VERDADEIRA E FALSA MISERICÓRDIA

Desde várias décadas, uma noção errônea da misericórdia, que prescinde da justiça, tem se propagado na teologia. Essa “misericórdia” deformada é um elemento central do pensamento do Papa Francisco, e causa uma profunda confusão no povo cristão.

Fonte: La Porte Latine – Fonte: Dominus Est

O QUE É MISERICÓRDIA?

De acordo com a etimologia, misericórdia é o sentimento de um coração (cor, cordis, em latim) comovido por uma miséria. Pela misericórdia, entristecemo-nos pelo desfortúnio do próximo como se fosse nosso: “O homem misericordioso considera como sua a miséria de outrem, e se aflige como se ela lhe fosse pessoal”, escreve São Tomás de Aquino.

A misericórdia não é somente um movimento da sensibilidade: enquanto virtude, ela é um movimento da vontade pautada pela razão. Essa virtude visa um justo meio entre a insensibilidade ou a severidade, e uma paixão que seria incomensurável nos temperamentos deveras afáveis.

Quando nasce da caridade, a misericórdia é uma virtude sobrenatural, que tem em vista os bens naturais do próximo, e, mais ainda, os bens sobrenaturais.

AS ETAPAS DA MISERICÓRDIA

Descrevamos as etapas da virtude sobrenatural de misericórdia, aquela que é um efeito da caridade.

  • A misericórdia começa por ver o desfortúnio do próximo.

Não ver a miséria é coibir a misericórdia. A cegueira sobre o desfortúnio do outro pode ser provocada pelo egoismo e o individualismo, que tornam-nos indiferentes. Não cuidar dos outros e do que os atinge: eis a razão principal dessa insensibilidade.

Para ser misericordioso verdadeiramente, o cristão deve fixar sobre os homens um olhar de fé. A fé leva a compreender profundamente o mal das almas. Por ela, a misericórdia focará em um pecado, uma desordem moral. Ao contrário, uma misericórdia falsificada pelo relativismo pretende ver no pecado e no erro apenas fraquezas, um bem menor…

  • A visão da miséria do outro produz na alma um movimento de tristeza, leva a se compadecer dessa miséria.

Porém, a emoção da verdadeira misericórdia não é aquela da filantropia. A misericórdia cristã nasce da caridade, ela é teologal, em razão de Deus. Em particular, ela é tomada de compaixão pelos pecadores. E compadecer-se pelo pecado do outro não é certamente encorajá-lo em sua falta. É contemplar a santidade de Deus ofendida pela falta, e pensar na pena eterna que espera o pecador endurecido.

  • A compaixão não basta a si mesma. A compaixão autêntica passa aos atos, ela tende a aliviar essa miséria, ela faz o que está ao seu alcance para socorrer de modo eficaz.

Aqui também o olhar da fé permite discernir as verdadeiras misérias do próximo. Algumas pessoas generosas gostariam de aliviar todas as misérias do mundo, mas se limitam às misérias materiais. Ora, o maior mal é o afastamento de Deus.

A obra de misericórdia por excelência é, portanto, o testemunho da fé, o que chamamos de misericórdia da verdade. Somente o ensino da verdadeira religião tirará os homens da grande desgraça na qual eles se fecharam, por sua ignorância involuntária ou culposa. O liberalismo e o relativismo que se calam e mantém os homens em suas ilusões não são somente erros, mas uma assustadora indiferença.

A NOVA “MISERICÓRDIA”

Uma nova concepção da misericórdia já se encontrava nos predecessores do papa atual. Em seu discurso para a abertura do concílio Vaticano II, João XXIII anunciava a nova doutrina ao proclamar: “Hoje, a Esposa de Cristo prefere recorrer ao remédio da misericórdia em vez de brandir as armas da severidade.”

O grande pensador católico Romano Amerio notava com exatidão: “Este anúncio do princípio de misericórdia, oposto a aquele da severidade, negligencia o fato de que, no espírito da Igreja, a condenação do erro é, por si, obra de misericórdia, visto que ao atingir o erro, se corrige aquele que errava e se preserva do erro os outros1”.

