Os protestantes negam, e esta é sua heresia nessa matéria, que a Missa constitui um sacrifício propiciatório. Por conseguinte, é da maior importância verificar se a Institutio generalis enfatiza suficientemente a noção de propiciação.
Fonte: Courrier de Rome n ° 645 – Tradução: Dominus Est
Segundo os ensinamentos do Concílio de Trento (1), a Missa deve ser definida:
- em sua causa final segundo os quatro fins de qualquer ato religioso: louvor ou adoração; ação de graças; propiciação ou valor satisfatório; impetração ou petição.
- em sua causa eficiente segundo o ministro que age “in persona Christi”, que é o sacerdote que recebeu a consagração do sacramento da Ordem.
- em sua essência como sacrifício, isto é, como oferta da imolação incruenta de Cristo realmente presente:
– a causa material é a presença real de Cristo, resultante da dupla transubstanciação;
– a causa formal é a oferta de uma imolação.
2 – Conforme já explicamos(2), esta definição segundo as quatro causas não é negada diretamente pelo Novus Ordo Missae de Paulo VI. É negado indiretamente, através de repetidas omissões que dão lugar a uma mudança de eixo. Por esta razão, a expressão que designa adequadamente essa negação específica é a de um “distanciamento”. Não devemos esquecer que a liturgia, a Missa, é antes de mais nada uma obra de arte, que deve ser julgada e apreciada de acordo com a sua conformidade ou não ao espírito do autor da obra. E para julgar a obra, há de se julgar primeiro uma prática. Podemos sempre alterar as definições, mas não alteramos a prática, a ação (o Ofertório, etc.). É a obra tal como é, mesmo se a definição é alterada, é a obra que deve ser julgada. Ora, essa obra é deficiente, como mostra o Breve Exame Crítico dos Cardeais Ottaviani e Bacci, porque oblitera a essência do que a obra supostamente deveria alcançar: a adesão a Jesus Cristo Salvador e Redentor. Como todas as outras elaborações escritas post-eventum (o Novo Catecismo de 1992 e o Compêndio de 2005, as atualizações de João Paulo II com a Encíclica Ecclesia de eucharistia de 2003 ou de Bento XVI com a Exortação Sacramentum caritatis de 2007), o Preâmbulo da Institutio generalis revisada em 1970 e depois em 2002 foi escrita após a elaboração da Missa, para justificar a Nova Missa, mas ela própria continua a ser uma obra deficiente.
3 – Examinemos aqui o ponto de vista da causa final: o Novus Ordo corresponde à definição católica da Missa, no sentido de que esta definição deve incluir a ideia de um sacrifício que é propiciatório no seu fim? Em outras palavras, o Novus Ordo define a Missa como um “sacrifício”, como entendido pelo Concílio de Trento, do ponto de vista de seu fim?
4 – É certo que a Institutio generalis parece afirmar várias vezes que a Missa é um sacrifício. No entanto, “as alusões à noção de sacrifício feitas pela Institutio são todas insuficientes para distinguir a concepção católica das noções protestantes da Ceia do Senhor“(3). Com efeito, a palavra “sacrifício” deve ser entendida principalmente em função de sua causa final, um aspecto que foi objeto de definição pelo Concílio de Trento.
5 – Deste ponto de vista da causa final, de fato, católicos e protestantes admitem que a Missa é um sacrifício de louvor e de ação de graças. Mas os protestantes negam (e esta é sua heresia nessa matéria) que a Missa constitui um sacrifício propiciatório. É, portanto, da maior importância verificar se a Institutio generalis enfatiza suficientemente a noção de propiciação ou se, pelo contrário, apenas fala de sacrifício e ignora o caráter propiciatório deste último. “Tudo isto é” da maior importância, uma vez que o Concílio de Trento definiu a Missa como “verdadeiro sacrifício propiciatório”(4) e que emitiu esta anátema:
“Se alguém disser que o sacrifício da Missa é apenas um sacrifício de louvor e ação de graças, ou uma simples comemoração do sacrifício realizado na cruz, mas não é um sacrifício propiciatório […] que seja anátema”(5)”(6);
6 – Ora, a ideia de um sacrifício ou de uma satisfação aparece apenas uma vez na Instiutio generalis, no n.º 2 do Preâmbulo: “Assim, no novo Missal, a “regra da oração“(lex orandi) da Igreja corresponde à sua constante “regra de fé” (lex credendi). Isso nos adverte que, exceto pela maneira de ofertar que é diferente, há uma identidade entre o sacrifício da cruz e sua renovação sacramental na Missa que Cristo Senhor instituiu na Última Ceia e que ordenou aos seus Apóstolos que fizessem em Sua memória. Consequentemente, a Missa é um sacrifício de louvor, ação de graças, propiciaçãoe satisfação”.
