O Questionamento
Temos visto que o espírito católico-liberal não tem suficiente confiança na verdade. O espírito conciliar, por sua vez, perde a esperança de conseguir chegar à verdade; sem dúvida a verdade existe, mas ela passa a ser objeto de uma procura sem fim.
Veremos que isto significa que a sociedade não se pode organizar sobre a verdade, verdade que é Jesus Cristo. Em tudo isto, a palavra chave é “questionamento”, ou orientação, tendência para a verdade, procura da verdade, caminho para a verdade. Na linguagem conciliar e pós-conciliar encontra-se com abundância os termos “movimento” e “dinâmica”.
Com efeito, o Concílio Vaticano II canonizou a procura em sua Declaração sobre a liberdade religiosa: “A verdade deve ser procurada conforme o modelo próprio da pessoa humana e de sua natureza social, ou seja, por meio da livre procura…”. O Concílio põe a procura em primeiro lugar, antes do ensino e da educação. Entretanto a realidade é outra: as convicções religiosas são impostas pela educação das crianças, e uma vez que estão fixadas nos espíritos e manifestadas nos cultos religiosos, para que procurá-las?
Por outro lado, muito raramente a “livre procura” conseguiu alcançar a verdade religiosa e filosófica. O grande Aristóteles não está isento de erros. A filosofia do livre exame acaba em Hegel… E também, que dizer das verdades sobrenaturais? Eis o que diz São Paulo falando aos pagãos: “Como poderão crer, se não lhes fazem prédicas? Como se poderá pregar, se não lhes enviam missões?” (Rm 10, 15). Não é o questionamento que a Igreja deve pregar, mas a necessidade das missões: “Ide e ensinai todas as nações” (Mt 28, 19), tal é a ordem dada por Nosso Senhor. Sem a ajuda do Magistério da Igreja, quantas almas poderão encontrar a verdade, permanecer na verdade? A livre procura é um irrealismo total, no fundo um naturalismo radical. Na prática, qual a diferença entre quem se questiona e um livre pensador?
Os Valores das outras Religiões
O Concílio se ocupou em exaltar os valores salvíficos ou simplesmente os valores das outras religiões. Falando das religiões cristãs não católicas, o Vaticano II ensina que “mesmo que as consideremos vítimas de deficiências, elas não estão de modo algum desprovidas de significação e de valor no mistério da salvação”173. Isto é uma heresia! O único meio de salvação é a Igreja Católica. As comunidades protestantes, enquanto estão separadas da unidade da verdadeira Fé, não podem ser utilizadas pelo Espírito Santo. Ele só pode agir diretamente sobre as almas, ou usar meios (por exemplo o batismo), que em si não leva nenhum sinal de separação.
Alguém pode se salvar “no” protestantismo, mas não “graças” ao protestantismo. No céu não há protestantes, há somente católicos! Eis o que declara o Concílio a respeito das religiões não cristãs:
“A Igreja Católica não rechaça nada do que há de verdadeiro e santo nestas religiões. Ela considera com respeito estas maneiras de agir e de viver, estas regras e doutrinas, que embora em muitos pontos difira do que ela sustenta e propõe, têm entretanto um raio da verdade que ilumina a todos os homens”174.
Mas como? Eu deveria então respeitar a poligamia e a imoralidade do Islã, ou a idolatria dos hindus? Certamente estas religiões podem ter conservado elementos saudáveis, restos de uma religião natural, ocasiões naturais para a salvação; ou seja guardar vestígios de uma revelação primitiva (Deus, a queda, uma salvação), valores sobrenaturais ocultos que a graça de Deus poderia utilizar para acender em alguns a chama de uma Fé nascente. Mas nenhum destes valores pertence ou é propriedade das falsas religiões. O próprio delas é errar longe da verdade, a carência da Fé, a ausência da Graça, a superstição, até a idolatria. Em si mesmos, estes falsos cultos não passam de vaidade e aflição do espírito, inclusive culto rendido aos demônios. Os elementos salutares que podem subsistir ainda, pertencem por direito à única verdadeira Religião, a da Igreja Católica e somente Ela pode se valer deles.