A nova atitude contém, na realidade, muitos abandonos. Ela desconsidera a misericórdia que é, todavia, a mais importante, pois ela toca o mal mais profundo: dizer aos homens a verdade. A verdadeira misericórdia consistiria em ter grande compaixão pelas almas que jazem “na sombra da morte”, e em pregar-lhes Jesus Cristo e a fé, que é indispensável à salvação.

De fato, a nova “misericórdia” vai se voltar mais para as misérias da terra do que para aquelas que são as mais graves, as misérias espirituais. O partido dominante na Igreja tem em vista servir o homem em sua vida terrestre, em vez de prosseguir a missão que Nosso Senhor deu à Igreja, de dirigir as almas para o Céu e salvá-las.

O PRIMADO DA CONSCIÊNCIA

Aos olhos do pensamento moderno, a consciência de cada um prima sobre tudo. O que é bom e legítimo buscar não é mais o que está de acordo com a ordem estabelecida pela sabedoria do Criador, tal como expressa a lei divina. É o que aparece como tal ao indivíduo, no íntimo de sua consciência. A lei divina é colocada de lado, e em seu lugar se instala a consciência individual, transformada em absoluta.

Esse pensamento penetrou na Igreja desde o concílio Vaticano II: para não incomodar as consciências, evita-se fazer referência à verdade. De modo que o cristianismo se reduz cada vez mais a um humanitarismo vago, que se contenta em pregar uma consolação que podemos encontrar em outro lugar, sem que seja necessário se dirigir à Igreja. Esse humanitarismo sentimental se manifesta no modo de apresentar Jesus Cristo: ele, que se mostrou exigente com os pecadores, se transforma em um simpático mestre liberal, o camarada de todos, que parece não ter nenhuma pretensão em transformar nossas vidas e desenraizar o pecado delas. É um Jesus que não julga e garante o paraíso a todos.

UMA MISERICÓRDIA SEM ARREPENDIMENTO

Na pregação atual da Igreja, a ideia de misericórdia é separada daquela de conversão e arrependimento. O Papa Francisco não fala do julgamento divino, e não perde uma oportunidade para desvalorizar a lei divina, como se ela fosse apenas uma preocupação de fariseus. Isso é visto em numerosas de suas declarações ou intervenções.

Um documento típico é a exortação sobre a família Amoris lætitia, publicada em 2016. Francisco oferece aí a possibilidade aos cristãos de decidirem questões de moralidade no casamento casuisticamente, de acordo com sua consciência pessoal. A orientação necessária e clara dada pela lei de Deus é silenciada.

O documento está impregnado da ideia de que existiria um direito do homem a ser perdoado, sem que seja necessário se converter, e um dever de Deus em perdoar. Como se se pudesse imaginar tal direito e tal dever! No lugar de um Deus autenticamente misericordioso que perdoa aqueles que se arrependem, coloca-se um Deus compreensivo que desculpa e justifica sempre. Um Deus que não é o verdadeiro Deus. Ora, como diz o jornalista italiano Aldo Maria Valli, “Deus, o Deus da Bíblia, é certamente paciente, mas não negligente. Ele é certamente clemente, mas não permissivo. Ele é certamente atencioso, mas não complacente. Em uma palavra, ele é pai no sentido mais completo e mais autêntico do termo2”.

A Bíblia poderia se resumir a um apelo ao arrependimento e a uma promessa de perdão, não podendo ser separado um do outro. É ainda verdade no Novo Testamento. Uma das missões principais dadas por Jesus à Igreja é de chamar os pecadores ao arrependimento: “Que em seu nome seja proclamada a todas as nações o arrependimento em vista da remissão dos pecados” (Lc 24, 47).

