“O que aconteceu por volta de 1600 anos atrás repete-se nos dias de hoje, mas com duas ou três diferenças: Alexandria agora é toda a Igreja Católica — cuja estabilidade está abalada —, e o que foi empreendido naquela época por meio da força física e da crueldade é empreendido agora em níveis diferentes. O exílio foi substituído pelo ostracismo; o assassinato físico pelo assassinato de reputação.”
Mons. Rudolf Graber, Bispo de Regensburg, Athanasius and the Church of our Times, p. 23.
O objetivo deste apêndice não é explicar a natureza da heresia ariana, mas sim provar que um bispo fiel à Tradição pode ser repudiado, caluniado, perseguido e até mesmo excomungado por quase todo episcopado, inclusive pelo próprio Papa. Evidentemente trata-se de uma situação anormal, pois o fiel católico tem o direito de supor que a maioria dos bispos em união com o Papa ensinarão a sã doutrina; o católico seria imprudente se não conformasse sua crença e comportamento com o ensinamento desses bispos. Mas nem sempre o caso é esse, conforme demonstra a atual situação da Igreja. Não há praticamente uma única diocese no mundo anglófono cujo bispo esteja preocupado em assegurar que as crianças católicas recebam a sã doutrina; ou que a moral católica e os ensinamentos doutrinais não se contradigam com a impunidade do púlpito (trata-se da leniência com os abusos litúrgicos que chegam até ao nível do sacrilégio). Escrevendo sobre a época de Santo Atanásio, São Jerônimo fez sua célebre exclamação: “Ingemit totus orbis et arianum se esse miratus est” — “Com dor e assombro o mundo todo se viu ariano”. O mundo católico ocidental de hoje encontra-se num estado acelerado de desintegração; mas para a maioria não há dor, tampouco assombro. Com efeito, a maior parte dos bispos repete ad nauseam que as coisas jamais estiveram tão boas e que estamos vivendo no período de maior florescimento da história da Igreja. Um bispo como o falecido Mons. R. J. Dwyer (de Portland, Oregon, EUA), que teve a coragem de falar abertamente e descrever objetivamente o estado de coisas na Igreja, é taxado de excêntrico, fanático e desordeiro. A ICEL (International Commission for English in the Liturgy — Comissão Internacional para o Inglês na Liturgia) recebeu efusivos louvores dos bispos dos EUA por conta da tradução da missa que foi imposta aos fiéis católicos anglófonos. O arcebispo Dwyer falou sobre:
[…] a tradução inglesa — inepta, pueril e semi-analfabeta — que nos foi imposta pela ICEL, um grupo de homens dotados das piores características presentes nos burocratas autofágicos, prestou um imensurável desserviço a todo o mundo anglófono. O trabalho foi marcado pela ausência quase completa de sentido literário, pela insensibilidade crassa à linguagem poética e pior: o uso predominantemente inculto da liberdade de tradução dos textos, de modo que o texto chega ao ponto da deturpação de fato. [1] (grifos nossos)
Essas são palavras fortes. O arcebispo Dwyer manteve-se praticamente sozinho quando denunciou a ICEL; mas estar sozinho fez com que ele estivesse errado? É a verdade que importa. As críticas dele estão certas ou não? Se elas estão, então não importa se todos os outros bispos anglófonos denunciaram o arcebispo. Conforme será mostrado no Apêndice II, o bispo inglês do século XIII, Robert Grosseteste, estava tão solitário quanto o arcebispo Dwyer ao protestar contra a iníqua prática do Papa Inocêncio IV, que nomeou um parente para um benefício eclesiástico advindo de um lugar que esse parente sequer visitara; e esse benefício teve como fim apenas o sustento material desse parente. Os outros bispos toleraram a prática, assim como os bispos de hoje toleram catequeses heterodoxas e a ICEL; mas isso não torna o bispo Grosseteste errado.
