O MAGISTÉRIO CONTRA A TRADIÇÃO?

Pe. Pierpaolo Maria Petrucci, FSSPX

Alguns afirmam que o ensinamento atual, que chamam de magistério vivo, temo poder de interpretar de modo a modificar a Tradição. Mas o que a Igreja já ensinou de maneira infalível é imutável.

O motivo de embate entre a Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX) e as autoridades romanas é a oposição daquela ao ensinamento atual na Igreja, que funda raízes no último concílio. Essa oposição é motivada pelo fato de que são agora ensinadas novas doutrinas contrárias ao ensinamento do passado.

O Vaticano nos acusa por isso de ter uma concepção errônea da Tradição e do Magistério da Igreja.

Segundo João Paulo II, a posição da FSSPX tem origem no fato de não considerar a Tradição como algo vivo, permanecendo fixados no passado. Assim se exprimiu em 1988, por ocasião da consagração de nossos quatro bispos: “A raiz deste ato cismático pode localizar-se numa incompleta e contraditória noção de Tradição. Incompleta, porque não leva em suficiente consideração o caráter vivo da Tradição(…)” 1.

Por sua vez, Bento XVI acusa a FSSPX de se ter fixado no Magistério pré-conciliar e não reconhecer, na verdade, o magistério do concílio e do pós-concílio: “Não se pode congelar a autoridade magisterial da Igreja no ano de 1962 – isso deve estar bem claro para a Fraternidade”. 2

A Tradição deveria ser viva, isto é, interpretada pelo magistério atual que nos diria hoje aquilo que é conforme ou menos conforme à Fé. Quem quisesse opor a Tradição de ontem ao magistério de hoje se arvoraria de juiz da Igreja e de seu ensinamento, substituindo-o, de fato, por seu juízo pessoal.

Para examinar o problema, responder a essa objeção e compreender em que consiste essa oposição que parece ser fundamental resolver, antes de poder chegar a uma solução jurídica entre a FSSPX e Roma, é necessário definir e esclarecer os conceitos de Tradição e de Magistério.

A REVELAÇÃO

Uma vez que a Tradição é a transmissão da Revelação Divina pelo Magistério, comecemos por definir essa noção. A Revelação é o ato com o qual Deus se manifesta ao homem. Ele se dá a conhecer, antes de tudo, pela criação do Universo, que reflete os atributos divinos em si mesmos invisíveis: esta é a Revelação Natural.

De modo particular, Deus se manifestou por meio dos profetas e de Jesus Cristo, fazendo-nos saber diretamente verdades em si mesmas naturais, como, por exemplo, a imortalidade da alma; mas também verdades que superam a razão do homem, como todos os mistérios sobrenaturais, por exemplo, a Santíssima Trindade e a Encarnação.

A Revelação Sobrenatural é definida como um ensinamento dado por Deus aos homens, ordenado à sua santificação e vida eterna. 3 Essa Revelação terminou com a morte do último apóstolo 4 e a Igreja recebeu de Jesus Cristo o mandato de anuncia-La a todas as nações para que, através da fé nas verdades reveladas, os homens pudessem chegar à salvação.

O dever da Igreja é, então, transmitir a Revelação intacta e aprofundá-la, haurindo de suas fontes, que são a Sagrada Escritura e a Tradição, sem alterá-La. 5

A TRADIÇÃO

O termo “tradição” é de origem grega e significa transmissão, doutrina oral. No sentido teológico, pode-se definir como a Palavra de Deus – concernente à Fé e à Moral – não escrita, porém transmitida de viva voz por Jesus, pelos apóstolos e por estes a seus sucessores até nós. Palavra “não escrita”, não no sentido de que não possa estar contida em algum escrito, mas para diferenciá-la da Sagrada Escritura, outra fonte da Revelação divina, que foi escrita sob inspiração divina.

A Tradição é divina quando o ensinamento vem diretamente de Jesus Cristo; divino-apostólica, quando foi dado aos apóstolos por inspiração do Espírito Santo, segundo a promessa de Jesus: “O Paráclito, o Espírito Santo, que o Pai mandará em meu nome, ensinar-vos-á todas as coisas e vos recordará tudo o que vos disse” 6.

Contra a heresia protestante que nega a Tradição como fonte da Revelação, definiu o Concílio de Trento que a doutrina concernente à Fé e à Moral “está contida tanto nos livros escritos (Sagrada Escritura) quanto nas tradições não escritas” e então é preciso receber com “igual piedade, amor e reverência” tanto uma quanto a outra fonte da Revelação 7.

