Alguns cirurgiões apressam-se em remover órgãos vitais de um doente em coma, enquanto a morte deste não é certa.
Fonte: Courrier de Rome n° 648 – Tradução: Dominus Est
Há algumas semanas, o Parlamento Federal Suíço aprovou um projeto de lei que visa estabelecer o princípio do consentimento presumido para doação de órgãos. O principal problema com esta lei diz respeito à doação de órgãos necessários à vida. Para transplantar estes órgãos, é necessário, com efeito, que estes estejam vivos e, portanto, o doador deve estar vivo no momento de serem removidos. Uma comissão foi formada para lutar contra esse projeto de lei e foi lançado também um referendo que deve recolher 50.000 assinaturas até o dia 20 de janeiro. As reflexões que se seguem podem contribuir para legitimar esta iniciativa, aos olhos da justa razão.
I – PARECE QUE SIM
1. Os argumentos a favor da morte encefálica podem ser reduzidos a três tipos.
2. Argumento da eficiência: a falência cerebral irreversível significa a morte, por isso ela faz com que seja possível o transplante de órgãos. Todo o objetivo do argumento consiste em encurralar o oponente em um dilema. Ou a falência cerebral irreversível é a morte ou não é.
No entanto, se não for, as consequências são inaceitáveis:
a) o transplante de órgãos torna-se impossível (com tudo o que essa impossibilidade receberá de aparentemente odioso, injusto, revoltante, tanto emocional quanto intelectualmente);
b) a perda radical das funções vitais, tal como observada pelo mais rigoroso exame médico, é reconsiderada, uma vez que se considera ainda vivo um sujeito cujo princípio vital está obliterado;
O que significa que ela é.
3. Argumento da cientificidade: retoma a alínea “b” do argumento anterior para apresentá-lo numa perspectiva aparentemente neutra e desinteressada de qualquer consequência prática. A morte é o que o médico observa cientificamente com base em elementos suficientemente conclusivos. Ora, a falência cerebral irreversível é o elemento que, tal como cientificamente observado pelo médico, representa o elemento suficientemente conclusivo da morte. Portanto, a observação médica da falência cerebral irreversível é a observação da morte.
4. Argumento legal/jurídico: este é o argumento da autoridade. A lei e a política decidem definir a morte como falência cerebral irreversível(1). O Vaticano e as atuais autoridades religiosas decidiram finalmente validar esta definição(2).
II – PARECE QUE NÃO
1. Aqueles que argumentam contra a morte cerebral objetam(3):
- várias observações que vão no sentido contrário, ou seja, mostrando que o princípio da vida ainda permanece operante ou que a vida ainda permanece, mesmo que apenas por algum tempo, mesmo que o cérebro esteja em estado de falência irreversível.
- casos de suposta morte cerebral em que o sujeito sobreviveu: Martin Banach e Luca Sarra, casos citados no estudo do Pe. Rottoli.
III – PRINCÍPIOS DE RESPOSTA
1) Lembrete de algumas verdades básicas.
1. Há uma distinção fundamental entre:
- uma questão de princípio ou definição (tal como: “o que é a morte?”)
- uma questão de fato ou observação (tal como: “a morte ocorreu” ou “este indivíduo está morto”?)
2. Há uma distinção igualmente fundamental entre:
- A moral (que se baseia nos dados da filosofia e da fé): cabe a ela – e somente a ela – dar a resposta final à questão da definição e dizer o que é a morte.
- A medicina (que se baseia em dados da experiência e da observação): cabe à medicina – e somente a ela – dizer se a morte ocorreu.
- O direito e a lei: não têm resposta a dar às duas questões precedentes; cabe a eles – e somente a eles – garantir que as respostas dadas pela Moral e pela Medicina sejam respeitadas na sociedade.
3. A resposta à questão de fato pressupõe a resposta à questão da definição e depende dela: com efeito, para se poder dizer se “a morte” ocorreu é preciso já saber o que é “a morte” e quais são os sinais necessários e suficientes, tomados não como diretamente observáveis, mas em sua definição universal. Consequentemente, se a medicina é distinta da moral, não está separada dela; pelo contrário, depende dela e está, de alguma forma, sujeita a ela, a fim de receber dela:
a) a definição de morte e,
b) a definição dos sinais necessários e suficientes da morte.
4. Essas distinções exigem, portanto, uma hierarquia entre as diferentes disciplinas complementares e aqui encontramos a ideia de que a filosofia “julga” as ciências. Nenhuma conclusão científica pode ir contra os princípios do senso comum e da sã razão.
2) Definição de morte e observação da morte.
2.1) Definição de morte (questão de princípio)
1. A morte define-se em função de vida, da qual é o oposto.
2. Diz-se que a vida é propriamente análoga a:
– Qualquer movimento (ou quaisquer operações) autônomo, ou seja, cujo princípio próximo seja intrínseco e próprio;
– O estado de união de um corpo vivo e de seu princípio próximo de vida, que é sua alma;
3. A morte é a separação da alma (princípio próximo da vida ao corpo) do corpo. A morte é, portanto, a privação da vida. Esta é a privação absolutamente radical de toda a vida: no homem, a alma é o princípio da vida inteligente, da vida sensível e da vida neurovegetativa. A morte é a privação deste grau de vida absolutamente primário e radical, assumido por todos os outros, que é a vida neurovegetativa.
