SEJAM RACIONAIS: TORNEM-SE PROTESTANTES!

Observadores protestantes que participaram da reunião do “Consilium” de liturgia para o desenvolvimento da nova Missa.

O que dizer a todos aqueles que querem permanecer firmemente ligados ao Motu Proprio que fundou o movimento Ecclesia Dei, mas que consideram os fiéis da Fraternidade São Pio X como cismáticos?

Fonte: Courrier de Rome nº 681 – Tradução: Dominus Est

Pelo Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX

1. A celebração da Missa no âmbito da peregrinação a Chartres poderia tornar-se problemática, como já escrevemos(1). Com efeito, mesmo na melhor das hipóteses, onde as autoridades eclesiásticas não recusariam aos padres que participam dessa peregrinação celebrar de acordo com o Missal de São Pio V, ainda assim os organizadores da Peregrinação não pretendiam permitir que a missa fosse celebrada de acordo com o Missal de Paulo VI. Essa recusa coloca os católicos do movimento Ecclesia Dei em um dilema. Porque, das duas, uma: ou as razões dessa recusa coincidem com aquelas pelas quais a Fraternidade São Pio X também não aceita a celebração do Novus Ordo, razões essas que fazem dessa recusa uma atitude de princípio, e então o movimento Ecclesia Dei encorre no suposto cisma que inicialmente quis evitar ao recusar seguir D. Lefebvre; ou a dita corrente pretende manter-se fiel às suas origens, distinguindo-se por princípio da atitude adotada pela Fraternidade São Pio X, e então ela não pode tornar suas as razões pelas quais a referida Fraternidade recusa por princípio o novo Missal de Paulo VI, o que a leva, para recusar esse novo Missal, a descobrir outras razões impossíveis que, por ora, se dão ao álibi de um improvável “DNA”…

2. A mesma lógica de evitar o suposto cisma deveria levar a desconsiderar a recusa da mesma missa de Paulo VI, tal como justificada pela Fraternidade São Pio X. O meio utilizado é idêntico entre todos os detratores do combate conduzido por D. Lefebvre: é o recurso ao único argumento extrínseco da autoridade, tanto mais que a crítica interna do novo rito da Missa, do qual o Breve Exame Crítico dos Cardeais Ottaviani e Bacci representa a realização mais perfeita, deixa pouca esperança aos possíveis apologistas do Missal de Paulo VI.

“A Fraternidade São Pio X rejeita a celebração da Missa Nova por princípio, citando a autoridade dos Papas antes do Concílio Vaticano II.”

3. Esse argumento de autoridade invocado contra a FSSPX é, neste caso, o da autoridade da lei da Igreja, que, dirigida como é pelo Espírito de Deus, jamais poderia, por questão de princípio, estabelecer uma disciplina que seja perigosa ou prejudicial à fé ou à moral dos fiéis. A referência preferencial é a condenada proposição n.º 78 da Constituição Apostólica Auctorem Fidei do Papa Pio VI. Ele pretende aqui condenar aqueles que se dão a liberdade de escolher, entre as leis da Igreja, “o que é necessário ou útil para manter os fiéis no espírito, e o que é inútil ou mais penoso do que a liberdade dos filhos da nova aliança pode suportar, e ainda mais o que é perigoso ou prejudicial porque leva à superstição ou ao materialismo”. A ideia, especificamente condenada, é aquela segundo a qual seria permitido submeter a exame “a disciplina estabelecida ou aprovada pela Igreja – como se a Igreja, que é governada pelo Espírito de Deus, pudesse estabelecer uma disciplina que não só é inútil e mais pesada do que a liberdade cristã pode suportar, mas também perigosa, prejudicial, levando à superstição e ao materialismo”. Da mesma forma, na Encíclica Mirari vos, o Papa Gregório XVI declarou que “seria, portanto, uma ofensa, uma derrogação formal do respeito que merecem as leis eclesiásticas, culpar […] a disciplina que a Igreja consagrou, que regula a administração das coisas santas”. E, finalmente, na Encíclica Mediator Dei, o Papa Pio XII lembra àqueles que se apegam desnecessariamente a antigos costumes litúrgicos que “os ritos litúrgicos mais recentes também são dignos de honra e observância, pois nasceram sob a inspiração do Espírito Santo, que assiste a Igreja em todas as épocas até a consumação dos séculos”.