7 – É a única vez que o texto da Institutio generalis evoca esta ideia de propiciação e satisfação; Enquanto o mesmo texto utiliza repetidamente expressões relativas aos ágapes eucarísticos, por exemplo: “alimento espiritual“, “ceia”, “mesa do Senhor”, “festa” ou Convivium , “refeição”, etc.(7). Essas expressões tendem a obscurecer o caráter sacrificial e propiciatório da Missa. É, sem dúvida, verdade que durante a Missa Cristo se dá como alimento, mas este aspecto deve ser subordinado ao aspecto sacrificial e propiciatório, especialmente porque os protestantes tentam reduzir o sacrifício eucarístico a uma refeição de ação de graças. Enquanto a Missa opera a remissão dos pecados, tanto pelos vivos quanto pelos mortos, a Institutio generalis do Novus Ordo enfatiza o alimento e santificação dos membros presentes da assembleia. De fato, Cristo instituiu o Sacramento durante a Última Ceia e depois se colocou no estado de vítima para nos unir a esse seu estado [de vítima]; eis porque esta imolação precede a manducação e contém totalmente o valor redentor que provém do Sacrifício cruento. A prova disso é que se pode assistir à Missa sem receber a comunhão sacramentalmente.
8 – É certo que nenhuma das outras dez passagens da Institutio generalisem que a palavra “sacrifício” aparece explicitamente destaca esta definição chave de sacrifício, de acordo com a doutrina católica formulada pelo Concílio de Trento. Vejamos um pouco:
– no nº 2: “É portanto da maior importância que a celebração da Missa, isto é, da Ceia do Senhor, seja regulada de forma que os ministros e os fiéis, participando dela de acordo com a sua condição, possam colher plenamente os frutos que Cristo Senhor quis que obtivéssemos instituindo o sacrifício Eucarístico do seu Corpo e do seu Sangue, e confiando-o, como memorial da sua paixão e sua ressurreição, à Igreja, sua amada Esposa”. A ideia de sacrifício está aqui dividida entre a ideia de Ceia e a do memorial; e se trata de “sacrifício eucarístico” ao invés de “sacrifício propiciatório”.
– no n° 48: “Na Última Ceia, Cristo instituiu o sacrifício e o banquete pascal, pelo qual o sacrifício da cruz se faz sempre presente na Igreja quando o sacerdote, representando Cristo Senhor, faz o mesmo que o próprio Senhor fez e confiou aos seus discípulos para fazê-lo em sua memória, instituindo assim o sacrifício e o banquete pascal“. O “sacrifício” está associado ao “banquete pascal”: então, sacrifício ou banquete?…
– no n° 54: “É agora que começa o que é o centro e o ápice de toda a celebração: a oração eucarística, oração de ação de graças e de consagração. O sacerdote convida o povo a elevar seus corações ao Senhor na oração e na ação de graças e junta-se a eles na oração que dirige a Deus Pai através de Jesus Cristo, em nome de toda a comunidade. O significado desta oração é que toda a assembleia de fiéis se une a Cristo na confissão das grandes obras de Deus e na oferta do sacrifício.“ Deve-se notar a este respeito que a oferta do sacrifício não é, enquanto tal, o sacrifício. A Missa é verdadeira e propriamente um sacrifício porque é a imolação da vítima que é oferecida; não é meramente a oferta do sacrifício cruento já realizado na Cruz; é um sacrifício incruento.
