Eclipse Solar na Imago Mundi de Gossuin de Metz – 1246
Não, a falsificação de que falaremos não vem da NASA, mas diz respeito à ideia profundamente arraigada, mas falsa, de uma Idade Média “terraplanista” e aos fundamentos ideológicos deste mito. Depois de ter refutado o mito de uma Idade Média que pensava que a terra era plana, e de ter esclarecido como esta ideia se estabeleceu, é necessário considerar o nascimento do mito.
Fonte: FSSPX – News – Tradução: Gederson Falcometa
A inércia de uma falsificação
Todos esses elementos [cfr. artigo (3)] podem enganar os não iniciados, mas não conseguem impressionar nem mesmo um historiador sério. Os primeiros propagadores do mito foram os mais culpados. Mas passadas as primeiras falsificações, as subsequentes repetiram o catecismo voltariano, movidas por uma fé cega no progresso, sem olhar crítico, e com o tempo, a falsificação repetida milhares de vezes assumiu o valor de uma verdade histórica consolidada.
Michelet, que merece o título de romancista e não de historiador, obviamente retomou esta fábula, entre muitas outras. Foi ampliado também por Antoine-Jean Letronne, titular da cátedra de história do prestigiado Collège de France no século XIX [1]. O tempo fez errar um autor como Arthur Koestler, mesmo se estes tenham contribuído para desmistificar o caso Galileu [2].
Existe até um livro de 2015 que pretende “desmascarar os mitos” e lhe transmite uma versão ligeiramente atenuada [3]. Inicialmente, este mito foi difundido principalmente por círculos anticatólicos, mas com o tempo rapidamente passou a enganar os católicos.
Outros elementos foram adicionados posteriormente, como mapas antigos, às vezes exibidos como evidência do “Terraplanismo” medieval. Mas tomar os planisférios como evidência de “terraplanismo” é um argumento de estupidez surpreendente que nos faria classificar os criadores dos mapas Michelin ou os designers do Google Maps como “terraplanistas”, sob o pretexto de que representam a superfície da Terra plana.
Quanto às representações seccionais, que poderiam constituir provas reais, não são retiradas de manuscritos medievais, mas são produções contemporâneas destinadas a ilustrar o mito! O mito torna-se assim o criador das suas próprias “provas”. Se auto sustenta.
As origens do “terraplanismo” contemporâneo.
Por irônia da sorte, o nascimento do atual fenómeno da “terra plana” encontra-se no século XIX, pouco depois do “Iluminismo”, na ascensão do racionalismo, dentro de uma comunidade socialista utópica.
De fato, por volta de 1839, Samuel Rowbotham, secretário da efémera comunidade utópica Manea Fen, de inspiração owenista [4], realizou experiências no rio Bedford, das quais concluiu que a Terra era plana. Ele escreveu um panfleto intitulado “Astronomia Zetética” (1849) para defender sua estranha conclusão, apelando para seu método “zetético” [5] baseado apenas na razão.
Realizou depois uma obra mais importante (1881) acrescentando algumas passagens bíblicas interpretadas de forma muito pessoal, sem apelar nem aos Padres, nem a Cosme, nem à Idade Média, e certamente também não ao Magistério, porque é protestante. que não parece pertencer a nenhuma denominação.
As suas ideias foram depois adotadas por uma seita protestante, a Christian Catholic Apostolic Churc, que evidentemente não tem nada de católica apesar do nome, e depois pela famosa Flat-Earth Society, que ainda persiste hoje.
Conclusão
É inquietante e significativo que um erro tão grave ainda esteja tão difundido. Se tal mito pode ter enchido os livros escolares durante dois séculos, quantos outros ainda estão escondidos nas representações contemporâneas do cristianismo medieval? Por exemplo, a alegada proibição da dissecação [6], a história absurda da discussão sobre as almas das mulheres [7], o mito do ius primae noctis que Voltaire não tem problema em atribuir aos bispos [8], etc.
A realidade é ainda mais difícil de encontrar quando se trata de fatos reais que estão parcialmente misturados com mitos, como a caça às bruxas, a inquisição ou o caso Galileu. Todos estes mitos criaram raízes ainda mais duradouras à medida que passaram a reforçar as ideias preconcebidas dos anticlericais de todas as convicções, revolucionários ou protestantes, mesmo que tivessem constantemente nos lábios a “luta contra os preconceitos”.
É neste estado de espírito que devemos encontrar a causa raiz destes mitos: julgamos o período medieval irracional porque o olhamos com um olhar irracional. Projetamos a nossa irracionalidade no passado para melhor fortalecer o orgulho de um presente considerado “iluminado” pela razão: o passado é “obscurantista” e nós finalmente somos “iluminados”, diz-se com orgulhoso maniqueísmo.
Mas o “iluminismo” do terceiro milénio não é tão claro: não vemos as pessoas no topo a pensar seriamente na conveniência de colocar homens em prisões femininas ou em competições desportivas femininas, simplesmente porque estes homens declararam que se sentem como mulheres?
Na verdade, nosso mundo não gira em direção ao justo. A perda da fé não teria algo a ver com esta perda da razão? Ao esquecer esta verticalidade religiosa que faz o homem tender para Deus, a Terra de hoje perdeu uma das suas dimensões: tornou-se espiritualmente plana.
Pe. Frederico Weil
[1] Des opinions cosmographiques des Pères de l’Eglise, in Revue des deux Mondes, t. 1, 1834.
[2] Les Somnambules, 1955. Koestler não é um historiador, mas tem o mérito de pesquisar frequentemente as fontes… exceto no período pré-copernicano, onde ele considera Cosmas uma autoridade indiscutível.
[3] “No início da Idade Média, o obscurantismo imposto pela Igreja Católica fez prevalecer a ideia de que a Terra era plana. Mas os contemporâneos de Cristóvão Colombo sabiam que a Terra não era plana”. Lydia Mammar, C’est vrai ou c’est faux ? 300 mythes fracassés, Paris, L’Opportun, 2015, seção: Antes de Cristóvão Colombo, todos pensavam que a Terra era plana.
[4] Nomeado em homenagem a Robert Owen, fundador do socialismo utópico britânico. Owen viu essas comunidades como a única maneira de levar uma vida “racional” e fundou a Sociedade Racional para promover a sua ideologia, defendendo, entre outras coisas, o controle da natalidade e visões muito liberais sobre o casamento. Rowbotham buscou a aprovação da Rational Society para sua comunidade, mas não teve sucesso, embora houvesse apoio. A comunidade ganhou as manchetes e durou apenas dois anos (1839-1841), após os quais o próprio Rowbotham a considerou “repreensível e impraticável”. Cfr. “A Monument of Union”: Social Change and Personal Experience at the Manea Fen Community, 1839–1841, John Langdon, 2012.
[5] Do grego zeteo, “procuro”. Como a maioria daqueles que ainda hoje usam o termo zetético, Rowbotham afirma confiar principalmente na experiência, embora seja mais um teórico. Ele não é o inventor deste uso do termo zetético. Na verdade, encontra-se na Sociedade Zetética dos Livres Pensadores de Edimburgo, fundada em 1820 por livres pensadores ateus pertencentes ao povo comum.