Fonte: La Porte Latine – Tradução: Dominus Est
Pe. Patrick de la Rocque, FSSPX
A Encarnação, ou a imanência fortalecida
No que diz respeito ao dogma da Encarnação, voltaremos ao sermão de João Paulo II em Bourget citado há pouco. Conforme vimos, o homem – todo homem – foi descrito como “interiormente ligado à sabedoria eterna”. E o papa prosseguiu: “Cristo veio ao mundo em nome da aliança do homem com a sabedoria eterna. Em nome desta aliança Ele nasceu da Virgem Maria e anunciou o Evangelho. Em nome desta aliança «crucificado… sob Pôncio Pilatos», padeceu na cruz e ressuscitou. Em nome desta aliança, renovada na sua morte e na sua ressurreição, deu-nos o seu Espírito. A aliança com a sabedoria eterna continua n’Ele”. O papa não diz que a aliança com Deus é restabelecida n’Ele – o que suporia que o homem a havia destruído anteriormente pelo pecado – mas que ela continua n’Ele. Dito de outra maneira, Cristo veio ao mundo “em nome da aliança do homem com a sabedoria eterna”, no contexto de uma imanência divina previamente existente. Ele veio para dar uma nova “força” a essa imanência, como que para “reconfigurá-la”. Qual é então essa nova “força”? O papa responde comentando Mt. 28, 18, onde Cristo diz: “Foi-me dado todo o poder no céu e na terra”: “«O poder no céu e na terra» não é um poder contra o homem. Nem é sequer um poder do homem sobre o homem. É o poder que permite ao homem revelar-se a si mesmo na sua realeza, em toda a plenitude da sua dignidade. É o poder de que o homem deve descobrir no seu coração a força específica, pelo qual ele deve revelar-se a si mesmo nas dimensões da sua consciência e na perspectiva da vida eterna”[12].
A dimensão universal da Encarnação
Segundo essa doutrina, a relação do homem com Cristo é profundamente modificada. Já não é mais Cristo que é o caminho para o Céu – Ele que todavia é o caminho, a verdade e a vida –, Cristo que é quem o homem deve se incorporar para alcançar a salvação. Não. Na concepção de João Paulo II, seria mais correto dizer que, ao contrário, é o homem que tem em si mesmo o caminho da salvação – a voz da sua consciência –, caminho ao qual Cristo veio fortalecer em todos os homens. Esta é a interpretação que João Paulo II faz da expressão conciliar que lhe é cara: “Porque, pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem”[13]. Para João Paulo II, a Encarnação tornou todos os homens, de maneira mais profunda ainda, filhos adotivos de Deus[14]. Citemos ainda João Paulo II: “Recordando que «o Verbo se fez carne», isto é, que o Filho de Deus se tornou homem, devemos tomar consciência de quanto se tornou grande, por meio deste mistério — isto é, através da encarnação do Filho de Deus — de quanto se tornou grande cada homem. Cristo, com efeito, foi concebido no seio de Maria e tornou-se homem para revelar o Amor eterno do Criador e Pai, e para manifestar a dignidade de cada um de nós”[15].
Essa imensa inversão realizada pela teologia modernista evidencia-se na mensagem que João Paulo II dirige ao mundo no dia do seu primeiro Natal como papa, em 25 de dezembro de 1978. O próprio título do discurso é revelador: Natal, festa do homem. Este texto, com seu surpreendente lirismo, merece ser citado na íntegra. Aqui nós vamos nos limitar às suas passagens essenciais: “Natal é a festa do homem. Nasce o Homem. […] Se nós celebramos assim tão solenemente o Nascimento de Jesus, fazemo-lo para testemunhar que todo e qualquer homem é alguém, único e que não se pode repetir”. De uma vez só, o aniversário da Encarnação se transforma em festa da humanidade. A dinâmica da Encarnação não está mais voltada para a pátria celeste que o Verbo Encarnado torna acessível novamente, mas para o homem e sua dignidade transcendental, resultante justamente da imanência divina que deveria caracterizá-lo. O papa continua: “É em nome deste singular valor de todos e cada um dos homens, em nome desta força que é trazida para todos e cada um dos homens pelo Filho de Deus ao tornar-se homem, que eu me dirijo nesta mensagem sobretudo ao homem: Aceitai a verdade plena acerca do homem, que foi pronunciada na Noite de Natal; […] Aceitai o mistério, no qual todos os homens e cada um vive desde quando Cristo nasceu. Respeitai este mistério! […] Glória a Deus com mais alto dos céus! (Lc. 2, 14). Deus aproximou-se, Deus está no meio de nós. É Homem. […] Deus agradou-se do homem por Cristo”[16]. O Deus de João Paulo II não é mais aquele que coloca toda sua complacência em Cristo e em nós, na medida em que somos “incristados” pela graça batismal; é um Deus que coloca sua complacência no homem, em cada homem, entre outras coisas porque Cristo se uniu a cada homem.
