever socorrer ao próximo em extrema necessidade e, segundo o que foi dito acima, é também um sério dever comum. Palazzini diz explicitamente que todo sacerdote, mesmo sem cuidar das almas, é exigido ex charitate a socorrer o próximo em extrema necessidade espiritual, dando-lhe os sacramentos, mesmo sob risco de perder a vida. E que ele é obrigado a fazer a mesma coisa em caso de grave necessidade geral. Em poucas palavras, quando uma comunidade inteira está em dificuldades, quem for capaz deve ajudar de acordo com suas possibilidades.
Esse dever de caridade estabelece também as faculdades que a Igreja dá aos sacerdotes nestes casos: em particular, todos os atos da potestade do sacramento da ordem tornam-se lícitos, e a jurisdição para ouvir confissões é concedida a todos os sacerdotes. Conforme concedem explicitamente os cânones (CIC 1917, 882; CIC 1983, 976), todo sacerdote pode, legal e validamente, absolver os fiéis na hora da morte, ou seja, em extrema necessidade; mas a essa extrema necessidade do indivíduo se equipara à grave necessidade comum, não somente pelos deveres, mas obviamente também pelas faculdades concedidas para poder cumprir esses deveres; portanto, atualmente, todo sacerdote pode ir em auxílio dos fiéis que pedem a absolvição, recebendo, naquele momento, a jurisdição necessária para fazê-lo de acordo com a lei. Tomemos como exemplos análogos as situações de alguns países onde há perseguição, onde qualquer sacerdote que possa prestar ajuda aos fiéis pode fazê-lo, mesmo que estes não estejam à beira da morte e não sejam seus súditos.
Um princípio espelhado
O conceito da grave necessidade corresponde de maneira espelhada ao problema do grave inconveniente. Em geral, o grave inconveniente (ou grave impedimento) na ordem espiritual é qualquer dano significativo à alma da pessoa ou de terceiros. Ora, existe um princípio moral e jurídico fundamental, admitido por todos os canonistas e moralistas (cf. cân. 20): Lex positive non obligat cum grave incommodo: na presença de um grave inconveniente, toda lei puramente positiva (isto é, humana, não a lei natural ou divina) deixa de ser obrigatória. A grave necessidade atual repousa precisamente no fato de que haveria um grave inconveniente para a fé, aliás muitas vezes um verdadeiro obstáculo à profissão da mesma, no que diz respeito às numerosas leis positivas, inclusive as eclesiásticas. Para dar outro exemplo, um sacerdote preso por perseguidores pode e deve celebrar a missa e ministrar a comunhão, principalmente se a morte for iminente para si ou para os outros, desde que observe o que é de direito divino, ou seja, que tenha pão de trigo e vinho de uvas e diga as palavras consecratórias. Mas, sem dúvida, não é obrigado a observar as leis litúrgicas, nem ter os paramentos, etc., nem pronunciar todas as orações do Missal: todas as prescrições graves mas de lei puramente eclesiástica, naquele momento, não o obrigam, pois urge o preceito divino de ministrar a comunhão à beira da morte.
A FSSPX estaria completamente paralisada em seu trabalho se, por exemplo, fosse forçada a observar as leis puramente eclesiásticas quanto à abertura de novas casas ou locais de Missa, quanto às ordenações com o consentimento dos Ordinários locais, quanto às limitações colocadas pelo direito ao exercício legítimo da potestade de Ordem, etc. Na verdade, ela estaria impedida de fazer todas essas coisas, a menos que, de alguma forma, aceitasse a nova doutrina (e tal é, sem dúvida, a situação atual), o que seria – muito mais do que um inconveniente – um dano real à profissão de fé. Isso não significa cair em um estado de anarquia, mas simplesmente compreender que o papel das leis positivas (e das ordens singulares dos Prelados) está subordinado à observância dos preceitos divinos, dentre os quais em primeiro lugar encontra-se a obrigação de não cair na ambiguidade da expressão da fé, especialmente sobre os pontos de doutrina que podem estar em risco em determinada época. Não passamos para a ilegalidade, mas à observância de leis mais elevadas. O bem comum exige que, em casos tão graves, cada um aja segundo as suas possibilidades, que para o sacerdote são as da potestade da Ordem (cf. Santo Tomás, Supl. Q. 8 a.6).
