Fonte: Courrier de Rome – Tradução: Dominus Est
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Segundo aspecto do dilema
13. O fato é que, tal como os seus quatro predecessores, o atual ocupante da Sé Apostólica abre amplamente a porta à heresia. Há provas abundantes disso, e nos últimos sete anos assistimos a um aumento sem precedentes. No entanto, aos olhos de todos os teólogos, uma tal situação dificilmente seria compatível com o próprio título do papado. A famosa questão do Papa herético fez história: no rescaldo do Grande Cisma e ainda mais no rescaldo do que poderíamos ser tentados a chamar de o caso Savonarola, Caetano foi o primeiro, e depois dele os teólogos foram levados a refletir sobre a natureza da Igreja, e todos previram a possibilidade de um Papa que viria a professar erros contrários à fé.
14. Certamente seu pensamento estava em grande parte condicionado pelo contexto, razão pela qual se fez é história, é porque é da história. Isto porque o problema está demasiado ligado a circunstâncias específicas para que a solução que lhe é dada seja facilmente transponível para a situação pós-Vaticano II. Por um lado, os teólogos daquelas épocas consideravam a heresia, com efeito, professada na devida forma, ao passo que os erros atuais são muito mais sutis e sem precedentes para atrair, obviamente, os anátemas já fulminados na época contra as heresias antigas. Por outro lado, esses mesmos teólogos vêem a heresia limitada à pessoa do Papa, de modo que, se o Papa que caiu em heresia perder o pontificado, é possível e relativamente fácil dar-lhe um sucessor sem dificuldade, enquanto o resto do Corpo da Igreja permanece saudável e ileso da heresia. Hoje, o fato inédito daquilo a que se costuma chamar a “Igreja conciliar”, ou seja, a situação de uma hierarquia eclesiástica majoritariamente infiltrada pelo cancro do neo-modernismo, torna muito mais problemática a possibilidade de uma desqualificação seguida de uma nova eleição a favor de um candidato isento de heresias. Podemos ver o que aconteceu nos últimos anos, uma vez que tanto as Dubiaapresentadas ao Papa Francisco por quatro cardeais em 2016 como a Correctio filialis dirigida ao mesmo Papa em 2017 por 62 figuras importantes do mundo católico não surtiram resultado.
15. No entanto, mesmo que as reflexões dos antigos teólogos não possam dar uma solução absolutamente exata da situação atual, é difícil conceber que o chefe da Igreja de Cristo atue de forma habitual e quase ordinária para favorecer, tanto em teoria como na prática, erros graves que já foram condenados por todos os seus predecessores. Pode ter acontecido no passado que um ou dois Papas (os dois casos — de Libério e Honório — são bem conhecidos) tenham falhado na sua profissão da verdadeira fé. Mas essa falha pode ter sido apenas em relação a atos isolados e pouco numerosos, claramente distintos do resto dos ensinamentos habituais desses Papas. No entanto, desde o Concílio Vaticano II, estamos perante uma pregação corrente e quotidiana que apoia os falsos princípios do liberalismo. Como é que, nestas condições, podemos continuar a considerar os sucessores de Pio XII como verdadeiros sucessores de São Pedro, dotados do poder supremo de um Magistério que, aos olhos do teólogo católico, deve ser definido como “a regra próxima e universal da verdade em matéria de fé e de moral”(8)? Cristo não prometeu a São Pedro que ele seria a base e o fundamento sobre o qual se edificaria a unidade de fé da Igreja e que as portas do inferno não prevaleceriam contra Ela(9)?
16. Por instituição divina, a Igreja de Cristo deve permanecer habitualmente provida, como sua cabeça, do Pastor e Doutor de todos os cristãos. Eis uma verdade indubitável. Daí resulta que, para um católico, não se pode reconhecer como verdadeira Igreja de Cristo uma sociedade cujo chefe visível não é o Pastor e Doutor de todos os cristãos, pelo próprio fato de que ele costuma abrir caminho à heresia.
O duplo aspecto do dilema
17. Se o Papa cai em heresia, ou pelo menos abre habitualmente a porta à heresia, acontece uma de duas coisas. Ou ele deixa de ser Papa e o católico reconhece como Igreja de Cristo uma Igreja desprovida de uma cabeça visível. Ou continua a ser Papa e o católico reconhece como Igreja de Cristo uma Igreja cuja cabeça visível compromete grave e habitualmente a fé católica. Do ponto de vista da doutrina, ou seja, do ponto de vista da conformidade com os dons da Revelação, nenhuma dessas duas conclusões é aceitável. Em teoria pura e de acordo com os dados elementares do seu catecismo, o católico não pode reconhecer como verdadeira Igreja de Cristo: nem uma Igreja habitualmente desprovida de uma cabeça visível, nem uma Igreja habitualmente provida de uma cabeça visível que abre caminho à heresia.
