SOB A PROTEÇÃO DOS ANJOS DA GUARDA

Uma devida devoção ao nosso anjo da guarda não deve cair no exagero nem no esquecimento.

Fonte: Lou Pescadou nº 218 – Tradução: Dominus Est

O quarto livro de Reis relata que os sírios queriam prender o profeta Eliseu. Ao ver os soldados, o servo do profeta ficou com medo. Então Eliseu lhe disse: Não temas; muitos mais estão conosco do que com eles. E Eliseu, fazendo oração, disse: Senhor, abre os olhos deste, para que veja. E o Senhor abriu os olhos do criado, e viu, e o monte apareceu cheio de cavalos e de carroças de fogo, ao redor de Eliseu. (4 Reis 6, 16-17). Fillion comenta: “Eliseu e seu servo contemplaram ao redor deles as tropas de anjos, enviados do alto para defendê-los.”

Esta passagem do Antigo Testamento nos revela a existência de anjos, que podem ser enviados por Deus para proteger os homens. De fato, é uma verdade de fé que Deus criou, do nada, no início dos tempos, seres espirituais, e que a tarefa secundária destes é a proteção dos homens e o cuidado com sua salvação. Quase todos os teólogos ainda acreditam – é, portanto, uma sentença comum – que todo homem, mesmo infiel, tenha um santo anjo particular desde seu nascimento. O Catecismo do Concílio de Trento fala disso na explicação do Pai Nosso: “Desde o nosso nascimento, Deus coloca os anjos para nossa guarda e os estabelece individualmente para velar pela salvação de cada um de nós.” Santo Tomás de Aquino ensina: “Assim como se dá um guarda aos homens que percorrem uma via insegura, assim todo o homem, que está aqui na terra como um peregrino, goza da guarda de um anjo.” Foi o Papa Clemente X, em 1670, que estabeleceu para a Igreja universal a Festa dos anjos da guarda em 2 de outubro.

Podemos nos perguntar quando “recebemos” este anjo: no nascimento ou no batismo? Santo Tomás de Aquino responde que é desde o nascimento (por isso todo homem tem um anjo), mas este anjo desempenha um novo papel a partir do batismo. E antes do nascimento? O mesmo teólogo afirma: “A criança, não estando separada de sua mãe, é confiada à guarda do anjo que vela por ela.

Teria, Nosso Senhor, um anjo da guarda? Eis a resposta de Santo Tomás de Aquino: “Cristo, enquanto homem, sendo regido imediatamente pelo verbo de Deus, não precisava da guarda dos anjos. E, demais, era, pela alma, compreensor; mas era, em razão da passibilidade do corpo, viandante. E por isso, não lhe era devido, nenhum anjo custódio como superior, mas antes um anjo ministrante, como inferior. É por isso que o Evangelho diz: “Os anjos se aproximaram e O serviram” (Mt 4,11). Acrescentemos que no Horto das Oliveiras, um anjo vem especialmente para consolá-lo (Lc 22,43). E no momento de sua prisão, disse a São Pedro: Julgas porventura que eu não posso rogar a meu Pai, e que ele me não porá aqui logo mais de doze legiões de anjos? (Mt 26, 53)

Nosso Senhor falou também dos anjos da guarda das crianças: Vede, não desprezeis um só destes pequeninos, pois vos declaro que os seus anjos nos céus vêem incessantemente a face de meu Pai, que está nos céus (Mt 18,10). Ele evocou também suas frequentes relações com os anjos: Em verdade, em verdade vos digo, vereis o céu aberto, e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem. (Jo 1,51). Comentando este versículo, Fillion explica que Nosso Senhor estava em perpétua comunicação com o Céu, e os anjos estavam constantemente à sua disposição para cumprir suas vontades.

Os Padres da Igreja vêem três grandes funções desempenhadas pelos anjos da guarda e lhes dão três nomes específicos para isso. São João Crisóstomo fala do anjo da paz, porque ele protege a alma de problemas exteriores e interiores. O Pastor de Hermas evoca o anjo da penitência, porque ele pode nos repreender e nos punir quando nos desviamos do caminho certo. Santa Francisca Romana foi assim, um dia, esbofeteada por seu anjo depois de ter se comportado mal… Quanto a Tertuliano, ele fala do anjo da oração, porque o anjo da guarda transmite nossos pedidos a Deus e nos assiste na oração.

Santo Tomás de Aquino acrescenta que o anjo da guarda desempenha um papel tanto na alma quanto no corpo. Apresenta à inteligência as ideias que quer sugerir. Não força a vontade, mas pode excitá-la, ajudá-la na prática do bem. Ele é o guarda-costas. Sobre este assunto, pode surgir uma objeção: por que  sempre há acidentes? Será que os anjos da guarda têm momentos de ausência? Não, claro que não, mas aqui tocamos no problema da permissão do mal. Deus não o quer, mas pode permitir, porque é poderoso o suficiente para obter dele um bem maior. Santo Tomás escreve mesmo: “Os anjos bons não nos afastam das ciladas do demônio, que devem servir para a salvação da nossa alma.” Podemos pensar também no que o Cura d’Ars costumava dizer: o anjo da guarda não entra nos bailes, fica à porta. Em outras palavras: também nos podemos colocar em ocasiões perigosas.

Portanto, não nos esqueçamos de nosso anjo da guarda. Rezemos a ele diariamente, recorramos a ele com frequência. O Pe. Calmel, em seu livro Os Mistérios do Reino da Graça, dá exemplos. “Quando estiveres prestes a ter uma entrevista, especialmente se temes que será difícil ou tempestuosa, é bom que confies em seu anjo; não na esperança de que vá mudar teu caráter ou o da pessoa que tens diante de ti; mas para além de poder limitar os danos que seus defeitos de caráter tenderiam a causar, teu anjo, se o invocares com piedade e perseverança, não deixará de inspirar teus pensamentos e sentimentos, durante e depois deste encontro, de modo que, ainda que falhes em algum deles, dará frutos espiritualmente e permitirá que cresças na caridade.” 

O dominicano também pensa nos estudos. “Estás lidando com uma questão doutrinal particularmente difícil, dando voltas e invertendo as coisas, multiplicando leituras e pesquisas sem nunca conseguir colocar a questão em termos justos, nem vislumbrando a resposta, nem percebendo o que está em segundo plano, nem compreendendo a relação exata com as verdades reveladas? Bem, nesta aflição e neste labor, por que não recorres a este companheiro luminoso, que compreendeu a questão antes de ti e melhor do que ti, que nunca deixa de vê-la em um flash radiante cuja percepção é mais aguçada e melodiosa que a de todos os doutores humanos, porque é a percepção de um espírito puro?” 

Não será surpresa descobrir que D. Lefebvre, em seu Itinerário Espiritual, fez eco a esta doutrina sobre os anjos da guarda: “Quão grande é o prejuízo causado às nossas almas por esquecermos este mundo espiritual de anjos mais numerosos do que os homens, mais perfeitos do que eles. A influência de anjos bons ou maus em nossas almas é muito mais importante do que pensamos. O simples fato de termos um anjo da guarda que nos vigia enquanto contemplamos a face de Deus deve nos encorajar a conversar com ele, a pedir seu socorro, para que ele nos ajude a conquistar a vida eterna e a compartilhar sua felicidade.”

Que Nossa Senhora dos Anjos nos ajude a ter uma justa devoção ao nosso anjo da guarda, que não caia no exagero nem no esquecimento.

Pe. Vicent Grave, FSSPX

Mais sobre os Anjos da Guarda podem ser vistos clicando aqui.