A heresia ariana
Em seu celebrado Ensaio sobre o Desenvolvimento da Doutrina Cristã o Cardeal Newman escreveu:
O arianismo admitiu que Nosso Senhor era tanto o Deus da Aliança quanto o verdadeiro Criador do Universo; mas mesmo isso não bastava, pois o arianismo não professava que Ele era o Ser Uno, Eterno, Infinito e Supremo; eles professavam um Cristo criado pelo Supremo. Não bastava, como fazia aquela heresia, proclamá-Lo como originário antes de todos os mundos; não bastava colocá-Lo sobre todas as criaturas como o modelo perfeito dentre todas as obras feitas pela mão de Deus; não bastava fazer Dele Rei de todos santos, Intercessor do homem perante Deus, Objeto de adoração e imagem do Pai; não bastava porque não era tudo — e entre tudo e algo que está próximo de tudo há um intervalo infinito. A mais elevada das criaturas está no mesmo patamar da mais baixa, se comparada ao próprio Criador. [2]
O Concílio de Nicéia (325) definiu que o Filho é consubstancial (homoousion) ao Pai. Isso significa que, enquanto distinto como pessoa, o Filho partilha da mesma natureza eterna e divina do Pai. Se o Pai é eterno por natureza, então o Filho também tem de ser eterno. Se o Pai é eterno e o Filho não, então obviamente o Filho não é igual ao Pai. Assim, o termo homoousion tornou-se critério da ortodoxia. Em sua história das heresias, M. L. Cozens escreve:
Nenhuma outra palavra foi encontrada para expressar a união essencial entre o Pai e o Filho, pois todas as outras palavras eram aceitas pelos arianos, mas de maneira equívoca. Eles negavam que o Filho era uma criatura como outra — ou que estivesse no mesmo patamar delas — ou criado no tempo, pois eles consideravam que Cristo era uma criação especial pré-temporal. Eles diziam que Ele era o “Único-gerado” (monogenēs), o que significava dizer “O único [Filho] diretamente criado” por Deus[3]. Eles podiam chamá-Lo de “Senhor Criador”, “Primogênito de toda a criação”; eles aceitavam até “Deus de Deus”, se fosse com o significado de “feito Deus por Deus”. Somente a palavra homoousion não podia ser dita, pois isso significaria renunciar a heresia[4].
O Concílio de Nicéia foi convocado pelo imperador Constantino, que insistiu na aceitação das definições lá promulgadas. Ário foi excomungado. Mas uma quantidade considerável de bispos assinou o Credo apenas por submissão ao imperador, inclusive Eusébio de Cesaréia e Eusébio de Nicomédia. Eles eram, de acordo com Cozens:
Homens de caráter mundano, eles desgostavam das precisões dogmáticas e desejavam alguma fórmula compreensível em que homens de todas as posições pudessem assinar tendo cada um seu sentido próprio e divergente. Para esses homens, a fé exata e precisa de Atanásio e a obstinação abertamente herética de Ário e de seus seguidores eram ambas desagradáveis.
“Respeitável, tolerante e liberal” seria a religião ideal deles. Assim, eles apresentaram, em vez do definido e inextirpável homoousion — da mesma substância —, o mais vago homoiousion, isto é, de substância parecida. Eles enviaram cartas para muitos lugares exprimindo-se em linguagem aparentemente ortodoxa e fervorosa, proclamando a crença na divindade de Nosso Senhor, atribuindo a Ele todas as prerrogativas divinas e anatematizando todos aqueles que diziam que Ele foi criado no tempo[5]: em suma, dizendo tudo aquilo que os mais ortodoxos poderiam pedir, exceto que eles substituíam o homoousion de Nicéia por homoiousion definido por eles mesmos.[6]
É possível interpretar o termo “de substância parecida” em sentido ortodoxo, isto é, “exatamente como; idêntico”. Mas também pode ser interpretado no significado de parecido em alguns aspectos mas não em outros, ou seja, como não idêntico. Uma vela é como uma estrela no sentido de que gera calor e luz, mas ela certamente não é uma estrela.
Contudo, a comparação entre uma vela e uma estrela pode ser dada como exemplo de precisão linguística quase perfeita quando colocada ao lado da comparação entre um ser que é criado (mesmo que seja antes do início dos tempos) e um ser que é incriado.
Logo surgiu um estado de espírito entre bispos e fiéis que dizia que estavam fazendo muito estardalhaço em cima da distinção entre homoousion e homoiousion. Eles consideravam que havia mais mal do que bem ao dividir a unidade da Igreja por causa de um único iota (a letra grega “i”). Eles condenaram os que seguiam (fazendo essa distinção, dizendo que eles) eram, como diz Cozen:
[…] rigoristas que estavam mais preocupados com a terminologia do que com a caridade fraternal.