Sincretismo Religioso
Repito, falar dos valores de “salvação” das outras religiões, é uma heresia. E “respeitar seus modos de agir e suas doutrinas”, é uma afirmação que escandaliza aos verdadeiros cristãos. Digam a nossos católicos africanos para respeitar os ritos animistas! Se um cristão fosse surpreendido participando de semelhantes ritos, era suspeito de apostasia e excluído da missão por um ano. Quando se pensa que João Paulo II fez um gesto animista em Togo!175. Igualmente em Madras no dia 5 de fevereiro de 1986, levaram à sua presença uma cana de açúcar trançada em forma de báculo, que significa a oferenda hindu ao deus carnal, depois durante a procissão do ofertório levaram cocos ao altar, oferenda típica da religião hindu a seus ídolos e por último uma mulher colocou as cinzas sagradas em João Paulo II, passando a mão em sua testa176. O escândalo dos verdadeiros católicos indianos chegou ao máximo. A eles, expostos diariamente, em qualquer esquina, aos templos idolátricos e às crendices mitológicas dos budistas e dos hindus, não é possível falar-lhes de “reconhecer, preservar e fazer progredir os valores espirituais, morais e sócio-culturais, que se encontram nestas religiões”177.
Se nos primeiro séculos a Igreja pode batizar os templos pagãos ou santificar os dias das festividades pagãs, foi porque a prudência evitava perturbar os costumes respeitáveis e que sua sabedoria discernia os elementos da piedade natural que não devia suprimir, da miscelânea idolátrica de que havia purificado os novos convertidos. Ao longo de toda a história das missões, não faltou à Igreja este espírito de misericórdia inteligente. A nota de catolicidade da Igreja, não é precisamente sua capacidade de reunir em uma unidade sublime de Fé os povos de todos os tempos, de todas as raças e de todos os lugares, sem suprimir suas legítimas diversidades? Pode-se dizer que o discernimento a respeito de todas as religiões já existe há muito tempo e nada há a inventar. Vaticano II nos pede um novo respeito, um novo discernimento, uma nova assimilação e uma nova construção, e em que termos! E com que aplicações concretas! Chama-se a isto “inculturação”. Não, não está aí a sabedoria da Igreja.
O espírito da Igreja fez inscrever em sua liturgia palavras oportunas destinadas a nosso tempo, pouco antes do Concílio, sob o reinado de Pio XII. Leiam a oração do ofertório da Missa do Soberanos Pontífices, tirada do chamado divino ao Profeta Jeremias (Jr 1, 10):
“Eis que ponho minhas palavras em tua boca, que te estabeleci sobre as nações e os reinos, para que arranques e destruas, edifiques e plantes”.
Por minha parte, na África, nunca procurei transformar o templo de um sacerdote animista em capela. Quando um bruxo morria (freqüentemente envenenado), queimávamos imediatamente seu templo, diante da alegria das crianças. Aos olhos de toda a tradição, a orientação dada por João Paulo II na “Redemptor Hominis”: “Nunca a destruição, mas retomar para si os valores e nova construção” (pág. 76), não passa de uma utopia de teólogo de laboratório. De fato, de modo claro ou não, é um incitamento ao sincretismo religioso.
O Diálogo
O diálogo não é uma descoberta conciliar, Paulo VI em “Ecclesiam Suam”178 é o seu autor: diálogo com o mundo, com as outras religiões; mas é preciso reconhecer que o Concílio aumentou imensamente sua tendência liberal. Exemplo:
“A verdade deve ser procurada (…) por meio (…) de um intercâmbio e de um diálogo para que uns exponham aos outros a verdade que encontraram ou pensam haver encontrado, para se ajudarem mutuamente na procura da verdade (DH. 3)”.
Assim, tanto o crente como o não crente deveriam estar sempre em procura. São Paulo, entretanto, denunciou os falsos doutores “ que estão sempre aprendendo sem nunca chegar à verdade” (2 Tm 3, 7). Por seu lado, o não crente pensaria em fornecer ao crente elementos da verdade que lhe faltaram!
