PEGANDO O TOURO PELOS CHIFRES: O DILEMA SEDEVACANTISTA – ASPECTOS – PARTE 1/2

Fonte: Courrier de Rome – Tradução: Dominus Est

1. O Concílio Vaticano II semeou a dúvida no espírito dos católicos. Essa dúvida deve ser entendida, evidentemente, primeiro como a dúvida semeada pelo Concílio a respeito das verdades divinamente reveladas por Deus. O motivo dessa dúvida se concentra inteiramente no princípio da liberdade de consciência adotado pelos Papas desde o último Concílio, de João XXIII a Francisco.

2. “Hoje”, disse João XXIII no discurso de abertura do Concílio Vaticano II, em 11 de outubro de 1962, “a Esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade. Julga satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validez da sua doutrina do que renovando condenações”. Depois dele, na sua mensagem de encerramento do Concílio, dirigida aos governantes, em 8 de dezembro de 1965, Paulo VI declarou que “a Igreja pede apenas liberdade”. Em outras palavras, a verdade pregada pela Igreja é agora reivindicada, no contexto da vida em sociedade e face aos poderes civis, não mais como dogma, mas como uma opinião. O dogma exige para si a exclusividade da expressão — o que implica a repressão dos erros contrários — enquanto a opinião se contenta com a liberdade de expressão e não pretende excluir a expressão de opiniões contrárias. Em sua Mensagem de 8 de dezembro de 1987 pela Jornada Mundial da Paz de 1988, João Paulo II tirou a consequência lógica dessas proposições iniciais de João XXIII e Paulo VI, afirmando que “mesmo quando um Estado concede a uma determinada religião uma posição jurídica particular, deve reconhecer juridicamente e respeitar efetivamente o direito de todos os cidadãos à liberdade de consciência”.

A mesma ideia foi vigorosamente reafirmada por Bento XVI no seu discurso à ONU em 8 de dezembro de 2010: “Todos devem poder exercer livremente o direito de professar e manifestar, individualmente ou comunitariamente, a sua religião ou sua fé, tanto pública como privadamente, no ensino e na prática, nas publicações, no culto e na observância dos ritos. Não devem ser impedidos se quiserem, eventualmente, aderir a uma outra religião ou não professar nenhuma”. Portanto, o tipo de discurso que o Papa Francisco utiliza atualmente não apresenta nenhuma novidade. Quando, no dia seguinte à sua eleição, em outubro de 2013, o sucessor de Bento XVI declarou, numa entrevista a Eugenio Scalfari que “cada um tem a sua própria concepção do bem e do mal”, o novo Papa estava simplesmente traduzindo a doutrina do Concílio sobre a liberdade religiosa.

3. Infelizmente, tudo isto é inegável. “Seria negar a evidência e fechar os olhos” escrevia Mons. Lefebvre ao Cardeal Ottaviani(1)“se não afirmássemos corajosamente que o Concílio permitiu que aqueles que professam os erros e as tendências condenadas pelos Papas acima mencionados, acreditassem legitimamente que as suas doutrinas são agora aprovadas. […] Infelizmente, pode-se e deve-se dizer que, de uma maneira mais ou menos geral, quando o Concílio inovou, minou a certeza das verdades ensinadas pelo Magistério autêntico da Igreja como pertencendo definitivamente ao tesouro da Tradição”. Sim, o Concílio semeou a dúvida.

4. Mas essa dúvida deve ser entendida também como uma dúvida semeada como consequência em relação às próprias autoridades, em relação a todos os membros da hierarquia, Papa e Bispos, que minam as verdades da fé. Como podemos continuar a acreditar, com efeito, que todos estes heresiarcas representam a autoridade legítima da Igreja? A questão coloca-se desde muito cedo.