Nosso Senhor deu aos seus apóstolos a autoridade de absolver os pecados, mas não de perdoá-los. Um padre não pode redefinir as leis que Deus estabeleceu. Ele não pode modificar o Decálogo. E, se pode dar a absolvição por um pecado passado, ele não pode, certamente, dar a permissão para que o pecado continue.

A verdadeira misericórdia é exercida em face do pecador, encorajando-o e ajudando-o a sair de seu pecado. Ao contrário, pela falsa misericórdia, os pecadores são assegurados e confirmados em sua situação de pecado. No lugar de buscar levá-los a Deus, essa pretensa misericórdia pode conduzi-los à condenação eterna. Ela é uma grave falta de caridade para com as almas extraviadas.

A misericórdia existe porque o pecado existe. A verdadeira misericórdia supõe a justiça, e requer uma consciência clara da profundidade e da gravidade do pecado. Considerando a misericórdia divina independentemente da verdade e da justiça, ao despojá-la da dimensão do julgamento, ao negar, praticamente, a culpabilidade, se mitiga o perdão divino, desvalorizam-no. Deus não nos livra mais do pecado. Sua onipotência e seu amor infinito não crescem com isso, bem ao contrário.

A PROTEÇÃO DO BEM COMUM

Em nome da misericórdia, seria preciso autorizar todos os comportamentos, evitar qualquer marca de “discriminação”, ignorar os insultos flagrantes contra a honra de Deus, calar os direitos da verdade e da Igreja. Porém, a discriminação não vem de uma pretendida falta de caridade. A verdade é que condenar o pecado público é precisamente uma misericórdia, visto que ele ameaça atingir outras almas do rebanho. É dever da Igreja denunciar o mal para proteger os demais fiéis. É necessário diferenciar o bem do mal, a fim de preservar o bem comum da virtude contra o mau exemplo do vício.

UMA NOVA MORAL PARA AGRADAR AO MUNDO

A ambiguidade e o relativismo não somente entraram na Igreja, mas se travestiram de magistério. A moral católica é agora caduca e substituída por sofismas que a minam, chegando até a transformar os ensinamentos morais da Igreja em seu oposto. Não querem mais falar que há coisas que conduzem a Nosso Senhor, e outras que nos desviam dele e de seu amor. O pecado não é sequer mais chamado assim, a lei divina é dobrada à pretensa autonomia do homem.

Não é mais o pecador que deve se arrepender e se converter, mas é a Igreja que deve se converter ao reconhecimento “misericordioso” daqueles que manifestam não querer seguir seus ensinamentos, nem, portanto, aqueles de Deus. Ela não deve mais se impôr, ela deve se limitar a “escutar”, “compreender”, “acompanhar”, indo, assim, de tolerâncias em pusilanimidades, para se adaptar ao pecado do mundo.

A verdadeira misericórdia é o contrário deste relativismo, do qual se pode dizer que é uma profanação da misericórdia. O verdadeiro misericordioso vê, por exemplo, a vida marital fora do casamento como uma ofensa a Deus, a destruição do casamento cristão, a morte das almas, uma revolução social. E, ele chora por isso. Atualmente, a lei moral deve ser adaptada aos costumes presentes, aqueles dos divorciados “recasados”, ou daqueles que vivem uniões antinaturais.

A Igreja conciliar engana os homens quando ela disfarça como misericórdia a aceitação do vício e do pecado. A falsa misericórdia se adorna de belos sentimentos, de solicitude pastoral. Mas ela menospreza o ideal e apresenta um cristianismo sem exigência de renovação moral. No fundo, a Igreja renuncia a cristianizar os costumes. Os homens são agora considerados como incapazes de respeitar sequer a lei natural, que é abolida: não resta mais nada.

Os homens da Igreja encontraram aí um meio de se alinhar às injunções do mundo moderno, inimigo de Deus, e de ser aplaudido por ele, fingindo conservar uma justificação cristã à sua nova moral. Mas isso provoca um imenso escândalo nas almas.

Pe. Hervé Gresland, FSSPX

  1. Iota unum, p. 74.
  2. Interview à Radio Spada le 27 février 2021.