– no n° 56: “É muito desejável que os fiéis recebam o Corpo de Cristo com as hóstias consagradas nesta mesma Missa e, nos casos previstos, que participem no Cálice, para que também através dos seus sinais a comunhão possa aparecer melhor quanto a participação no Sacrifício atualmente celebrado”.
– no n ° 60: “Mesmo que seja um simples sacerdote a celebrar, aquele que, na sociedade dos fiéis, possui o poder de ordem para oferecer o sacrifício em lugar de Cristo (Decreto sobre o ministério dos sacerdotes, art. 2; Constituição sobre a Igreja, art. 28), está à frente da assembleia, preside a sua oração, anuncia-lhe a mensagem de salvação, associa-se ao povo na oferta do sacrifício a Deus Pai por Cristo, no Espírito Santo, dá aos seus irmãos o pão da vida eterna e participa com eles”.
– no nº 62: “Os fiéis constituirão um só corpo, quer ouvindo a palavra de Deus, quer pela sua participação na oração e no canto, quer sobretudo pela oblação comum do sacrifício e pela participação comum à mesa do Senhor”.
– no nº 153: “A concelebração que felizmente manifesta a unidade do sacerdócio e do sacrifício, assim como a unidade de todo o povo cristão …”.
– no n ° 259: “O altar, onde o sacrifício da cruz se faz presente sob os sinais sacramentais, é também a mesa do Senhor, à qual, na Missa, o povo de Deus é convidado a participar; é também o centro de ação de graças que é plenamente realizada na Eucaristia”.
– n ° 335: “A Igreja oferece o sacrifício eucarístico da Páscoa de Cristo pelos defuntos para que, por causa da comunhão que une todos os membros de Cristo, o que obtém ajuda espiritual para uns traga para outros a consolação da esperança”.
– no n ° 339: “Encorajaremos os fiéis, especialmente os membros da família do defunto, a participar, pela comunhão, do sacrifício eucarístico oferecido pelo defunto”.
9 – É evidente que, no texto da Institutio generalis, as afirmações recorrentes em que a palavra “sacrifício” assume um significado vago ou insuficiente prevalecem sobre a única afirmação do Preâmbulo, que contém a expressão excessivamente discreta de “sacrifício propiciatório” ou “satisfação”.
10 – Se assim fosse, no próprio texto da Santa Missa de Paulo VI e as orações do novo missal não poriam em evidência o ponto assinalado: a Missa é um sacrifício propiciatório na sua causa final? Aqui, novamente, devemos admitir que não. E quando dizemos “não“, não queremos dizer que, de um ponto de vista puramente literal e quantitativo, nenhum dos diferentes textos da nova liturgia jamais mencione este ponto. Porque, de fato, encontramos referências disso. Queremos dizer que o rito da nova liturgia, tomado pelo que é, isto é, como um sinal, já não afirma suficientemente o ponto assinalado na doutrina católica. Esta insuficiência revela-se, em primeiro lugar, através do número demasiado reduzido de ocorrências em que esta doutrina é afirmada e, em segundo lugar, através das incertas e imprecisas expressões que supostamente a afirmam.
11 – Onde a nova liturgia do missal de Paulo VI fala de “sacrifício”, podemos observar primeiramente que as orações seguintes tratam apenas de um sacrifício de louvor ou de ação de graças, não de propiciação:
“Orai, irmãos, para que o meu e o vosso sacrifício seja aceito por Deus Pai Todo-Poderoso. Receba, Senhor, por tuas mãos este sacrifício para louvor e glória do seu nome, para o nosso bem e de toda a Igreja” (nova tradução do Orate Fratres).
“Eles vos oferecem conosco este sacrifício de louvor por si e por todos os seus, e elevam a vós as suas preces para alcançar o perdão de suas faltas, a segurança em suas vidas e a salvação que esperam.” (Oração Eucarística n ° 1).
