Pode parecer estranho e paradoxal chamar o protestantismo de naturalista. Nada há em Lutero de exaltação à bondade intrínseca da natureza porque, segundo ele, a natureza está irremediavelmente decaída e a concupiscência é invencível. No entanto a opinião excessivamente niilista que o protestante tem sobre si mesmo, desemboca em um naturalismo prático: na intenção de menosprezar natureza e exaltar o poder “só da fé”, relegam a graça divina e a ordem sobrenatural ao domínio das abstrações. Para os protestantes a graça não opera uma verdadeira renovação interior; o batismo não é a restituição de um estado sobrenatural habitual, é somente um ato de fé em Jesus Cristo que justifica e salva.
A natureza não é restaurada pela graça, permanece intrinsecamente corrompida; e somente a ordem obtém de Deus que deite sobre nossos pecados o manto pudico de Nóe. Todo o organismo sobrenatural que o batismo agrega à natureza enraizando nela a graça, todas as virtudes infusas e os dons do Espírito Santo são reduzidos a nada, reduzidos a um só ato forçado de fé, confiança em um redentor que gratifica somente para retirar-se para longe a criatura, deixando um abismo intransponível entre o homem definitivamente miserável e Deus transcendente três vezes santo. Esse pseudo supernaturalismo, como chama o Padre Garrigou Lagrange, deixa finalmente o homem, apesar de haver sido redimido, sujeito somente à força de suas aptidões naturais; fatalmente se afunda no naturalismo. Deste modo os extremos opostos se unem! Jacques Maritain exprime bem o desenlace naturalista do luteranismo:
“A natureza humana terá que rechaçar como um inútil acessório teológico o manto de uma graça que não é nada para ela e cobrir-se com sua fé confiança para converter-se em uma bela besta livre, cujo infalível e continuo progresso encanta hoje o universo inteiro”. (5)
Esse naturalismo se aplicará à ordem civil e social: ficando a graça reduzida a um sentimento de fé confiança, a Redenção será somente uma religiosidade individual e particular, sem influência na vida pública. A ordem pública, econômica e política fica condenada a viver sem Nosso Senhor Jesus Cristo. O protestante busca no seu êxito econômico o critério de sua justificação diante de Deus; assim, de bom grado escreverá sobre sua porta: “Rendei honras a Deus por teus bens, oferecei as primícias de seus ganhos, então teus celeiros se encherão e teus tonéis transbordarão de vinho”. (Prov. III, 9 10)
Jacques Maritain escreveu excelentes páginas sobre o materialismo do protestantismo, que dará nascimento ao liberalismo econômico e ao capitalismo:
“Por trás dos chamados de Lutero ao Cordeiro que salva, por trás de seus movimentos de confiança e sua fé no perdão dos pecados, há uma criatura humana que levanta a cabeça e faz seus negócios no lodaçal em que está submersa por causa do pecado de Adão! Desenvolver-se-á no mundo, seguirá a sede do poder, o instinto dominador, a lei deste mundo que é o seu mundo. Deus será somente um aliado, um poderoso”.(op.cit.pág.52, 53)
O resultado do protestantismo foi que os homens se apegaram ainda mais aos bens deste mundo, esquecendo de seus bens eternos. E se um certo puritanismo chega a exercer uma vigilância exterior sobre a moralidade pública, não impregnará os corações do espírito verdadeiramente cristão, que é um espírito sobrenatural, onde reina a primazia do espiritual. O protestantismo, necessariamente, será conduzido a proclamar a emancipação do temporal em relação ao espiritual. Essa emancipação, justamente, vai reencontrar-se no liberalismo. Os papas tiveram portanto muita razão em denunciar este naturalismo de inspiração protestante como sendo a origem do liberalismo que transtornará a cristandade em 1789 e 1848. Assim diz Leão XIII:
“Esta ousadia de homens tão falsos que ameaça cada dia a sociedade civil com maiores ruínas, e que estremece a todos com inquietante preocupação, tem sua causa e origem nas peçonhentas doutrinas que, difundidas entre os povos com boas sementes em tempos passados, produziram em seu tempo frutos tão danosos. Bem sabeis, Veneráveis irmãos, que a guerra cruel iniciada contra a fé católica pelos inovadores, desde o décimo sexto século e que vem recrudescendo diariamente até o presente, tinha por fim unicamente afastar toda revelação e toda ordem natural, para abrir a porta aos eventos e delírios da razão”.(6)
E posteriormente, o Papa Bento XV:
“Desde os três primeiros séculos e desde as origens da Igreja, período em que o sangue dos cristãos fecundou toda terra, pode se dizer que nunca a Igreja correu tão grande perigo como o que se manifestou nos fins do século XVIII. Então uma filosofia em delírio, a continuação da heresia e da apostasia dos inovadores, adquiriu sobre os espíritos um poder de sedução, provocando transformação total, com o propósito determinado da destruir as bases cristãs da sociedade, não somente na França, mas pouco a pouco em todas as nações”. (7)
Do Liberalismo à Apostasia – Mons. Marcel Lefebvre
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(5) Trois Reformateurs, pág. 25.
(6) Encíclica “Quod Apostólici” de 28 de Dezembro de 1878.
(7)Carta “Anne Jam Exeunte” de 7 de Março de 1917, Paz Interior das Nações (PIN 486) vide bibliografia