Dentre estes últimos destacava-se Atanásio — no começo diácono e discípulo de Alexandre, o bispo de Alexandria, e depois passou a ser sucessor dele — que se recusou a mudar qualquer modo da sua atitude. Eles [os resistentes] recusaram-se firmemente em aceitar qualquer declaração que não contivesse homoousion, e também se recusaram a comunicar-se com aqueles que rejeitavam o termo.[7]
Atanásio e seus apoiadores estavam certos. Essa pequena letra, o iota, pronunciava a diferença do cristianismo enquanto a fé fundada e guiada pelo Deus incarnado, e uma fé fundada por qualquer outra criatura. Com efeito, se Cristo não é Deus, seria blasfematório nos chamarmos cristãos.
Santo Atanásio: Defensor da Fé Nicena
A Antiga Enciclopédia Católica (em inglês) está longe de exagerar quando descreve a vida de Santo Atanásio como uma “complicada confusão de eventos”. Seria contraproducente delinear aqui até mesmo os principais incidentes dessa trajetória verdadeiramente extraordinária: os vários concílios que se declararam contra e a favor dele, suas excomunhões, suas expulsões e restaurações à própria sé; suas relações com uma formidável lista de imperadores, com seus irmãos de episcopado e com os Romanos Pontífices. Pode também se acrescentar que, em alguns casos, as datas atribuídas aos eventos de sua vida são apenas aproximadas. As datas dadas aqui podem não corresponder com as datas encontradas em outros estudos.
Atanásio nasceu por volta do ano 296 e morreu em 373. Ele tornou-se bispo de Alexandria cinco meses após o Concílio de Nicéia, quando tinha por volta de trinta anos.
Mal haviam dispersado os padres do Concílio quando as intrigas que visavam restaurar Ário começaram. Eusébio, bispo de Nicomédia, conseguiu ser tratado de maneira benéfica pelo Imperador graças a influência que exercia sobre Constância, irmã de Constantino. O bispo, por fim, acabou fazendo prevalecer sua vontade ao fazer que o Imperador chamasse Ário de volta do seu exílio. Constantino fora induzido a escrever para Atanásio dando ordens para que Ário fosse admitido à comunhão na própria Sé de Alexandria. Ele escreveu:
Ao ser informado da minha vontade, dê livre admissão àqueles desejosos de entrar em comunhão com a Igreja. Ademais, se eu souber de resistência ou interdição sua a qualquer um que estiver buscando-a, enviarei imediatamente para aí aquele que acabará por depô-lo — com a minha autoridade — e bani-lo de sua sé.[8]
Após várias intrigas, Atanásio foi enfim banido para a Gália e Ário retornou para Alexandria, embora este último tenha fugido de lá em face da ira da população. Por fim, Ário chegou a Constantinopla, lugar em que morreu de maneira tão dramática, que ninguém duvidou que, como disse Atanásio, “foi algo que mostrou algo maior que julgamento humano.”[9]
O Imperador Constantino morreu em 337 e o império foi dividido entre seus três filhos. Os acontecimentos da vida de Atanásio foram mais complicados do que nunca nesse período. A Sé de Pedro foi ocupada por Júlio I de 337 a 352. O Papa Júlio apoiou consistentemente e corajosamente a causa de Atanásio e a fé de Nicéia. Em 350, todo o Império estava unido sob Constâncio após o assassinato de Constante (sendo que o outro irmão saiu de cena logo após a morte de Constantino). Constâncio era ariano.
Tradução: Dominus Est. Apêndice I do livro Apologia Pro Marcel Lefebvre (vol. I) de Michael Davies. Uma versão expandida deste apêndice está disponível em inglês no opúsculo St. Athanasius, Defender of Faith, do mesmo autor.
Notas:
[1]. National Catholic Register, 2 de março de 1975.
[2]. Cardeal John Henry Newman, The Development of Christian Doctrine (Londres, 1878), p. 143.
[3]. Ário ensinava que Cristo era o único diretamente criado por Deus e, por ter sido assim criado, Ele então criou o resto do universo em nome do Pai. O resto da criação é, portanto, criada diretamente pelo Filho e apenas indiretamente pelo Pai.
[4]. M. L. Cozens, A Handbook of Heresies (Londres, 1960), p. 34.
[5]. Ário ensinava que Cristo fora criado antes dos tempos.
[6]. A Handbook of Heresies, pp. 35-36
[7]. A Handbook of Heresies, p.36.
[8]. Cardeal J. H. Newman, Arians of the Fourth Century (Londres, 1876), p. 267.
[9]. Cardeal J. H. Newman, Arians of the Fourth Century (Londres, 1876), p. 270.