A solução de D. Lefebvre
18. É atualmente impossível sair do dilema se nos limitarmos a um nível teórico e tentarmos responder a uma questão de carácter exclusivamente dogmático. Não é possível saber qual é a situação, na mais pura verdade, por falta de uma resposta definitiva, emanada do Magistério. Resta saber o que é preciso fazer, porque, apesar de tudo, é preciso agir. A pergunta a qual D. Lefebvre queria responder era precisamente esta: dadas as circunstâncias, é prudente, para salvaguardar o bem comum da fé na Igreja, ir ao ponto de afirmar a perda do pontificado declarando a heresia dos Papas conciliares cujo ensinamento é manifestamente, se não favens haeresim, pelo menos gravemente erróneo no sentido teológico? A resposta é não: é necessário e suficiente resistir rejeitando esse ensinamento com todas as consequências que ele implica e rezando para que a Divina Providência ilumine as mentes das autoridades e as faça voltar à Tradição. Mas proclamar a queda jurídica dessas autoridades seria imprudente pois seria precipitado: seria errado, não de um ponto de vista teórico, mas de um ponto de vista prático ou, estrategicamente falando, em relação às circunstâncias.
19. A passagem em que D. Lefebvre explicita melhor essa atitude é a conferência de 5 de outubro de 1978. Nela, ele afirma que a sua posição é ditada pela prudência e não pela pura doutrina teológica. “Isso não quer dizer, no entanto”, diz ele depois de ter tomado posição, “que eu esteja absolutamente certo de ter razão na posição que tomo. Tomo-a sobretudo de um modo que eu diria prudencial, uma prudência que espero que seja a sabedoria de Deus, que espero que seja o Dom do Conselho, em suma, uma prudência sobrenatural. É antes neste domínio que me situo, diria eu, mais talvez do que no domínio puramente teológico e puramente teórico”. Um outro texto resume bem essa atitude: trata-se de um extrato da resposta escrita de D. Lefebvre ao Pe. Guérard des Lauriers: “Se tens evidências da caducidade do estado jurídico do Papa Paulo VI, compreendo a sua lógica subsequente. Mas, pessoalmente, tenho sérias dúvidas e não uma evidência absoluta. Na atitude prática, não é a inexistência do Papa que está na base da minha conduta, mas a defesa da minha fé católica. Ora, o senhor acredita conscientemente ter o dever de partir deste princípio que infelizmente provoca confusão e divisões violentas, e isto eu quero evitar”. E eis o que D. Lefebvre voltou a dizer em uma conferência aos seus seminaristas, em 16 de janeiro de 1979: “Enquanto eu não tiver a prova de que o Papa não é o Papa, bem, eu tenho a presunção por ele, pelo Papa. Não estou dizendo que não possa haver argumentos que levantem dúvidas em certos casos. Mas deve-se ficar claro que não se trata apenas de uma dúvida, de uma dúvida válida. Se o argumento é duvidoso, não temos o direito de tirar grandes conclusões”.
20. Estas três partes do texto ilustram claramente o ponto de vista preciso e formal, bem como a luz sob a qual D. Lefebvre se valeu para resolver esse problema: é a luz da prudência sobrenatural. Esta prudência exige uma atitude prática, que nesse caso não tem absolutamente nada a ver com uma atitude dogmática. Tanto os eclesiadeístas como os sedevacantistas pecam por adotar uma atitude dogmática para resolver um problema que não é dogmático: os primeiros afirmam como dogma intocável que os Papas conciliares foram e serão sempre verdadeiros Papas, como se nada tivesse acontecido (a ponto de proibir o Magistério futuro de constatar sua caducidade jurídica); os segundos afirmam o inverso, mas ainda como dogma inatacável, que os Papas conciliares nunca foram e nunca serão verdadeiros Papas (a ponto de proibir o futuro Magistério de constatar a sua legitimidade). Em ambos os casos, há precipitação e presunção. O erro não está principalmente na conclusão a qual se chega, mas na forma como se chega, que é a forma do dogmatismo. D. Lefebvre quis agir com prudência, adotando uma atitude verdadeira em relação às circunstâncias, mas sem antecipar o futuro julgamento da Igreja, que poderia ter lugar noutras circunstâncias. Daí o tom provável e reservado da sua resposta.
21. Uma outra expressão utilizada com muita frequência por Dom Lefebvre é: “Somos infelizmente obrigados a constatar...” Trata-se de uma expressão muito importante, porque sublinha perfeitamente o ponto de vista a partir do qual devemos julgar, o objeto formal da nossa conduta. São as circunstâncias, os fatos concretos que se impõem à experiência. Para concluir, podemos citar outra afirmação da conferência de 2 de dezembro de 1976: “Penso que é melhor seguir a Providência do que precedê-la, isto é, esperar os acontecimentos, julgá-los à luz da Fé, da Tradição e da doutrina da Igreja. Por conseguinte, não quero fazer um julgamento precipitado, o que não seria prudente”.
22. O que dizer então a um sedevacantista? Não que ele esteja certo ou errado aos olhos da doutrina da fé ou da teologia. Mas que, por enquanto, enquanto a questão teórica permanecer insolúvel, a atitude prática que corresponde à sua posição teórica é imprudente.
Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX
Notas:
(8) Pio XII, Encíclica Humani Generis de 12 de agosto de 1950 in AAS, vol. XLII, pág. 567.
(9) Mt. 16, 18.