Esse mesmo grave inconveniente geral justifica, por exemplo, o fato de não se apresentar ao próprio pároco para o matrimônio, dado o risco objetivo de ter de participar da catequese ou de funções de doutrina dúbia, ou mesmo apenas parecer aderir às novas doutrinas, o que é certamente um grande perigo para o bem maior: a preservação da fé. Portanto, é possível e em muitos casos necessário recorrer à forma canônica extraordinária do matrimônio, explicitamente prevista pelos cânones em caso de sérios inconvenientes, na presença apenas de testemunhas e, possivelmente, de qualquer sacerdote que possa abençoar a boda (CIC 1917, 1098; CIC 1983, 1116).
Uma última análise, é este mesmo princípio juntamente com o da grave necessidade geral que permitiu a ordenação dos quatro bispos por Mons. Lefebvre em 1988. Entendendo-se que seria contra o direito divino pretender conferir a jurisdição episcopal, ato que é próprio do Romano Pontífice, não o seria intrinsecamente quanto a conferir a Ordem episcopal sem o consentimento dele (e de fato este ato era punido até Pio XII apenas com pena de suspensão, sinal de que se trata de disposições disciplinares). Por conseguinte, diante da grave necessidade do bem geral de transmitir o poder da Ordem sem ter que se submeter ao grave inconveniente (ou melhor, dano) de aceitar uma ambígua profissão de fé, extingue-se as leis positivas que exigem o consentimento do Pontífice para consagrar os Bispos, e com elas as penalidades ligadas a tal ato (como está explicitamente previsto na própria lei, que livra da punição qualquer pessoa que tenha agido por necessidade: CIC 1917, 2205 §2; CIC 1983, 1323).
Resposta a uma objeção e conclusões
O verdadeiro ponto de discórdia com os inovadores neste raciocínio não é tanto sobre quais são as faculdades ou deveres de cada um num estado de necessidade tal como o descrito, mas sobre a existência desse estado de necessidade. Evidentemente, quem aceita e promove ou de outra forma justifica as novas doutrinas, talvez afirmando que não são novas, mas que vão ao encontro do Magistério anterior, não pode admitir o primeiro motivo que aduzimos para apresentar a gravidade universal da situação atual. Quanto ao segundo ponto, hoje muitos estão dispostos a admitir a sua existência, e as próprias autoridades parecem querer lidar com esses chamados “abusos”: nisso os defensores da continuidade estão dispostos a concordar conosco, culpando assim a má leitura do Concílio pela atual situação. No entanto, isso não seria suficiente para recorrer aos meios extremos usados por D. Lefebvre com sua Fraternidade. Acima de tudo, a Fraternidade é acusada de invocar um estado de necessidade que as autoridades negariam, pelo menos por seu componente essencial.
Na realidade, deve-se notar que não se pode esperar que aqueles que são causa deste estado de necessidade, ou seja, as próprias autoridades, reconheçam sua existência. Precisamente neste ponto reside a especificidade absoluta deste estado de necessidade. Indiretamente, são os mesmos defensores da continuidade que atribuem a causa da situação atual às doutrinas conciliares. Esses textos teriam sido objeto de uma má leitura que continua até hoje, sendo pelo menos um sinal de que há algum tipo problema. É simplesmente necessário compreender que aqueles que rejeitam a existência do estado de necessidade são os mesmos que aceitam, ainda que de várias maneiras e medidas, os erros do Vaticano II: Portanto, o reconhecimento destes erros pela autoridade, que esperamos possam ser de alguma forma o resultado das conversações romanas e nossas orações, implicará ipso facto o reconhecimento da existência do estado de necessidade, e provavelmente também a cessação do mesmo, pelo menos em seu componente essencial.
No que nos diz respeito, acreditamos que não recorrer ao ministério extraordinário do qual dispomos, representaria para a Fraternidade de São Pio X uma grave omissão e uma imperdoável falta no socorro às almas vítimas da crise atual que atinge a Igreja e que não escolheram nascer neste período. Males extremos, remédios extremos. É claro que ninguém pretende se entregar a uma missão que não tem: é simplesmente a Caridade que impõe a todo sacerdote socorrer seu irmão em necessidade espiritual com instrumentos proporcionais à magnitude dessa necessidade. Suprema lex salus animarum.
D. Mauro Tranquillo, FSSPX
Revista Tradizione Cattolica, ano XXI, n° 3 (76), 2010, pags. 18 – 24