“Todos iremos para o céu, quer sejamos ladrões, assassinos, mentirosos, etc.” Tal conceito de santidade ou santificação é um verdadeiro afronta a Deus. É querer fazer de Deus cúmplice das injustiças.
Fonte: La Porte Latine – Tradução: Dominus Est
De um lado, os idealistas respondem afirmativamente. Para eles – quer dizer, infelizmente para um bom número de nossos contemporâneos – a ideia (o conceito) prevalece sobre a realidade (o fato, a verdade). É necessário, portanto, submeter a realidade à ideia concebida ou preconcebida. Do outro lado, os realistas respondem negativamente. Isso, dizem eles, é uma questão de simples bom senso, a realidade tem uma preeminência sobre a ideia, que dela deriva sua origem. O que devemos pensar sobre isso? Qual é a consequência em nossa vida espiritual?
O homem inteligente
O homem não nasce com suas idéias/conceitos infusos. Ao nascer, seu espírito é virginal, tabula rasa (literalmente: uma folha de papel em branco). No decorrer de sua vida, seu espírito será marcado, moldado, “instruído” (no sentido de uma “impressão sensível”) apenas pela experiência. Graças ao seu poder cognitivo, o homem compreende a natureza das realidades que o cercam: seja pela abstração, seja pelo raciocínio (julgamento), ou finalmente pela simples adesão da inteligência.
A inteligência humana compreende a natureza das coisas através de uma operação que lhe é própria, a abstração. Ela desenvolve, em seguida, um conceito, uma ideia da realidade (coisa) considerada. Por ideia ou conceito nos referimos à realidade (a coisa) como é conhecida pela inteligência. A inteligência, portanto, capta as realidades externas por meio de conceitos ou idéias. Também pode passar de uma ideia para outra, graças ao raciocínio. A ideia tem sua origem na realidade, na experiência. A verdadeira ideia é aquela que está de acordo com a natureza da coisa. É por esta razão que a verdade é definida, por Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, como sendo a adequação da inteligência à realidade, isto é, a conformidade do conceito, da ideia à realidade, à natureza das coisas. Para ser verdadeira ou objetiva, a inteligência humana deve estar submissa à realidade e não o contrário: humildade, essa é verdade!
A imaginação, esta faculdade da mente humana, também pode contribuir para o desenvolvimento de conceitos, a partir de outros conceitos: muitas vezes as ideias deste tipo ignoram a realidade. O homem pode viver em uma espécie de sonho, através do jogo de sua imaginação.
A inteligência também tem suas fraquezas, seus limites. Ela pode interpretar mal as coisas e então desenvolver uma ideia (um conceito) inadequado à realidade: eis o erro. Por exemplo, a certa distância, Jean vê um ser alto e bastante robusto. Ele pensa que é um urso. Então, ele percebe que é Pierre, seu vizinho: o erro é humano! As paixões também podem entrar em jogo, daí a necessidade da inteligência voltar frequentemente à realidade, para realizar uma espécie de “atualização” de conformidade com a realidade.
A recusa da realidade
Outra dificuldade também pode surgir quando a inteligência recusa qualquer submissão à realidade. Como isso é possível? Quando se trata de má vontade ou teimosia! Podemos forjar nossa própria ideia desenvolvida seja pela ajuda da imaginação, ou pela influência de fortes paixões (pressa, raiva, ciúme, orgulho, etc.), ou por uma má compreensão da realidade (o caso de Pierre e o urso) e se ater a ela, embora a realidade seja algo diferente da ideia concebida, que é falsa. É a recusa da realidade: o erro é certamente humano, mas apegar-se a ele é diabólico! Este é o efeito próprio do orgulho: querer submeter a realidade à sua própria ideia! Esta é a preocupação de certos idealistas, cartesianos … que querem submeter a realidade às suas ideias desenvolvidas na fábrica da “deusa” razão, ou “esconder” a realidade em uma espécie de “caixa” ou “gaiola”. Podemos reconhecê-los pelo fato de nunca se questionarem: pensam estar sempre certos sobre tudo, têm a impressão de serem “perseguidos” pela realidade e só confiam no seu próprio julgamento que, a seus olhos, é infalível. Estas pessoas vivem fora da realidade, que é complexa, estão confinadas no mundo das ideias onde a vida é mais simples, mais bela… As consequências dos seus erros muitas vezes são desastrosas, tanto na ordem política e social como na esfera religiosa.
A história nos apresenta alguns exemplos tristes e famosos. Lutero, o pai do protestantismo, formou suas próprias ideias sobre religião e os meios de santificação. Ele caiu em heresia, em cisma. Por quê? Ele considerou sua ideia muito superior à realidade, no plano providencial de salvação. Ele se desviou do único caminho da salvação, da única verdade e da única fonte de vida: Nosso Senhor Jesus Cristo. Que catástrofe social e religiosa! Este também foi o caso de Ário, o pai do arianismo, que negou a divindade de Jesus Cristo, tendo sua própria ideia, irreal, de Cristo.