Jesus, depois de ter pregado (e não escrito) a sua doutrina, confiou aos apóstolos a missão, não de escrever, mas de propagar oralmente o quanto ouviram de Seus lábios ou aprendessem por sugestões do Espírito Santo: “Ide, pois, ensinar todas as gentes” 8. “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura” 9.

Os principais instrumentos pelos quais foi conservada a Tradição divina foram as profissões de Fé, a Sacra Liturgia, os escritos dos Padres da Igreja, as atas dos Mártires, a práxis da Igreja e os monumentos arqueológicos. A Revelação Divina vem-nos por duas fontes: a Tradição e a Sagrada Escritura. O órgão que a transmite intacta é o Magistério infalível da Igreja 10.

O MAGISTÉRIO

Em sentido etimológico, Magistério é uma função que tem por escopo instruir. Uma vez que o objeto do Magistério Eclesiástico são as verdades de Fé reveladas, essa instrução se fará, essencialmente, por meio do testemunho: transmissão das verdades de Fé recebidas de Deus, para permitir aos homens chegar ao fim para que foram criados: a salvação eterna.

O Magistério pode ser definido como o poder conferido por Jesus Cristo à Sua Igreja, em virtude do qual esta é constituída única depositária e autêntica intérprete da Revelação Divina a ser proposta aos homens como objeto de fé para a salvação eterna, de maneira infalível enquanto assistida divinamente por Jesus Cristo 11. Quando se fala de Magistério é oportuno distinguir o sujeito (o Papa e os bispos) do conteúdo (transmissão e aprofundamento do Depósito Revelado) e, por fim, do seu modo de exercício (infalível ou simplesmente autêntico).

QUEM ENSINA ?

O sujeito desse poder é o Papa, a quem o Senhor confiou o dever de apascentar as suas ovelhas, ajudado pelos bispos. É esta a Igreja docente.

Trata-se de um sujeito humano e, pois, voluntário, assistido por Deus, na missão que lhe foi confiada, na medida em que queira submeter-se a essa assistência divina e exercitar o poder de ensinar.

O OBJETO DO MAGISTÉRIO

O objeto do Magistério são as verdades reveladas a transmitir, aprofundar e defender, sem nenhuma variação, nem modificação.

O Magistério da Igreja, como conteúdo, é essencialmente tradicional e constante.

Entre o ensinamento dos Apóstolos e o de seus sucessores há uma diferença importante, que o Cardeal Franzelin sintetiza com estas palavras: “O apostolado, ao pregar toda a Verdade revelada, foi instituído para fundar a Igreja. Por isso os sucessores dos apóstolos não podem ter por função a de revelar outra verdade; devem, ao contrário, conservar e pregar, na sua integridade e significado autêntico, toda a Verdade que os Apóstolos receberam”. Em outras palavras, o Magistério dos apóstolos foi o órgão da Revelação, enquanto o Magistério da Igreja é o órgão da Tradição no sentido mais etimológico, isto é, o órgão da transmissão do Depósito recebido. Por isso, a transmissão depende da Revelação, que é a regra e o princípio fundamental daquela: “Os sucessores dos apóstolos – continua Franzelin – aparecem sempre como as testemunhas e os doutores encarregados de só propor o que receberam dos apóstolos. O objeto de seu encargo apostólico e dever é a permanência na fidelidade ao ensinamento que receberam e às verdades que lhes foram confiadas pelos apóstolos” 12.

O APROFUNDAMENTO DO DEPÓSITO REVELADO

O dever do Magistério não consiste unicamente em transmitir as verdade de Fé, mas também em aprofundá-las, isto é, dar aos fieis maior compreensão delas. Isso deve ser feito não no sentido de uma evolução heterogênea do dogma, mas apenas por uma compreensão maior do que já havia sido revelado. O Magistério contribui para a passagem de um conhecimento implícito a um mais explícito da Fé. Assim se exprime o padre Marín Sola em seu estudo magistral sobre o dogma católico: “Os apóstolos não comunicaram à Igreja uma explicação perfeita de todo o senso implícito (da Revelação) que conheciam explicitamente. Todavia, deixaram o Magistério Dogmático Permanente, prolongamento perpétuo do Magistério Divino, para explicar ou manifestar sempre mais “o implícito” do Depósito Revelado, conforme o exigissem as heresias, as controvérsias ou as necessidades de cada época” 13.

