Em 17 de maio de 352 Libério foi consagrado Papa. Ele imediatamente se viu envolvido na disputa ariana:
Ele apelou a Constâncio para que fosse justo com Atanásio. A resposta imperial veio na convocação dos bispos da Gália para um concílio em Arles em 353-354, onde, sob ameaça de exílio, os bispos concordaram em condenar Atanásio. Até mesmo o núncio apostólico de Libério rendeu-se. Quando o Papa pressionou para que o concílio fosse mais abrangente de representantes, Constâncio reuniu-os em Milão em 355. Houve, na ocasião, ameaças violentas de um grupo de pessoas e a intimidação pessoal do Imperador: “Minha vontade é a lei canônica”, exclamou. Com exceção de três bispos, o Imperador prevaleceu sobre todos os outros. Atanásio fora novamente condenado e os arianos admitidos à comunhão. Novamente os núncios do papa renderam-se e o próprio Libério recebeu ordens para assinar. Quando recusou a assinar, e até mesmo a aceitar as ofertas do Imperador, ele foi preso e carregado para longe da presença imperial; ao manter-se firme em prol reabilitação de Atanásio, o Papa foi exilado para a Trácia em 355, onde ficou por dois anos. Enquanto isso, um diácono Romano, Félix, foi introduzido na sé petrina. O povo recusou-se a reconhecer o antipapa imperial. O próprio Atanásio teve de se esconder e seu rebanho foi abandonado à perseguição pelo intruso de tendências arianas. Quando visitou Roma em 357, Constâncio foi assediado por pedidos clamorosos pela restauração de Libério. Por outro lado, bispos subservientes que rodeavam a corte em Sirmio subscreveram fórmulas doutrinais mais ou menos ambíguas ou heterodoxas. Em 358, uma fórmula composta por Basílio de Ancira, declarando que o Filho era de substância parecida com a do Pai, homoiousion, foi oficialmente imposta.[10]
A oposição ao antipapa Félix tornou urgente a necessidade de Constâncio restaurar Libério à sua sé. Contudo, era igualmente urgente que o Papa condenasse Atanásio. O Imperador usou uma combinação de ameaças e lisonjas para atingir seu objetivo. Seguiu-se então a trágica queda de Libério. Ela foi descrita implacavelmente em Lives of Saints de Alban Butler:
Nessa época, Libério começou desmoronar por conta das dificuldades do seu exílio, e sua resolução foi abalada pelas contínuas solicitações de Demófilo, o bispo ariano de Bereia, e de Fortunaciano, o contemporizador bispo da Aquiléia. Estava ele tão mais amolecido por lisonjas e alvitres (que deveriam na verdade fazê-lo tampar seus ouvido de horror) que ele rendeu-se, para grande escândalo da Igreja, à armadilha feita para ele. Ele subscreveu a condenação de Santo Atanásio e uma confissão ou credo concebido pelos arianos em Sirmio, embora a heresia ariana não estivesse lá expressa; e ele escreveu aos bispos arianos do Oriente dizendo que havia recebido a verdadeira fé católica que muitos bispos haviam aprovado em Sirmio. A queda de um prelado tão grande e tão ilustre confessor é um terrível exemplo da fraqueza humana que ninguém pode lembrar-se sem se estremecer todo. São Pedro caiu pela presunçosa confiança em sua própria força e resolução, de maneira que devemos aprender que todo mundo só se mantém pela humildade.[11]
De acordo com A Catholic Dictionary of Theology (1971), “Essa excomunhão injusta [de Santo Atanásio] foi uma falta moral e não doutrinal”[12]. Assinar um dos “credos” de Sirmio era muito mais sério (há controvérsias sobre qual deles Libério assinou, sendo mais provável o primeiro). A New Catholic Encyclopedia (1967) descreve o credo [de Sirmio] como “um documento repreensível do ponto de vista da fé”[13]. Alguns apologistas católicos tentaram provar que Libério nem confirmou a excomunhão de Atanásio e nem subscreveu uma das fórmulas de Sirmio. Contudo, o Cardeal Newman não tem dúvidas que a queda de Libério é um fato histórico[14]. Da mesma maneira dá-se com as duas obras modernas de referência supracitadas e com o celebrado Catholic Dictionary editado por Addis e Arnold. Esta última obra citada mostra que há “uma unidade de evidências entre quatro elementos que dificilmente pode ser desfeita”, isto é, os testemunhos de Santo Atanásio, Santo Hilário, Sozomeno e São Jerônimo. Também se observa na obra que “todas as abordagens são ao mesmo tempo independentes e coerentes entre si”[15].