“A reação da Fraternidade São Pio X não é a de uma Igreja discente que se coloca como Igreja docente, mas a da Igreja já discente durante séculos e que deve rejeitar uma doutrina que é manifestamente oposta àquela que já foi ensinada.”

4. A inadequação desse tipo de argumento foi apontada desde o início por D. Lefebvre, em todas as suas respostas ao Papa Paulo VI(2). O erro condenado por Pio VI, Gregório XVI e Pio XII é aquele em que a consciência individual dos fiéis pretende julgar por si mesma as decisões da autoridade, imputando a esta uma deficiência que nada pode presumir. Esta é a reação de uma Igreja discente que se coloca como Igreja docente, mas a reação da Fraternidade São Pio X pode ser explicada e justificada por um motivo totalmente diferente(3). Pode acontecer, diz Santo Hilário, que “os ouvidos do povo sejam mais santos do que os corações dos sacerdotes”(4). Precisamente, são os “ouvidos” que são mais santos, e o são porque já ouviram a palavra da verdade que santifica, mesmo que por agora os corações e as bocas dos sacerdotes não a façam mais ouvir como fizeram até aqui. Repitamos essas evidências(5). A Igreja permanece sempre o que é, mesmo em tempos de crise, mesmo no período pós-Vaticano II: uma sociedade essencialmente desigual, onde a Igreja discente reage sempre em dependência da pregação da Igreja docente. A resistência de D. Lefebvre e da FSSPX em relação ao Novus Ordo Missae de Paulo VI é justificada pelo critério estabelecido por São Paulo na Epístola aos Gálatas, capítulo I, versículo 8: “praeterquam quod evangelizavimus vobis”. A Igreja discente deve considerar como anátema uma doutrina oposta àquela que já lhe foi ensinada. A rejeição do Novus Ordo é precisamente a rejeição de uma Igreja discente, uma rejeição de uma Igreja já instruída por ter recebido de seus pastores a expressão inalterável do culto divino e da fé católica divinamente revelada, através da liturgia do Missal de São Pio V. A rejeição do novo missal de Paulo VI é a rejeição daquilo que se “afasta” dessa liturgia do Missal de São Pio V, a rejeição de qualquer coisa que “se afaste” da “disciplina que a Igreja consagrou e que regula a administração das coisas santas“, para usar as palavras do Papa Gregório XVI.

5. Essa é a verdadeira – e única – razão que pode legitimamente rejeitar a nova liturgia de Paulo VI. Essa razão deriva, ela própria, da natureza essencial da Igreja Católica, uma sociedade essencialmente desigual, onde a profissão de fé da Igreja discente ecoa continuamente, inalterada, as diretrizes do ensinamento da Igreja. Continuamente, isto é, ao longo dos séculos, desde São Pedro até o último Papa da história, e sem possível contradição. No entanto, considerada em sua essência, a nova liturgia de Paulo VI está em clara contradição com a liturgia secular da Igreja: em sua essência, ou seja, como um sinal e, portanto, naquilo que deveria significar. O significado da missa de Paulo VI afasta-se demasiadamente daquilo que a Igreja docente sempre pretendeu que sua liturgia significasse para que a reforma do Novus Ordo Missae fosse considerada a expressão legítima de fé e disciplina à qual a Igreja docente deveria se conformar. O distanciamento da nova missa não apenas a torna menos boa ou imperfeita ou passível de aperfeiçoamento; torna-a má, porque é perigosa e prejudicial à fé dos fiéis e desagradável aos olhos do Todo-Poderoso. Representa, para todos, um escândalo, isto é, uma ocasião de ruína espiritual. Rejeitá-la, portanto, não é apenas legítimo, mas necessário: é um dever imposto à consciência de todo católico determinado a permanecer fiel às suas promessas batismais.