Primeiro aspecto do dilema

5. Por ocasião da promulgação do Novo Missal em 1969, vários defensores da verdadeira Missa deixaram de reconhecer a legitimidade do Papa Paulo VI. No início, Mons. Lefebvre manteve boas relações com eles. Mas as relações com alguns destes padres tornaram-se tensas depois da audiência concedida por Paulo VI ao fundador da Fraternidade, em 11 de setembro de 1976, e ainda mais com os colóquios que desenvolvidos entre o Cardeal Seper e o prelado de Ecône, em maio de 1977. Já em fevereiro de 1977, no seu pequeno livro O Golpe de mestre de Satanás, Mons. Lefebvre apresentava  a vacância da sede pontifícia como uma hipótese possível, embora preferisse a explicação de um Paulo VI, Papa legítimo mas liberal. Foi em 1977 que os dois principais defensores franceses da tese do sedevacantismo (que representavam também as duas principais variantes) foram expulsos de Ecône: o Pe. Barbara e o Pe. Guérard des Lauriers. A ruptura definitiva deu-se após a audiência concedida por João Paulo II a Mons. Lefebvre, em 18 de novembro de 1978. Posteriormente, entre os anos de 1979 e 1981, um certo número de padres e seminaristas da Fraternidade Sacerdotal São Pio X foram afastados por D. Lefebvre ou deixaram-no por vontade própria para aderir às teses do Pe. Guérard ou do Pe. Barbara.

6. Todas estas teses apresentam o mesmo ponto comum, que é o ponto culminante da sua demonstração: o atual ocupante da Sé de Roma não é realmente Papa, isto é, não é alguém realmente dotado do poder supremo e universal de jurisdição, que define como tal o Soberano Pontificado. As divergências (pois elas existem e estão longe de ser negligenciáveis) dizem respeito ao modo como se chega a esta conclusão. Não as examinaremos aqui. Limitar-nos-emos a dizer o que se deve pensar da conclusão.

7. Uma explicação teológica ou pretensamente dogmática vale tanto quanto a sua conformidade com os ensinamentos divinamente revelados e infalivelmente propostos como tais pelo Magistério da Igreja. Ora, em virtude desses ensinamentos, duas verdades são absolutamente indubitáveis e impõem-se de modo necessário à adesão de todo o católico. Em primeiro lugar, a Igreja é, em sua definição essencial, querida por Deus, uma sociedade visível e dotada de uma cabeça visível, que é o sucessor de São Pedro. Com efeito, o Concílio Vaticano I, no capítulo I da constituição Pastor aeternus (2), ensina explicitamente que São Pedro, considerado na pessoa de todos os seus sucessores, os Bispos de Roma, é a cabeça visível da Igreja: “totius Ecclesiae militantis visibile caput”. Em segundo lugar, a Igreja é uma sociedade indefectível, no sentido de que aqui em baixo, antes do fim do mundo, não poderá deixar de existir, nem mudar substancialmente na sua definição, isto é, na sua natureza e na sua constituição íntima. Com efeito, o Papa São Pio X, no Decreto Lamentabili, de 3 de julho de 1907, condenou a seguinte proposição: “A constituição orgânica da Igreja não é imutável; mas a sociedade cristã está sujeita, como a sociedade humana, a uma evolução perpétua” (3). Estas duas verdades têm a sua origem no versículo 18 do capítulo 16 do Evangelho de São Mateus: Nosso Senhor prediz aí que as potências inimigas nunca conseguirão destruir a Igreja. Isto significa, em particular, que a Igreja nunca poderá deixar de ter a sua cabeça visível, princípio necessário da sua unidade, e que esta unidade permanecerá na profissão inalterada da verdadeira fé e do verdadeiro culto.

8. Disso se conclui que a explicação dita “sedevacantista” é inconciliável com os dados da Revelação divina, tal como definitivamente propostos pelo Magistério da Igreja. Uma das razões apresentadas pelo fundador da Fraternidade São Pio X para rejeitar a hipótese “sedes vacans”foi que “a questão da visibilidade da Igreja é demasiado necessária à sua existência para que Deus a omita durante décadas; o raciocínio daqueles que afirmam a inexistência do Papa coloca a Igreja numa situação inextricável”(4) . De fato, a Revelação obriga-nos a acreditar que o Papa é necessariamente (isto é, sempre e em toda a parte) o princípio da unidade visível da sociedade da Igreja. Se admitirmos que a Igreja pode, em algum momento ou em algum lugar, conservar a sua unidade visível sem o Papa, admitimos pelo mesmo fato que o Papa não é necessariamente o princípio dessa unidade. Isto nega uma verdade divinamente revelada. Caetano (5) qualificou essa negação como um “erro intolerável”, condenado pelo Papa Martinho V no Concílio de Constança. E via nele o equivalente ao erro de João Hus, o antepassado dos protestantes.