Esse aprofundamento, como declarou o Concílio Vaticano I (1870), deve se produzir “na mesma crença, no mesmo sentido, no mesmo pensamento”. Nunca é possível afastar-se do sentido das verdades de Fé definidas “sob o pretexto ou em nome de uma compreensão mais aprofundada” 14.

O MODO DE ENSINAMENTO

A assistência divina à Igreja é diferente, na conformidade de como ela exercita o seu poder magisterial, uma vez que isso depende da vontade do sujeito. O Papa pode ensinar de modo infalível, de modo simplesmente autêntico, pode se contentar com emitir opiniões pessoais, ou mesmo – e isso parece ser o cerne do problema do Concílio Vaticano II (1962-1965) – limitar-se a dar conselhos pastorais.

O MAGISTÉRIO INFALÍVEL

Magistério infalível é aquele pelo qual o Papa é assistido divinamente para que possa ensinar sem erros a verdade revelada. Ele goza do carisma da infalibilidade no seu ato solene quando, sozinho ex cathedra ou como chefe de todo o corpo de Bispos reunidos em um Concílio Ecumênico, define uma doutrina no âmbito da Fé ou da Moral, na qualidade de Pastor Supremo de toda a Igreja, para ser crida por toda a Igreja 15.

No Concílio, o sujeito da infalibilidade é sempre o Papa, chefe daquela pessoa moral que é o Concílio, mesmo se o modo de ensinamento é diferente (não sozinho, mas em união com todos os Bispos reunidos). Não existem dois sujeitos distintos do carisma da infalibilidade, mas apenas um, o Papa, que pode ensinar de diverso modo.

O Concílio é então formalmente sujeito do Primado por causa do Papa, uma vez que, segundo o Concílio Vaticano I 16, o sujeito do Primado é único: o Papa 17.

O Concílio Ecumênico é, portanto, infalível quando pretende definir uma verdade de Fé, porque participa da infalibilidade do Papa.

Essa vontade de definir se pode constatar nos seus decretos quando se afirma que uma verdade deve ser crida firmemente pelos fiéis ou ainda quando se deve recebê-la como um dogma de Fé; quando se condena com o anátema o erro contrário, quando a proposição contraditória à verdade de Fé ensinada é qualificada como herética.

O Papa pode também definir infalivelmente doutrinas e condenar erros sem afirmar explicitamente que são para ser tomadas como de Fé. Neste caso, quem as nega não pode ser considerado formalmente herege, mas peca gravemente contra a Fé 18.

O MAGISTÉRIO ORDINÁRIO E UNIVERSAL

O Magistério infalível do Papa é exercido de maneira ordinária, quando ele ensina como cabeça e em união com o corpo episcopal disperso no mundo. É esse o Magistério ordinário universal (MOU).

Chama-se ordinário porque é exercido fora das circunstâncias excepcionais das definições ex cathedra e do Concílio Ecumênico. Exercita-se todos os dias pela pregação habitual dos pastores. É universal porque, para gozar da nota da infalibilidade, deve ser exercido pelo Papa e pelos Bispos a ele submissos e dispersos pelo mundo, de maneira concorde e unânime.

Essa unanimidade não deve ser apenas considerada no espaço, isto é, todos os Bispos vivos unidos ao Papa, mas também no tempo, no que concerne a doutrina ensinada.

Esse magistério é, por definição, tradicional, no sentido que faz eco hoje da doutrina ensinada pelos séculos.

Não define, como faz o magistério solene, mas simplesmente propõe o objeto da Fé e o transmite. Um elemento que segundo Pio IX (Tua libenter) permite reconhecer as verdades que são propostas como dogmas pelo Magistério ordinário da Igreja dispersa é o acordo unânime e constante dos teólogos: “De fato, mesmo se se trata daquela submissão que se deve prestar com um ato de fé divina, esta não deve ser limitada àquelas coisas que foram definidas com explícitos decretos dos Concílios ou dos Pontífices Romanos e desta Sé Apostólica, mas deve ser estendida também àquelas coisas que, por meio do Magistério ordinário de toda a Igreja difusa sobre toda a terra, são transmitidas como divinamente reveladas e, então, pelo universal e constante consenso, são consideradas pelos teólogos católicos como pertencentes à Fé” (Dz 2879).

A definição dogmática supõe o ensinamento do Magistério universal. Ela precisa que tal verdade, já ensinada pela Igreja, deve ser crida como definida de fé divina e católica.