Foi o que aconteceu também com o jansenismo, que colocou a santidade em certas práticas ou regras de vida muito austeras, em detrimento de toda a caridade. Era uma ideia “original” de santidade, mas que nada tinha a ver com a realidade sobrenatural da salvação das almas, da verdadeira santidade, àquela que o Evangelho nos convida e que a Igreja nos ensina. A verdadeira santidade consiste essencialmente na união com Deus pela fé e graça. E é por meio dos sete sacramentos que nasce, aumenta e se encontra a graça santificante, que eleva, santifica e cura as nossas almas. Só a caridade dá valor sobrenatural às nossas boas ações. A união com Deus aqui embaixo garante nossa união com Deus na glória. Portanto, não é a multiplicidade de nossas obras nem sua dificuldade que nos torna essencialmente agradáveis a Deus, mas sim a caridade que anima e dita nossas boas ações; é ela que nos torna santos e que nos faz merecer o céu. Esta é a realidade da salvação de nossas almas. Certas espiritualidades, infelizmente, ainda hoje permanecem marcadas com este espírito jansenista e dão origem, mesmo em nossas fileiras, a tristes “santos” que não são nada além de tristes santos.
Colocar a santidade onde ela deve estar
Hoje, uma nova ideia de santidade surgiu. Deus é tão bom, tão misericordioso, tão paternal, dizem alguns, que perdoa tudo, que tolera todas as coisas: a noção de mal moral ou pecado é apagada da consciência. Deixamos o caminho livre aos nossos vícios, às nossas más inclinações: “Iremos todos para o céu, quer sejamos ladrões, assassinos, mentirosos, etc.” Tal ideia de santidade ou santificação é um verdadeiro afronta a Deus. É querer fazer de Deus cúmplice das injustiças. A própria noção da misericórdia divina implica em contrição, retorno a Deus, conversão, arrependimento, reparação. A santidade consiste em conformar-se, todos os dias, com repetidos esforços, à vontade de Deus, da qual o Decálogo é a expressão e a lei da caridade, a síntese. Amar a Deus, realmente, é fazer Sua vontade, submeter-se à ordem que Ele estabeleceu: “Se me amas“, diz Jesus, “guarda meus mandamentos” (Jo 14,21).
Que conseqüência podemos tirar disso para nossa vida espiritual? A vontade de Deus, diz-nos São Paulo, é que vos santifiqueis (1 Tes 4, 3). A santificação das nossas almas é principalmente obra de Deus, do Espírito Santo, e Deus nos honra, pedindo-nos para cooperar: “Deus que te criou sem ti, diz Santo Agostinho, não te salvará sem ti”. Devemos, portanto, ter participação nesta obra sobrenatural de salvação de nossas almas. Somos santificados, por Deus, por meio da graça santificante, das virtudes teológicas e morais. Deus nos convida, todos os dias, a nos aproximarmos dos sacramentos, verdadeiros canais da graça santificante, a cumprir fiel e corajosamente nossas obrigações de nosso estado de vida (deveres de Estado), a praticar, em espírito de oração e de sacrifício, a caridade para com Deus, a caridade para com o próximo, pois a caridade é o vínculo da perfeição (Col 3,14) e no último dia, Deus nos julgará segundo nosso amor ao próximo. “Pois tive fome e destes-me de comer; tive sede e destes-me de beber; era peregrino e recolhestes-me…” (Mt 25,35).
Finalmente, tenhamos cuidado para não colocar santidade onde ela não está. Que a ideia que temos da santidade esteja em conformidade com a realidade divina revelada por Nosso Senhor, porque não é o que os homens pensam de nós que dá nosso verdadeiro valor, mas o que Deus conhece de nós, aquele que só busca o coração e a mente dos homens. A realidade é muito superior à ideia, por isso conformemos a nossa vida, cada vez mais profundamente, à vontade divina, num espírito de simplicidade, de confiança na Providência: “A santidade não está nesta ou naquela prática, mas consiste em uma disposição do coração que nos torna humildes e pequenos nos braços de Deus, conscientes da nossa fraqueza e confiantes, até à audácia, em sua bondade de Pai ”(Santa Teresinha do Menino Jesus, Últimos coloquios).
Pe. Prudente Balou-Yalou
Retirado do Boletim Le Petit-Eudiste n ° 219
Ilustração: Michel Polnareff, cantor de “On ira tous au paradis” (Iremos todos para o céu), 1972.