O Santo Ofício, em sua Instrução de 20 de dezembro de 1949, sobre o ecumenismo, afastava este erro e falando da volta dos cristãos separados para a Igreja católica, escrevia: “Deve-se evitar falar sobre isso de um modo tal que ao voltar à Igreja, eles imaginem que tragam para ela algo de essencial que lhe teria faltado até então”179.
O contato com não católicos só pode nos trazer experiências humanas, mas nunca elementos doutrinais!
Além disso o Concílio modificou consideravelmente a atitude da Igreja diante das outras religiões, em particular das não-cristãs. Na entrevista que eu tive em 13 de setembro de 1975 com o secretário de Mons. Nestor Adam, então bispo de Sion na Suíça, o secretário estava de acordo comigo: “Sim, algo mudou na orientação missionária da Igreja”. Mas ele acrescentava: “…e tinha mesmo que mudar”. “Por exemplo, dizia ele ainda, agora nós procuramos naqueles que não são cristãos ou nos que se separaram da Igreja, o que já neles de bom, de positivo; procuramos ver nos seus valores os germes de sua salvação”.
É claro que todo erro tem lados verdadeiros, positivos; não há erro em estado puro, assim como o mal absoluto não existe. O mal é a corrupção de um bem; o erro é a corrupção da verdade, mesmo sendo evidente que a pessoa má ou errada conserva sua natureza, suas qualidades naturais, algumas verdades. Mas há grande perigo em tomar este resto de verdade não atingido pelo erro como base. O que deveríamos pensar de um médico que, chamado para assistir um doente grave chegasse dizendo: – “Ainda há muita saúde neste doente, isso é que conta”. Você poderia objetar: – “Mas é melhor examinar a doença antes que ele morra!” E o médico a insistir: -“Ah! Mas ele não está tão doente. Além disso meu método de trabalho é de não prestar atenção à doença de meus pacientes: isso é negativo. Eu me volto para a saúde que lhe resta”. Então, diria eu, deixemos que morram os doentes! O resultado é que à força de se dizer aos não-católicos ou aos não-cristãos: “afinal vocês têm uma consciência reta, vocês têm meios de salvação” eles acabam acreditando que não estão doentes. E depois, como os converter?
Nunca tal espírito foi o da Igreja. Pelo contrário, o espírito missionário foi sempre o de mostrar abertamente aos enfermos suas chagas, para curá-los e dar-lhes os remédios de que necessitavam. É uma crueldade encontrar-se com não cristãos e não lhes dizer que têm necessidade da Religião cristã, e que somente se podem salvar por Nosso Senhor Jesus Cristo. Sem dúvida no começo de uma conversão se faz uma “captatio benevolentiae”, elogiando o que há de honesto em sua religião, ou seja, o que é legítimo; mas fazer disso um princípio doutrinal é um erro, é enganar as almas! “Valores salvíficos das outras religiões”: isto é uma heresia! Fazer deles a base do apostolado missionário é querer manter as almas no erro. Este “diálogo” é anti-missionário ao extremo. Nosso Senhor não enviou seus apóstolos para dialogar, mas para pregar. Por ser este espírito de diálogo liberal o recomendado aos sacerdotes e missionários desde o concílio, entende-se porque a Igreja Conciliar perdeu completamente o zelo missionário, o verdadeiro espírito da Igreja.
Já falamos bastante sobre o questionamento, a livre procura e o diálogo; cheguemos agora aos resultados dessas descobertas conciliares, ou seja, a liberdade religiosa. Trataremos dela nos seus aspectos histórico, individual e finalmente social.
Do Liberalismo à Apostasia – Mons. Marcel Lefebvre
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173 Dec. Sobre o Ecumenismo, “Unitatis Redintegratio”, nº 3.
174 Decl. Sobre religiões não cristãs, “Nostra Aetate” nº 2
175 Osservatore Romano, 11 de agosto de 1985, pág. 5.
176 Não se trata do “Tilac” que João Paulo II recebeu em 2 de fevereiro em Nova Delhi, cf. “Fideliter”, nº 51, pág. 3, mas das conzas sagradas “Vibhuti”, cf. “Indian
Express”, 6 de fevereiro de 1986.
177 Vaticano II, “Nostra Aetate”, nº 2.
178 De 6 de agosto de 1964
179 Instrução “De Motione Oecumenica”.