A New Catholic Encyclopedia conclui que:
Tudo aponta para o fato de que ele [Libério] aceitou a primeira fórmula de Sirmio de 351 […], [a fórmula] falha gravemente ao evitar deliberadamente o uso de uma expressão mais característica da fé nicena e, em particular, do termo homoousion. Assim, se por um lado não se pode dizer que Libério ensinou uma falsa doutrina, parece necessário admitir que, através do medo e da fraqueza, ele não foi totalmente fiel à verdade.[16]
É muito disparatado quando os polemistas protestantes citam o caso de Libério como argumento contra a infalibilidade papal. A excomunhão de Atanásio (ou de qualquer outro) não é um ato que envolve a infalibilidade, e a fórmula assinada não continha nada diretamente herético; Tampouco tratava-se de um pronunciamento ex cathedra com intenção de vincular toda a Igreja; e se fosse, o fato de Libério ter agido sob coação tornaria o ato nulo e vazio.
Todavia, a despeito da pressão a qual foi submetido, a queda de Libério revela uma fraqueza de caráter quando comparado com pessoas como Atanásio, que se manteve firme. O Cardeal Newman comenta:
A queda dele, escandalosa como foi por si só, pode ainda ser usada para ilustrar a firmeza silenciosa daqueles que passaram pelos mesmos sofrimentos, daqueles que pouco ouvimos falar, pois eles mantiveram-se mais consistentes.[17]
Esse é um juízo ao qual concorda a New Catholic Encycplopedia:
Libério não teve a força de caráter que teve seu predecessor Júlio I ou seu sucessor Dâmaso I. Os problemas que surgiram com a eleição deste último indicam que a Igreja Romana fora enfraquecida tanto por fora quanto por dentro no pontificado de Libério. Seu nome não foi inscrito no Martirológio Romano.[18]
Tradição defendida pelos leigos
A queda do Papa Libério deve ser considerada dentro do contexto do fracasso da vasta maioria do episcopado que não foi fiel ao seu encargo; apenas então o heroísmo de Santo Atanásio pode ser apreciado plenamente (junto de alguns outros bispos heróicos, como Santo Hilário, que apoiou-o fielmente). O Cardeal Newman cita numerosos testemunhos da Patrística sobre o estado abissal da Igreja naquela época. No Apêndice V da terceira edição de Arians of the Fourth Century [Os arianos do século IV] lemos:
Sobre o ano 360, São Gregório de Nazianzo diz:
“Certamente os pastores agiram de maneira tola, pois, com exceção de pouquíssimos, que, ou por conta da própria insignificância foram deixados de lado, ou que em razão da própria virtude resistiram, ou aqueles que foram deixados como semente e raiz para brotarem novamente e serem o renascimento de Israel pela influência do Espírito, todos contemporizaram, diferenciando um do outro no seguinte: alguns sucumbiram antes e outros depois; alguns foram os mais proeminentes heróis e líderes da impiedade, e outros entraram na segunda linha de batalha ao serem tomados pelo medo, ou pelo interesse, ou pela lisonja ou, o que era mais perdoável, pela própria ignorância.” (Orat. xxi. 24)
Capadócia. São Basílio diz sobre o ano 372:
“Os religiosos mantêm silêncio, mas todas as línguas blasfemas estão soltas. As coisas sagradas são profanadas; aqueles leigos que estão firmes na fé evitam os oratórios públicos pois tornaram-se escolas da impiedade, e por isso, sentindo-se sós, esses leigos estendem as mãos para os céus em meio a lágrimas e gemidos e, assim, rogam ao Senhor nos céus.” Epístola 92. Quatro anos depois ele escreve: “As coisas chegaram a esse ponto: o povo deixou os oratórios públicos e passou a se reunir nos desertos — um cenário de entristecer; mulheres e crianças, velhos e homens outrora enfermos, rezando sofrivelmente debaixo de fortes chuvas, nevascas, ventos e geadas invernais; e novamente no verão sob um sol arrasador. O povo [fiel] se submete a isso, pois eles não terão parte no perverso meio ariano.” Epístola 242. E novamente: “Apenas uma ofensa é agora punida: a observância das tradições dos nossos antepassados. Por causa dessa observância os piedosos têm de sair de suas terras e locomover-se até o deserto.” Epístola 243.
No mesmo apêndice o Cardeal também incluiu um excerto de um artigo que ele havia escrito para a revista Rambler em julho de 1859[19]. O artigo fala da maneira pela qual, durante a crise ariana, a divina Tradição foi mantida mais pelos fiéis do que pelo episcopado. Três frases desse artigo foram mal interpretadas quando publicadas pela primeira vez e Newman aproveitou a oportunidade para esclarecê-las nesse apêndice. O cerne desses esclarecimentos estarão nas notas de rodapé deste texto. Eis como Newman avaliou a maneira pela qual os leigos — a Igreja que aprende (Ecclesia docta ou discens) — mantiveram a fé tradicional mais do que aqueles que hoje conhecemos por Magistério ou Igreja docente (Ecclesia docens), isto é, os bispos unidos ao Romano Pontífice:
Não é de pouca monta que, embora historicamente falando, o século IV tenha sido a era dos doutores — iluminada pelos Santos Atanásio, Hilário, os dois Gregórios, Basílio, João Crisóstomo, Ambrósio, Jerônimo e Agostinho (todos esses santos foram bispos também, com exceção de um) — foi também, não obstante, a época em que a Divina tradição comprometida com a Igreja infalível fora proclamada muito mais pelos fiéis do que pelo episcopado.