6. Essa verdadeira razão para a recusa é muitas vezes ignorada e silenciada pelos fiéis do movimento Ecclesia Dei, e não é a apresentada pelos organizadores da peregrinação. Se eles não fizerem isso, será cada vez mais difícil, se não impossível, manter sua credibilidade diante das exigências das autoridades eclesiásticas.

“Como pode o motu proprio Ecclesia Dei afflicta, cuja base é impedir qualquer oposição em princípio a essas mesmas reformas, ser usado para rejeitar a nova missa e as reformas resultantes do Vaticano II?”

7. O primeiro princípio da própria existência do movimento Ecclesia Dei, sua razão de ser radical, é evitar o suposto cisma de D. Lefebvre. Esse princípio está claramente enunciado na alínea c) do parágrafo 5 do Motu Proprio Ecclesia Dei afflicta: “Desejo, sobretudo”, diz João Paulo II, “dirigir um apelo, ao mesmo tempo solene e comovido, paterno e fraterno, a todos aqueles que até agora, de diversos modos, estiveram ligados ao movimento do Arcebispo Lefebvre, a fim de que cumpram o grave dever de permanecerem unidos ao Vigário de Cristo na unidade da Igreja Católica, e de não continuarem a apoiar de modo algum esse movimento. […] A todos estes fiéis católicos, que se sentem vinculados a algumas precedentes formas litúrgicas e disciplinares da tradição latina, desejo manifestar também a minha vontade – a qual peço que se associem a dos Bispos a de todos aqueles que desempenham na Igreja o ministério pastoral – de lhes facilitar a comunhão eclesial, mediante as medidas necessárias para garantir o respeito das suas justas aspirações.”

Em outras palavras, a possibilidade dada aos fiéis que assim o desejarem de assistir à celebração da Missa de acordo com o Missal de São Pio V é, na intenção do Papa, apenas o meio de facilitar a esses fiéis a comunhão eclesial agora baseada na adesão às reformas posteriores ao Concílio Vaticano II e de os desviar das orientações seguidas pela Fraternidade São Pio X; o meio, consequentemente, de evitar que eles se recusem a celebrar a missa de acordo com o novo Missal de Paulo VI, que está lenta mas seguramente permitindo que o modernismo penetre nas mentes das pessoas, levando gradualmente a uma ampla protestantização da Igreja.

8. O que dizer, então, a todos aqueles que desejam permanecer firmemente ligados ao Motu Proprio que fundou o movimento Ecclesia Dei, e que, no entanto, consideram os fiéis da Fraternidade São Pio X como cismáticos? O que lhes dizer, se não: “Sejam racionais: tornem-se modernistas ou, melhor ainda, protestantes”.

Notas

(1) Veja o artigo “Uma peregrinação cismática?” nesta edição do Courrier de Rome. 

(2) Veja o número da revista do Instituto Universitário São Pio X dedicado a este ponto, sob o título “Vaticano II. A autoridade de um concílio em questão”, Vu de haut n°13, 2006.

(3) Ver, em particular, as edições de julho-agosto de 2011 (“Magistério e Fé”) e de fevereiro de 2012 (“Magistério e Tradição Viva”) do Courrier de Rome, bem como o artigo intitulado “ Uma Igreja Inspirada  na edição de novembro de 2024 do Courrier de Rome.

(4) Santo Hilário, Contra Auxêncio, n.º 6 em Migne latim, vol. X, 613

(5) Veja “Uma Igreja Inspirada”  na edição de novembro de 2024 do Courrier de Rome.