Tal é, para João Paulo II, a obra da Encarnação: “Jesus Cristo torna-nos capazes de participarmos do que Ele é. Por meio da sua Encarnação, o Filho de Deus une-se em certo modo com todo o ser humano. No nosso ser interior reconciliou-nos com Deus, reconciliou-nos com os outros, reconciliou-nos com os nossos irmãos e com as nossas irmãs: ele é a nossa Paz”[17]. Muito acostumados a essas fórmulas, não necessariamente medimos seu alcance. Elas são simplesmente incompatíveis com a fé católica. Com efeito, é contrário à fé católica dizer que o Filho de Deus já reconciliou cada homem com Deus em seu ser interior. No entanto, esta afirmação é repetida muitas vezes por João Paulo II: “Em cristo todos são o «povo eleito», porque em Cristo o homem é eleito. Cada homem, sem exceção e diferença, é reconciliado com Deus, e portanto está chamado a participar na eterna promessa de salvação e vida. A humanidade inteira é criada novamente como o «Homem Novo… segundo Deus, na justiça e santidade da verdade» (Ef. 4, 24)”. Insistamos pela última vez nesse universalismo da Encarnação: “é o homem em toda a plenitude do mistério de que se tornou participante em Jesus Cristo, mistério de que se tornou participante cada um dos quatro bilhões de homens que vivem sobre o nosso planeta, desde o momento em que é concebido”[19]. Todas essas passagens, que poderíamos multiplicar, pecam gravemente contra a fé. Há nessas passagens uma recusa em distinguir o amor presciente que Deus tem para com cada homem com o amor de dileção que Ele tem só por poucos, segundo as próprias palavras de Cristo em Jo. 16, 27: “porque o mesmo Pai vos ama, porque vós me amaste e crestes que saí do Pai”.
Uma conscientização pela fé: a confusão entre ordem natural e sobrenatural
Se segundo João Paulo II a Encarnação diz respeito a todos os homens na medida em que inclui cada um em uma união maior com Deus – em um maior grau de graça[20] –, não é menos verdade que essa nova divinização não é consciente para todos: João Paulo II sublinha: “Jesus Cristo «está de certa maneira unido a todos os homens» (Gaudium et spes, nº 22), mesmo que eles não estejam conscientes disso”[21]. E esse novo grau de divinização deve ser também, na medida do possível, conscientizado. De acordo com o postulado modernista, esse papel de conscientização pertence à fé. Vejamos em quais termos: “Pela fé o homem chega a um conhecimento mais pleno de Deus e adquire uma dimensão mais profunda de sua dignidade como pessoa; conhecimento e dignidade que são próprios dos homens”[22].
Considerada em si mesma, essa proposição é errônea. Tanto de fato como de direito é falso afirmar que todos os homens partilham de um mesmo conhecimento de Deus e igual dignidade. Quanto ao conhecimento, essa frase só distingue o conhecimento comum do conhecimento de fé por uma diferença de grau. Ora, existe porém uma diferença de natureza entre o conhecimento racional acessível – e não comum – a todos os homens e o conhecimento de fé que é privilégio somente dos membros da Igreja. Santo Tomás o diz claramente quando sintetiza essa Tradição: “As verdades da fé, excedendo a razão humana, não são susceptíveis de contemplação pelo homem, se Deus não as revelar”[23]. No que diz respeito à dignidade, ainda é errado dizer que todos os homens a compartilham. Ouçamos novamente São Tomás: “Quem peca, afasta-se da ordem racional. E portanto decai da dignidade humana, pois que o homem é naturalmente livre e tem uma finalidade própria; e vem a cair, de certo modo, na escravidão dos animais, que o leva a ser ordenado à utilidade dos outros, conforme à Escritura: «O homem, quando estava na honra não o entendeu: foi comparado aos brutos irracionais e se fez semelhante a eles» (Sl. 48, 21)”[24]. Todas essas distinções, elementares em teologia, foram neste caso esquecidas. Tudo é considerado somente sob um ângulo de conscientização maior ou menor de uma realidade já integralmente compartilhada por todos.