REGRA PRÓXIMA DA FÉ

A Sagrada Escritura e a Tradição são a fonte e a regra remota da Fé, enquanto que a regra próxima é o Magistério da Igreja. Trata-se do Magistério infalível e definitivo que, no curso dos séculos, transmitiu-nos intacto e, de modo sempre mais inteligível, o Depósito revelado, sem nunca o alterar, e que deve continuar o seu trabalho até ao fim do mundo.

Santo Agostinho, fazendo-se eco de todo o ensinamento da Tradição, afirmava que ele não creria nem mesmo no Evangelho se o Magistério da Igreja não lho propusesse para crer 19. Lutero ousou impugnar essa verdade vivida já há quinze séculos de Cristianismo e, renegando o Magistério da Igreja, proclamou como única regra de fé a Sagrada Escritura confiada à interpretação individual dos fiéis. As inumeráveis seitas protestantes, com a perda e a degeneração doutrinais que as caracterizam, são uma prova evidente da falência desse falso princípio 20.

O MAGISTÉRIO SIMPLESMENTE AUTÊNTICO

O Magistério simplesmente autêntico é o que se exercita sem engajar a infalibilidade.

A própria definição da infalibilidade pontifícia dada pelo Concílio Vaticano I (1870), estabelecendo as condições em que o Papa é infalível, deixa aberta a possibilidade de que, fora delas, não exista essa assistência. Isso pode se verificar quando não há juízo positivo sobre a doutrina revelada, mas o Papa queira simplesmente dirimir uma controvérsia; ou então quando há um juízo positivo mas unicamente prudencial e não definitivo 21.

Os atos de um ensinamento não infalível pedem, no entanto, um assentimento religioso interno, isto é, do intelecto sob a moção da vontade. Esse assentimento pode ser suspenso somente no caso em que aparece afirmada uma doutrina claramente em contraste com o Magistério infalível.

Quando se constatasse “uma oposição precisa entre um texto de encíclica e os outros testemunhos da Tradição apostólica” 22, então, para o católico que tenha aprofundado a questão, é possível suspender ou negar o seu assentimento ao documento papal.

O MAGISTÉRIO VIVO E A PERENIDADE DA FÉ

Colocadas todas essas premissas, procuremos agora responder às acusações movidas contra a FSSPX de “não levar em conta o caráter vivo da Tradição” e de “querer congelar a autoridade magisterial da Igreja no ano de 1962” 23.

Quando se fala de “caráter vivo da Tradição”, se se quer significar com isso a capacidade que o ensinamento de Jesus Cristo e dos Apóstolos, a nós transmitido pela Igreja até hoje pelo seu Magistério infalível e portanto imutável, tem de dar a vida espiritual às almas e de vivificar a sociedade contemporânea, seremos os primeiros a aderir a essa verdade incontestável.

Ao contrário, se se quer significar com isso o conceito de “Tradição viva” como uma característica do Depósito revelado transmitido pela Igreja de transformar-se e de adaptar-se aos tempos e às circunstâncias até ao ponto de estar em contradição com o ensinamento infalível do passado, então estamos cara a cara com a teoria modernista da evolução dos dogmas.

Se, por “querer congelar a autoridade magisterial da Igreja no ano de 1962”, querem afirmar que a Igreja não tem mais o poder de ensinar a partir daquele ano, claramente rejeitamos esse erro e reconhecemos que a Igreja, mesmo hoje, tem o poder de ensinar, de transmitir e de aprofundar, com o seu Magistério infalível, a verdade, e isso, até o fim dos tempos.

Mas se querem significar com essa afirmação que a autoridade da Igreja de hoje teria o poder de ensinar e obrigar a crer em algo de diferente do que o Magistério já definiu infalivelmente, claramente estamos cara a cara com uma concepção errônea do Magistério, desvinculada do motivo formal pelo qual foi instituído por Nosso Senhor, isto é, a transmissão daquilo que já foi revelado, aprofundando “no mesmo sentido e no mesmo pensamento”.

O atributo “vivo” pode concernir ao sujeito do ato do Magistério, isto é, ao Papa e aos Bispos, ou também se referir ao conteúdo de seu ensinamento.

No que concerne ao sujeito, “vivo” se opõe a “póstumo”. O Magistério póstumo é aquele exercido com autoridade por todos os Papas e Bispos do passado, que continua, contudo, a ser exercido por seus escritos que, enquanto infalíveis, são, por sua natureza, imutáveis. O Magistério vivo, ao contrário, é o ensinamento atual dos pastores da Igreja que é exercido principalmente pela pregação oral feita pelos ministros legítimos e através de seus escritos.