9. Para melhor compreender o alcance deste argumento, considere que o princípio da unidade visível de uma sociedade tem duas vertentes. Há um princípio formal (ou constitutivo), que é a unidade de ordem da sociedade, ou seja, o fato de os membros da sociedade estarem realmente em relação uns com os outros, porque agem em conjunto para um fim comum. Há um segundo princípio motor (ou causal), que é a autoridade sob cuja direção os membros da sociedade se unem para agir no sentido do seu fim comum, e na Igreja essa autoridade é a do Papa. A ligação entre os dois princípios é de causa e efeito: o princípio formal da Igreja é a unidade da ordem causada pelo Papa como princípio motor. Isto reflete-se na linguagem popular quando se diz que o Papa, como qualquer chefe de sociedade, tem a tarefa de “manter a ordem” na Igreja. Dito isto, é preciso fazer uma nova distinção no que diz respeito ao princípio motor da unidade visível da Igreja: esse princípio pode existir na Igreja de duas maneiras, em ato ou em potência. Existe enquanto exerce atualmente o seu governo; ou como o poderá exercer, num futuro próximo, de acordo com prazos que correspondem à natureza da sociedade humana. Porque qualquer sociedade pode ser momentaneamente privada do seu chefe: esta é uma regra geral, à qual a Igreja não é exceção. Essa privação temporária e relativa não põe em causa a unidade visível da sociedade, porque corresponde a uma necessidade inerente ao que define a sociedade humana enquanto tal. A unidade visível da sociedade humana é moral, e não física. A unidade física de uma pessoa é destruída logo que   o corpo é privado da sua alma: a morte, que realiza esta separação, é instantânea e definitiva. Por outro lado, a unidade moral de uma sociedade só é destruída se a ordem social desaparecer, e esse desaparecimento só se dá gradualmente. Ora, o desaparecimento momentâneo do chefe da sociedade não leva à destruição da ordem social, desde que seja temporário (como acontece nos períodos de eleição, regência ou transferência de poder).

Quando se fala de uma sociedade, há, portanto, uma distinção fundamental a fazer entre uma vacância temporária e uma vacância perpétua da autoridade, sendo esta última, e não a primeira, incompatível com a unidade visível da sociedade(6) .

10. A tese sedevacantista não pode, portanto, ser justificada invocando o fato real e histórico das várias vacâncias da Sé Apostólica, por mais longas que tenham sido. Isto continua a ser verdade, mesmo se considerarmos a hipótese de uma vacância causada não só pela morte mas também pela heresia do Papa. Os teólogos acreditam, sem dúvida, que um tal Papa deixaria de fazer parte da Igreja e perderia, portanto, o seu cargo. Mas, na hipótese prevista por estes teólogos, esta desqualificação seria rapidamente seguida de uma nova eleição. Tal como Torquemada, Caetano(7) considera esta situação por analogia, como a morte física do Papa: em ambos os casos, há apenas uma vacância temporária na Sé Apostólica. Retomando a formulação incisiva de Caetano, diríamos mesmo que esta tese sedevacantista ressuscita o velho erro dos Hussitas, “negando que aqui em baixo seja necessário um chefe para a Igreja”. O juízo formulado anteriormente por D. Lefebvre mantém, portanto, toda a sua consistência: “a questão da visibilidade da Igreja é demasiado necessária à sua existência para que Deus a possa omitir durante décadas; o raciocínio daqueles que afirmam a inexistência do Papa coloca a Igreja numa situação inextricável”. Admitir, em princípio, a possibilidade de uma vacância temporária e de duração relativamente breve da autoridade (inevitável em qualquer sociedade humana) não equivale a admitir, em princípio, a possibilidade de uma vacância perpétua ou, pelo menos, relativamente longa ou interminável do ponto de vista humano.