“Celebrando agora, ó Pai, a memória do vosso Filho, da sua paixão que nos salva, da sua gloriosa ressurreição e da sua ascensão ao céu; e enquanto esperamos a sua nova vinda, nós vos oferecemos em ação de graças este sacrifício de vida e santidade.” (Oração Eucarística n ° 3)
12 – Em segundo lugar, em duas outras passagens fala-se de “sacrifício” de uma forma insuficientemente definida, pois fala do fruto desse sacrifício, que é o nascimento para a vida e recepção do alimento, ou libertação da morte, sem que essas duas ideias estejam ligadas à ideia de uma propiciação:
“Transbordando de alegria pascal, nós vos oferecemos, ó Deus, o sacrifício pelo qual a Vossa Igreja maravilhosamente renasce e se alimenta.” (Orações sobre as oferendas no dia de Páscoa).
“Recebei benignamente, Senhor, esta oblação em favor de todos os vossos fiéis que adormeceram em Cristo e fazei que, libertos dos laços da morte, por este sacrifício de salvação mereçam entrar na vida eterna.” (Oração sobre as oferendas de 2 de novembro)
13 – Em terceiro lugar, em outras três passagens são mencionadas a reconciliação e salvação, mas a ideia de reconciliação não está explicitamente associada à ideia de uma propiciação que consiste em salvar e reconciliar o homem culpado que ofendeu seu Deus:
“Nós vos oferecemos o seu Corpo e o seu Sangue, o sacrifício que vos é digno e que salva o mundo” (Oração Eucarística n ° 4).
“Nós vos oferecemos, ó Deus, este sacrifício de reconciliação e pedimos, pela intercessão da Virgem Mãe de Deus e do bem-aventurado São José, que firmeis nossas famílias na vossa graça, conservando-as na vossa paz.” (Oração sobre as ofertas, Festa da Sagrada Família, ano C).
14 – Em quarto lugar, finalmente, duas outras passagens certamente incluem a ideia de propiciação, através da ideia de remover o pecado. Mas, por um lado, em termos de sinal, essas duas ocorrências são insuficientes para significar adequadamente a definição católica de sacrifício: de fato, a segunda passagem significa apenas uma vez por ano, na festa de 14 de setembro; quanto a primeira, aparece em uma oração alternativa, em competição com outras duas. Por outro lado, não se afirma a identificação entre a oferta da Missa e a da Cruz, de modo que se pudesse compreender que a Missa, longe de ser a renovação incruenta da satisfação cruenta da cruz, seria a simples oferta presente de uma satisfação passada para efeitos de louvor e ação de graças. Neste sentido, o “sacrifício” da Missa não é a satisfação propiciatória de Cristo, mas a oferta e memorial da mesma.
“Que este sacrifício da nossa reconciliação estenda a paz e a salvação ao mundo inteiro.” (Oração Eucarística n ° 3).
“Purifique-nos de todas as faltas, ó Deus, este santo sacrifício que, oferecido no altar da cruz, tirou o pecado do mundo.” (Oração sobre as ofertas pela festa da Exaltação da Santa Cruz)
15 – A ideia de sacrifício é, portanto, seriamente diminuída no novo rito de Paulo VI e é um dos aspectos mais prejudiciais deste afastamento da definição católica da Missa, apontado pelo Breve Exame Crítico.
Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX
Notas:
- Concílio de Trento, Sessão XXII de 17 de setembro de 1562 (DS 1738-1759)
- Confira o artigo “O Novo Ordo de Paulo VI é mau em si mesmo?”
- Arnaldo Xavier Da Silveira, La Nouvelle Messe de Paul VI, qu’en penser? Editions de Chiré, Diffusion de la Pensée Française, 1975, p. 24.
- DS 1743.
- DS 1753.
- Arnaldo Xavier Da Silveira, La Nouvelle Messe de Paul VI, qu’en penser? Editions de Chiré, Diffusion de la Pensée Française, 1975, p. 24-25.
- Cf. os nºs 2, 7, 8, 33, 34, 41, 49, 55, 56, 62, 240, 241, 259, 268, 281, 283, 316.