Mas, quanto ao conteúdo do ensinamento, as profissões de fé, os dogmas, todas as verdades definidas e ensinadas infalivelmente no passado, continuam, pelo escrito, a fazer parte do Magistério vivo da Igreja e nenhuma autoridade eclesiástica poderá nunca legitimamente contradizê-los ou ensinar o contrário.

O Magistério vivo pode, como vimos,aprofundar sempre mais as verdades de Fé já reveladas, dar-lhes uma compreensão sempre mais profunda, mas sempre no mesmo sentido e na mesma linha daquilo que já foi ensinado de maneira definitiva.

Nesse sentido, o atributo “vivo” é uma característica essencial do Magistério da Igreja. Os pastores de hoje se fazem eco daqueles de ontem, e, aqueles de amanhã continuarão a anunciar a mensagem ouvida de Jesus e dos Apóstolos até ao fim dos tempos, defendendo-a contra os erros e as heresias, para gerar a Fé nos homens e dar-lhes assim a possibilidade de chegarem à salvação eterna.

LIVRE EXAME OU DEFESA DA FÉ ?

“Como os protestantes também vocês julgam o Magistério da Igreja, mas no lugar da Sola Scriptura utilizam o critério Sola Traditione, como se não fosse a Igreja que nos ensinasse qual é o conteúdo da Tradição. Substituem assim o juízo da Igreja pelo seu e caem no erro do livre exame”. Essa é a acusação recorrente de alguns de nossos opositores.

Responde-se facilmente a essa objeção que o critério de juízo não é subjetivo. Não é o indivíduo que pode se erguer para julgar o magistério atual, segundo as suas ideias pessoais.

O critério de juízo não se pode, muito menos, tirar unicamente de uma fonte do Depósito revelado como os protestantes fazem com a Sagrada Escritura. O critério só pode ser o Depósito revelado inteiro, isto é, Sagrada Escritura e Tradição, como nos foi transmitido infalivelmente, de fato, pelo Magistério da Igreja.

Quando uma contradição aparece manifestamente à razão entre uma doutrina proposta com aquilo em que sou obrigado a crer, devo me referir àquilo em que a Igreja, guiada pelo Magistério, sempre creu 24. A razão manifesta essa oposição, mas o que permite de fazer um julgamento sobre o erro é o Magistério definitivo da Igreja, critério absoluto e definitivo de verdade.

Concretamente, se um dia alguma autoridade na Igreja, inclusive o Papa, afirmasse que na Santíssima Trindade há quatro pessoas, não poderia ser acusado de livre exame se afirmasse que tal ensinamento é falso, porque o Mistério da Santíssima Trindade já foi definido irrevogavelmente pela Igreja e então no futuro ela só poderá procurar aprofundar esse dogma, mas nunca ensinar o contrário daquilo que já foi ensinado infalivelmente.

Hoje em dia há óbvias contradições entre o ensinamento tradicional da Igreja e várias dentre as novas doutrinas que o Concílio Vaticano II (1962-1965) e o pós-concílio propagaram, como várias publicações já demonstraram e teólogos importantes, inclusive no âmbito da Igreja oficial 25, puseram recentemente em relevo. Nesse artigo, mostramos com algumas citações a seguir, como esse desacordo é reconhecido até mesmo por personalidades proeminentes que participaram no último Concílio.

“É inegável que a Declaração sobre a liberdade religiosa diga materialmente outra coisa que o Syllabus de 1864 e mesmo mais ou menos o contrário” 26.

“Se se procura um diagnóstico global do texto [Gaudium et Spes], poder-se-ia dizer que é (juntamente com os textos sobre a liberdade religiosa e sobre as religiões do mundo) uma revisão do Syllabus de Pio IX, um tipo de Contrassyllabus” 27.

“Poder-se-ia fazer uma lista impressionante das teses ensinadas em Roma antes do Concílio como unicamente válidas e que foram eliminadas pelos Padres conciliares” 28

“É claro, seria vão esconder isso, o decreto conciliar Unitatis Redintegratio afirma em muitos pontos outra coisa que ‘Fora da Igreja não há salvação’, no sentido em que se entendeu esse axioma durante séculos(…) Lumen Gentium abandonou a tese de que a Igreja Católica seria a Igreja de maneira exclusiva” 29.

