Fonte: Courrier de Rome – Tradução: Dominus Est
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1. A tese sedevacantista fez e ainda faz correr muita tinta. A título de exemplo, eis o juízo expresso dado por um dos nossos colegas (1), a cujos olhos esta tese nem sequer parece demonstrável, ou seja, seria falsa no plano estritamente teórico.
2. “Embora o modernismo liberal seja, em sua essência, a pior das heresias, a vontade perseverante dos homens modernistas, ao longo dos últimos séculos, de conciliar o pensamento moderno com a fé tradicional, acabou por gerar uma tal confusão que, atualmente, nos seminários e colégios católicos, os teólogos mais heréticos e os mais ortodoxos se misturam, passando por todos os graus intermediários. Se se quiser penetrar na doutrina profunda do Novus Ordo Missæ, encontra-se aí um pensamento inteiramente heterodoxo que, no entanto, oferece a muitos teólogos a possibilidade de explicá-lo sob uma luz completamente católica. O Papa pratica um ecumenismo que não parece distinguir-se em nada do sincretismo maçônico. No entanto, aparentemente, condena o sincretismo aqui e ali, e parece dar garantias suficientes para que mais de um teólogo concilie as suas intenções com as de Pio XI em Mortalium animos. O católico comum, que permanece de boa vontade e que evitou qualquer contato com essa atmosfera de confusão que envolve quase toda a Igreja, tem sérias dificuldades em acreditar (como a experiência mostra) que pessoas animadas por intenções aparentemente retas possam conciliar, a tal ponto, a luz e as trevas. Mas os sofismas que realizam este milagre atingiram um grau supremo de perfeição. O resultado de tudo isto é que, entre os papas conciliares, a má-fé do herege ou a má vontade do cismático não aparecem notoriamente. E não nos peçam para o provar, porque (perdoem-nos este paradoxo) a não notoriedade é algo notório, e o que é obvio não se demonstra, a saber, que a grande maioria dos católicos de hoje, psicologicamente equilibrados e doutrinariamente bem formados, que notam a malícia intrínseca do magistério conciliar, não consideram que os papas tenham deixado de sê-lo”.
3. O argumento dado aqui pelo Pe. Calderón, FSSPX, é apresentado como uma reductio ad absurdum, a redução ao absurdo. Ele pode ser formulado da seguinte forma:
– O fato de os papas modernistas terem perdido o pontificado supremo é o que é notório, de fato, ou público [esta é a tese a ser refutada].
– Mas o que quase todos os católicos de bom senso não conseguem ver é esse fato de os papas modernistas terem perdido o pontificado supremo [isso é obvio para todos].
– Logo, o que quase todos os católicos de bom senso não veem é o que é factual ou publicamente conhecido [esta é uma consequência absurda que invalida a primeira premissa, logo a tese].
4. Como tal, o argumento de redução ao absurdo é usado para defender uma verdade indemonstrável, porque é primária. Mas aqui ele é usado de maneira dialética, ou seja, para defender uma verdade primária, que não é necessária, mas apenas provável. Com efeito, a tese aqui defendida é precisamente a contraditória da premissa maior: “o fato de os papas modernistas terem perdido o pontificado supremo não é algo notório”. No entanto, essa afirmação é apenas o resultado provisório de uma observação que permanece dependente da evolução dos fatos. Note-se também que a premissa maior não afirma com precisão a tese do sedevacantismo e que, consequentemente, o seu caráter contraditório (a tese defendida pelo raciocínio) não nega formalmente essa tese. A tese sedevacantista é que o atual ocupante da Sé de Roma não é realmente Papa; enquanto que a contradição do raciocínio é que não é obvio para a maioria das pessoas que o ocupante da Sé de Roma não seja Papa. E isso não equivale a provar que “os papas modernistas não perderam o pontificado supremo”. O fato dessa perda do pontificado não ser considerada comprovada pela grande maioria das pessoas sensatas constitui apenas um sinal. O argumento equivale a dizer que o senso comum concorda em dar aos Papas modernistas o benefício da dúvida. Mas pode acontecer que o senso comum seja superado em uma situação excepcional. Esse argumento não deixa de ter sua relevância, mas não devemos ocultar suas limitações.
5. Da nossa parte, gostaríamos de apresentar dois pontos. Primeiro ponto: a verdadeira redução ao absurdo seria aquela que toma a necessidade moral absoluta como predicado na conclusão, e como sujeito a observação feita por uma autoridade. O raciocínio seria o seguinte:
– O fato de os papas modernistas terem perdido o pontificado é o que é imposto ao julgamento de cada católico sob pena de falta grave [esse é um dos aspectos da tese sedevacantista defendida por aqueles que romperam com a Fraternidade].
– Ora, o que nenhuma autoridade canônica da Igreja jamais estabeleceu legalmente é o fato de os papas modernistas terem perdido o pontificado [isto é obvio a todos].
– Logo, o que nenhuma autoridade canônica da Igreja estabeleceu juridicamente é o que é vinculativo para o julgamento de cada católico sob pena de falta grave [esta é a consequência absurda que invalida a principal].
6. O benefício dessa redução é que ela não tem por objeto negar a possibilidade da perda do pontificado. Ela coloca-se no terreno real da disputa, e mostra apenas que, mesmo que a explicação que implicaria essa perda do papado seja concebível em teoria (como opinião teológica contestada), ela não pode ainda ser moralmente imposta na prática. Enquanto a autoridade não se pronunciar, só poderemos dispor de simples indicações prudenciais, que valerão tanto quanto valem os argumentos que elas utilizam e as razões de credibilidade que elas podem reivindicar.
7. Um outro benefício — de carácter mais histórico — seria distinguir entre sedevacantismo e sedevacantismo. A atitude dos antigos párocos de outrora (e houve alguns) que se mantiveram inabaláveis no seu apoio a D. Lefebvre e à Fraternidade até ao fim não tinha nada de sectário, porque não se apresentava como objeto de uma obrigação dogmática e moral. A atitude dos jovens padres que romperam com Ecône e que agora denunciam a alegada má conduta da Fraternidade assume um aspecto sectário, pois procuram impor-se sob pena de grave infidelidade, chegando ao ponto de se recusarem a assistir a uma Missa celebrada por um padre designado como “una cum”, ou seja, aquele que faz menção ao Papa no cânon da Missa. Esse ostracismo prático representa uma das principais dificuldades, central e profunda, da posição sedevacantista, que, deste ponto de vista, pode ser corretamente definida como sectarismo.
Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX
Nota:
(1) Esta é a opinião expressa pelo Pe. Calderón em Le Sel de la terre, n° 47 (inverno 2003-2004), p. 73-74.