Explico: ao dizer isso, indubitavelmente não estou negando que o grande colégio dos bispos era em seu interior ortodoxo; tampouco estou negando que muitos clérigos mantiveram-se ao lado dos leigos e agiram como âncoras e guias; também não nego que, antes de tudo, os leigos tenham sido instruídos e nutridos na fé pelos bispos e clérigos; e nem que vários leigos eram ignorantes e que outros vários foram corrompidos pelos guias arianos que tomaram posse das sés e ordenaram clérigos heréticos; mas ainda assim, insisto, que naquela época de imensa confusão, o dogma divino da divindade de Nosso Senhor foi proclamado, reforçado, mantido e (humanamente falando) preservado muito mais pela Ecclesia docta do que pela Ecclesia docens; que a parte mais preponderante do episcopado[20] foi infiel ao seu dever, enquanto a maioria dos leigos foi fiel ao seu batismo; [também digo] que, por um tempo, o Papa, ou um patriarca, ou um metropolitano, ou alguma grande diocese, e também concílios gerais[21] disseram o que não deveriam ter dito, ou fizeram coisas que obscureceram e comprometeram a verdade revelada; ao mesmo tempo, por outro lado, foi o povo cristão que, sob a divina Providência, constituiu a força de Atanásio, Eusébio de Vercelli e outros grandes confessores solitários, que teriam fracassado sem eles…
Por um lado, então, digo que houve uma suspensão temporária das funções da Ecclesia docens[22]. A maioria dos bispos fracassou na confissão da Fé.
A verdadeira voz da Tradição
Quais são, então, as lições que podemos aprender com a queda de Libério, o triunfo do arianismo, o testemunho de Atanásio e a fortaleza de espírito da maioria dos fiéis? Newman nos dá algumas respostas, reconhecendo que aquilo que aconteceu poderia vir a acontecer novamente. Em seu artigo de julho de 1859 para a revista Rambler ele escreveu:
Vejo na história ariana um esplêndido exemplo de estado da Igreja ao qual, durante algum tempo, para podermos conhecer a tradição dos Apóstolos, tínhamos de recorrer aos fiéis; pois penso francamente que, se eu recorrer aos escritores eu fico confuso, dado que tenho de harmonizar a mensagem de Justino, Clemente e Hipólito com os doutores da fé nicena; e o que me revive e restaura, na medida em que estudamos essa história, é a fé do povo. Porquanto defendo que, se não tivessem sido catequizados na fé ortodoxa desde o batismo, como diz Santo Hilário, eles jamais poderiam se horrorizar com a heterodoxa doutrina ariana. A voz deles, portanto, é a voz da Tradição.
É também verdadeiro historicamente e doutrinalmente, como salienta Newman no Apêndice V de The Arians of the Fourth Century, “que um Papa, enquanto doutor privado, e muito mais os bispos, quando não estão ensinando formalmente, podem errar — assim como vimo-los errar no século IV. O Papa Libério pode assinar uma fórmula eusebiana em Sirmio e os vários bispos assiná-la em Rimini ou em qualquer outro lugar, e ainda assim eles podem, apesar desse erro, serem infalíveis em suas decisões ex cathedra.”
Finalmente, o que a história desse período prova é que, durante tempos de apostasia generalizada, cristãos que mantêm-se fiéis à sua fé tradicional podem ter de adorar fora das igrejas oficiais — ou seja, das igrejas dos padres em comunhão com seu bispo diocesano legalmente indicado — para que não comprometam essa mesma fé tradicional. E também esses cristãos podem ter de procurar pelo verdadeiro ensino, liderança e inspiração católicas não nos bispos do seu país enquanto colegiado, tampouco aos bispos do mundo, e nem mesmo no Romano Pontífice, mas apenas a um confessor heróico cujos demais bispos podem ter repudiado ou até mesmo excomungado. E como esses fiéis reconheceriam que esse confessor solitário está certo e que o Romano Pontífice e o colegiado episcopal (enquanto não ensina infalivelmente) estavam errados? A resposta é que eles teriam de reconhecer no ensinamento desse confessor o que os fiéis do quarto século reconheceram nos ensinamentos de Atanásio: a verdadeira e única Fé pela qual eles foram batizados, catequizados e que pela Confirmação eles receberam a obrigação de defendê-la. Em nenhum sentido possível tal fidelidade à Tradição pode ser comparada com a prática do julgamento privado protestante. Os católicos tradicionalistas do século IV defenderam Atanásio quando ele defendeu a fé que lhe foi legada; os protestantes usam o julgamento privado para justificar brechas na fé tradicional.