Eis então as últimas consequências da nova teologia da Encarnação, que não são outras senão uma nova característica destacada por São Pio X: a completa confusão entre ordem natural e sobrenatural.
(Continua…)
Notas
- João Paulo, homilia de 01 de junho de 1980 na missa em Bourget, nº 4, DC 1980, n° 1788, p. 585–586.
- Concílio Vaticano II, constituição Gaudium et spes, nº 22 §2.
- Cf. João Paulo II, discurso de 28 de janeiro de 1979 para a abertura dos trabalhos da IIIª Conferência do episcopado latino-americano, III, 6, DC 1979, n° 1758, p. 164–172: “A Igreja sente o dever de anunciar a libertação de milhões de seres humanos e o dever de ajudar a consolidar-se esta libertação; mas ela sente também o dever correspondente de proclamar a libertação no seu sentido integral e profundo, como a anunciou e realizou Jesus Cristo). […] Libertação que parte da realidade de se ser filhos de Deus, a quem podemos chamar Abba!, Pai! (cf. Rom. 8, 15) e em virtude da qual nós reconhecemos em todo o homem um nosso irmão”.
- João Paulo II, alocução de 05 de junho de 1979 antes do Angelus, DC 1979, n° 1767, p. 623, itálicos do texto oficial. Cf. homilia de 24 de março de 1980 na missa de abertura do sínodo ucraniano. DC 1980, n° 1784, p. 361: Maria é a “Mãe da unidade” no seio da qual o Filho de Deus se uniu à humanidade, inaugurando misticamente a união conjugal do Senhor com todos os homens”. Afirmar que Cristo inaugura essa união conjugal é supor que essa união conjugal será um dia plenamente efetiva. Ora, ela é aqui descrita como união conjugal do Senhor “com todos os homens”. Tal frase é inaceitável para a fé católica.
- João Paulo II, mensagem de Natal de 25 de dezembro de 1978, DC 979, n° 1756, p. 57–58.
- João Paulo II, homilia de 02 de outubro de 1979 no Yankee Stadium em Nova York, DC 1979, n° 1792, p. 880.
- João Paulo II, audiência geral de 10 de agosto de 1988, DC 1988, n° 1972, p. 1100, itálicos no texto oficial.
- João Paulo II, Redemptor hominis, nº 13. Outros textos que vão no mesmo sentido são muito ambíguos. Cf. Audiência geral de 14 de fevereiro de 1979, DC 1979, n° 1759, p. 211: “os homens que já existem e aos que virão, deve a Igreja revelar sempre Jesus Cristo, pleno e não diminuído mistério da Salvação. Este mistério é mistério eterno em Deus, que deseja que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade. O mistério que se tornou, no tempo, uma Realidade Divino-Humana, que tem o nome de Jesus Cristo. É Realidade histórica, e ao mesmo tempo Ele está acima da história, “é o mesmo ontem, hoje e sempre” (Heb. 13, 8). É Realidade que não pára fora do homem; é para o homem a razão de existir, de ser e de agir; constitui a fonte e o fermento da nova vida em cada homem”. A fonte e o fermento da nova vida não é outra senão a graça, recebida no batismo. Ora, aqui se afirma que ela é conferida a todos os homens do fato de que o desígnio salvífico de Deus se encarnou na história sob o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo para se tornar realidade em cada homem.
- Cf. João Paulo II, encíclica Dives in misericordia, nº 7, DC 1980, n° 1797, p. 1090: “Deus, tal como Cristo O revelou, não permanece apenas em estreita relação com o mundo, como Criador e fonte última da existência; é também Pai: está unido ao homem por Ele chamado à existência no mundo visível, mediante um vínculo mais profundo ainda do que o da criação. É o amor que não só cria o bem, mas que faz com que nos tornemos participantes da própria vida de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo”.
- João Paulo II, discurso de 22 de dezembro de 1986 à Cúria, DC 1987, n° 1933, p. 134.
- João Paulo II, encontro de 17 de maio de 1988 com os índios da missão Santa Teresita, DC 1988, n° 1964, p. 614.
- Cf. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, 2a 2ae, q. 6, art. 1.
- Cf. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, 2a 2ae, q. 64, art. 2, ad 3.