11. Esta última situação seria dificilmente conciliável com a visibilidade da Igreja, mesmo admitindo a possibilidade de um termo, mesmo indeterminado, para a vacância da Sé Apostólica, pois essa indeterminação a longo prazo produziria os mesmos inconvenientes que a perpetuidade. Durante o século XIII, houve muitas e longas vacâncias na Santa Sé, pois o número de cardeais era demasiado pequeno para obter rapidamente os dois terços dos votos necessários para eleger um sucessor do Papa morto. A eleição de Urbano IV (1261-1264) demorou mais de três meses, e a de Clemente IV (1265-1268) mais de quatro meses. A vacância mais longa da história ocorreu pela da morte de Clemente IV, pois passaram-se 34 meses, ou seja, quase três anos, até à eleição do seu sucessor, o Beato Gregório X, em 1271. Foi neste contexto que, em 1270, São Boaventura aconselhou os habitantes de Viterbo, onde os cardeais se reuniam há dezoito meses, a enclausurar os eleitores para evitar qualquer influência de fora e abreviar a eleição. Este procedimento já tinha sido utilizado duas vezes: para a eleição após a morte de Inocêncio III, em 16 de julho de 1216, em Perugia, e na morte de Gregório IX, em 22 de agosto de 1241, em Roma. Mas estes 34 meses não têm nada a ver com os cerca de 60 anos que nos separam da morte de Pio XII ou do encerramento do Concílio Vaticano II. Sem contar no fato que a vaga assumida pelos partidários da tese sedevacantista continua em aberto.

12. Por instituição divina, a Igreja de Cristo deve permanecer habitualmente provida de sua cabeça visível. Essa é uma verdade indubitável. Segue-se que, para um católico, não se pode reconhecer como verdadeira Igreja de Cristo uma sociedade que é habitualmente privada da sua cabeça visível.

Continua…..

Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX

Notas: 

(1) Mons. Lefebvre, “Carta de 20 de dezembro de 1966 dirigida ao Cardeal Ottaviani” em Acuso o Concílio, Ed. Saint-Gabriel, Martigny, 1976, pág. 107-111.

(2) DS 3055.

(3) “Constitutio organica Ecclesiae non est immutabilis; sed societas christina perpetuae evolutioni aeque ac societas humana est obnoxia” (DS 3453). Esta é a 53ª proposição condenada do modernismo.

(4) Mons. Lefebvre, Conferência em Écone, 5 de outubro de 1978.

(5) Thomas de Vio Cajetan, op (1469-1534), Comparação do poder do Papa com o do Concílio, capítulo 6, nº 74 da edição Pollet. Tradução francesa, Le Pape et le Concile, Courrier de Rome, 2014, p. 103-104: “Se alguém objetar que, no intervalo entre a morte do Papa e a eleição do seu sucessor, a Igreja universal ainda existe e ainda assim é privada de sua cabeça que é o Papa, responde-se que a Igreja universal existe então apenas em um estado imperfeito de tal modo que este estado imperfeito é uma condição da Igreja que a diminui na sua razão de ser a Igreja universal, da mesma forma que um corpo amputado de sua cabeça é diminuído na sua razão de integridade. De fato, a razão da universalidade inclui em si o conjunto de todos os membros que exercem uma função no corpo, entre os quais o mais importante é a cabeça. Segue-se então que a Igreja está acéfala, privada da sua parte principal e do poder que exerce. E negar isso é cair no erro de João Huss, negando que aqui embaixo uma cebaça é necessária para a Igreja e condenada tanto por Santo Tomás como por Martinho V durante o Concílio de Constança, como já dissemos. E pensar que, considerada nessa situação de privação de sua cabeça, a Igreja universal recebe imediatamente o seu poder de Cristo e que é representada pelo Concílio universal, é cometer um erro inadmissível.”

(6) Cf. o que diz o Cardeal Jean de Torquemada, op (1388-1468) na sua Suma sobre a Igreja, livro II, capítulo 8.

(7) Thomas de Vio Cajetan, op (1469-1534), Comparação do poder do Papa com o do Concílio, capítulo 17, nº 243 da edição Pollet. Tradução francesa, O Papa e o Concílio, Courrier de Rome, 2014, p. 194.