“Neste processo de novidade na continuidade devíamos aprender a compreender mais concretamente do que antes que as decisões da Igreja em relação às coisas contingentes30, por exemplo, certas formas concretas de liberalismo ou de interpretação liberal da Bíblia deviam necessariamente ser essas mesmas acidentais, justamente porque referidas a uma determinada realidade em si mesma mutável (…) O Concílio Vaticano II, com a nova definição da relação entre a fé da Igreja e determinados elementos essenciais do pensamento moderno, reviu ou melhor corrigiu algumas decisões históricas, mas, nesta aparente descontinuidade, manteve e aprofundou a sua íntima natureza e a sua verdadeira identidade.” 31

Diante dessas mudanças que tocam a Fé e estão na raiz da grave crise que a Igreja está sofrendo, é imperioso manifestar publicamente a própria oposição, à luz do verdadeiro Magistério vivo da Igreja, que é o seu ensinamento constante, infalível e definitivo, o único capaz de iluminar a escuridão e a incerteza doutrinal contemporânea.

(Tradizione Cattolica no. 83)

1. João Paulo II, Motu Proprio Ecclesia Dei afflicta, 02.07.1988

2. Bento XVI, Carta aos Bispos do mundo inteiro sobre a remissão das excomunhões de 1988, 10.03.2009.

3. Cardeal Pietro Parente, Dizionario di teologia dogmatica, ed. Studium, 1952, p.293.

4. O Decreto Lamentabili de São Pio X na sua 21ª proposição condena o erro oposto a essa doutrina.

5. Concílio Vaticano I, Constituição Dei Filius, c.4, Dz 3020.

6. Jo 14,26

7. Sess. 4

8. Mt 28,18

9. Mc 16,15

10. Cardeal Pietro Parente, Dizionario di Teologia Dogmatica, p.332 ss.

11. Idem, p.204

12. Tese 22

13. Padre Marín Sola, “L’évolution homogène du dogme catholique”, nº 59.

14. Concílio Vaticano I, DeiFilius, c.4, Dz 3020.

15. Concílio Vaticano I, Pastor Aeternus, c.4.

16. Concílio Vaticano I, Pastor Aeternus, c.3, Dz 3059.

17. A Nova teoria proposta em Lumen Gentium nº 22, segundo a qual o colégio de Bispos unido ao Papa seria, além do Papa sozinho, outro sujeito permanente e ordinário do poder supremo, é totalmente contrária ao ensinamento tradicional da Igreja.

18. Ainda não foi definida a infalibilidade para aquilo que não é apresentado pelo Papa como sendo de Fé divina. Padre Marín Sola, idem, T.I nº 269, p.472.

19. Contra epistolam Manichaei quam vocant Fundamenti liber unus, c.5, PL, 42,176.

20. Cardeal Pietro Parente, Dizionario di Teologia Dogmatica, p.204.

21. L. Billot, De Ecclesia, Q14 Tese 31,1, p.640.

22. Arnaldo Xavier da Silveira, La nouvelle messe de Paul VI: qu’enpenser?, DPF 1974, pp.300 ss.

23. João Paulo II e Bento XVI, respectivamente, conferir na introdução deste artigo.

24. É o critério que nos propõe São Vicente de Lérins: “Quod semper quod ubique quod abomnibus”

25. Como, por exemplo, Monsenhor BruneroGherardini e o padre SerafinoLanzetta. Ler, em particular, Do Liberalismo à Apostasia, de Mons. Lefebvre, Ed.Permanência, 1991.

26. Padre Yves Congar, La crise de l’Eglise et Monseigneur Lefebvre, LeCerf 1977, p.54.

27. Cardeal Joseph Ratzinger, Les príncipes de lathéologiecatholique, Téqui, 1982, p.427.

28. Cardeal Suenens, I.C.I de 15.05.1969.

29. Padre Yves Congar, Essaisoécumeniques, LeCenturion, 1984, p.216.

30. N.T. Não é nada contingente, porque qualquer forma de Liberalismo político impugna necessariamente a doutrina definitiva sobre o Reinado Social de Nosso Jesus Cristo, como exposta, por exemplo na encíclica Quas Primas de Pio XI. Outra coisa que o Papa afirma gratuitamente e não resolve é: Como corrigir um erro sobre elemento essencial do pensamento moderno pode referir-se a algo contingente, isto é, acidental ? Se o elemento é essencial ao pensamento moderno, ele esteve sempre lá e está hoje; pior, foi condenado ontem. Como agora querer admitir os mesmos elementos sem desobedecer ao Magistério constante da Igreja ?

31. Bento XVI, Discurso à Cúria de 22.12.2005.