A verdade do ensinamento doutrinal deve ser julgada pela sua conformidade com a Tradição e não pela quantidade ou pela autoridade de pessoas propagando-a. A falsidade não pode tornar-se verdade, não importa quantos aceitem-na. Em 371, São Basílio lamentou o fato:
A heresia disseminada há muito por Ário, o inimigo da verdade, adquiriu uma extensão vergonhosa. E como uma raiz amarga ela está gerando frutos perniciosos e já está ganhando vantagem, visto que os proclamadores da verdadeira doutrina foram alijados das igrejas pela difamação e pelo insulto. Ademais, a autoridade que esses [proclamadores da doutrina] possuíam foi passada para outros com o fim da cativar os de espírito simples.[23]
Contudo, jamais haverá uma época em que o fiel que queira sinceramente manter-se fiel à Fé dos antepassados tenha de duvidar de qualquer maneira acerca de o que verdadeiramente é a fé. No ano 340, Santo Atanásio escreveu uma carta aos seus irmãos de episcopado do mundo todo exortando-os a levantarem-se e defenderem a fé contra aqueles que ele não hesitou em chamar de “malfeitores”. O que Santo Atanásio escreveu aplicar-se-á até o fim dos tempos quando Deus Filho vier gloriosamente julgar os vivos e mortos:
A Igreja não passou a dar recentemente ordens e promulgar estatutos. Eles nos foram conferidos fiel e firmemente pelos nossos antepassados. Tampouco a fé foi recentemente instituída; Ela foi legada a nós pelo Senhor através dos Seus discípulos. Que aquilo que foi preservado na Igreja desde os primórdios até hoje não seja abandonado na nossa época; que aquilo que foi confiado à nossa guarda não seja defraudado por nós. Irmãos: como guardiões dos mistérios de Deus despertai-vos e agi quando verem tudo isso ser despojado por outros.[24]
Tradução: Dominus Est. Apêndice I do livro Apologia Pro Marcel Lefebvre (vol. I) de Michael Davies. Uma versão expandida deste apêndice está disponível em inglês no opúsculo St. Athanasius, Defender of Faith, do mesmo autor.
Notas:
[10]. Eric John. The Popes (Londres, 1964), p. 70.
[11]. Alban Butler, The Lives of the Saints (Londres, 1934), vol. II, p. 70.
[12]. J. H. Crehan, ed., A Catholic Dictionary of Theology (Londres, 1971), vol. III, p. 10
[13]. New Catholic Encyclopedia (New York, 1967), vol. VIII, p. 715, col. 1
[14]. Cardeal J. H. Newman, Arians of the Fourth Century (Londres, 1876), p. 464
[15]. W. Addis e T. Arnold, A Catholic Dictionary (Londres, 1925), p. 522, col. 2
[16]. New Catholic Encyclopedia (New York, 1967), vol. VIII, p. 715, col. 2
[17]. Cardeal J. H. Newman, Arians of the Fourth Century (Londres, 1876), p. 319-320
[18]. New Catholic Encyclopedia (New York, 1967), vol. VIII, p. 716, col. 2
[19]. The Rambler, Vol. I, nova série, Parte II, julho de 1859, pp. 198-230. Esse artigo foi escrito para refutar críticas feitas a um artigo não assinado escrito pelo próprio Cardeal Newman para a edição de 1859 da Rambler, a qual ele era editor.
[20]. O autor usa “body of the Episcopate” dando a entender que se trata da parte mais preponderante do episcopado.
[21]. Newman não está se referindo a qualquer Concílio Ecumênico da Igreja (i.e. de todo o mundo católico) reconhecido, pois não houve nenhum no período do trecho ao qual ele descreveu. Ele fez referência à reuniões de bispos grandes o suficientes para serem classificadas com a palavra latina generalia.
[22]. Newman explica que por “suspensão temporária das funções da Ecclesia docens” ele quis dizer “que não houve qualquer exercício de função da voz infalível da Igreja nos assuntos pertinentes a esse exercício entre o Concílio de Nicéia (325) e o Concílio de Constantinopla (381).”
[23]. “Des heiligen Kirchenlehrers Basilius des Grossen ausgewählte Schriften,” in Bibliothek der Kirchenväter (Kosel-Pustet, Munique, 1924), vol. I, p. 121.
[24]. J. P. Migne, Patrologia Graeca, vol. XXVII, col. 219.