4. Não estão, portanto, mortos: os seres humanos privados de vida inteligente (aqueles que não têm o uso da razão ou os amentes de Santo Tomás); seres humanos privados não apenas de vida inteligente, mas também de vida sensível (aqueles que não têm o uso de seus sentidos, tais como aqueles que estão dormindo ou em coma). Estão mortos aqueles que não têm mais capacidade de realizar as operações da vida neurovegetativa: respirar; alimentar, digerir e rejeitar os excedentes alimentares na forma de secreções ou excreções.
5. Finalmente, a morte, entendida como esta separação da alma e do corpo é um fato consumado, ao final de um movimento progressivo. Por conseguinte, é importante fazer a distinção entre duas definições ou dois significados possíveis para a mesma palavra “morte“.
Santo Tomás faz a distinção na Summa Theologica (Parte III, questão 50, artigo 6) em relação ao valor salvífico da morte de Cristo: “De dois modos podemos considerar a morte de Cristo: no seu devir e na sua realização. – Assim, dizemos que a morte de alguém está no seu devir, quando tende para ela, por algum sofrimento natural ou violento. E neste sentido, o mesmo é falar da morte e da Paixão de Cristo. […] Mas a morte de Cristo é considerada como realizada, pelo fato da separação entre o seu corpo e a sua alma. E tal é o sentido em que agora tratamos dessa morte.“
6. No sentido estrito e próprio, a morte é o estado de separação completa da alma e do corpo, e não apenas o movimento que gradualmente a ela conduz. Durante o movimento, a alma ainda permanece unida ao corpo, cada vez menos certamente, mas ainda de alguma forma e a vida permanece por tudo isso. É somente no estado de separação que a vida já não permanece mais.
7. Os diferentes aspectos dessa definição são os do senso comum, que a filosofia expressa com mais precisão e que a moral assume e desenvolve, para daí tirar suas consequências. Como já referimos, não cabe ao médico (nem ao jurista) dar essa definição de morte, que é imposta pela experiência da realidade. Cabe apenas ao médico verificar se esta definição é cumprida em determinado caso e tirar as consequências em seu próprio nível.
2.2) Observação da morte (questão de fato).
1. A clara diferença entre esse estado de separação e o movimento que a ele conduz não é evidente, diretamente em si mesma, graças aos processos de investigação disponíveis ao médico. Nenhum médico pode “ver” a alma deixar o corpo de seu paciente e determinar com precisão científica o momento preciso em que o estado de separação completo se verifica.
2. O estado completo de separação da alma e do corpo, que define a morte como tal, só pode ser observado pelo médico indiretamente, por meio de sinais ou sintomas. Estes podem ser de dois tipos:
– Sinais anteriores à separação e que a anunciam: estes são os sinais que acompanham o movimento progressivo que pode levar ao estado de separação completo e estes são os sintomas não da morte, mas do movimento que pode levar a ela. Estes sinais tornam possível dar um prognóstico.
– Sinais simultâneos ou pós-separação: são os sinais que resultam deste estado de separação completa e que o atestam suficientemente: permitem fazer um diagnóstico.
3. O médico, em seu nível de médico, tem a tarefa de confiar neste tipo de sintomas para verificar se a definição de morte – que o filósofo lhe indica – pode ser aplicada ao estado atual de seu paciente. E os sintomas em questão devem ser necessários e suficientes: são os sinais que se decorrem do estado de separação completa, não os que o precedem.
3) Importante consequência posterior.
1. Falamos de “morte cerebral” ou eventualmente de “morte cardíaca”; mas não nos deixemos enganar por estas expressões:
– a interrupção do batimento cardíaco e da circulação sanguínea,
– a interrupção da respiração,
– a interrupção da atividade cerebral…
…não são a morte; são sinais que podem atestar indiretamente o estado de separação da alma do corpo, estado que define a morte.
2. Esses fenômenos observados atestam diretamente que o fato de que o coração, os pulmões ou o cérebro já não exercem mais suas respectivas operações. Eles também podem atestar que esses órgãos se encontram num tal estado de corrupção que não podem mais ser o princípio dessas operações.
3. Mas esses órgãos (coração, pulmões, cérebro) não são a alma; nenhum deles é o princípio primeiro de todas as operações vitais; cada um deles é apenas o princípio segundo, na dependência da alma, de uma ou outra das operações vitais. O princípio primeiro (ou seja, inicial)da vida é a alma. Não é o cérebro (ou seja, um elemento corpóreo, em si mesmo uma parte homogênea do corpo), mas é um princípio não-corpóreo, que designamos sob esse termo alma.
4. Eis o que diz Santo Tomás de Aquino, em sua Summa Theologica, parte I, questão 75, artigo 1:
“Uma parte do corpo pode ser, de algum modo, um princípio vital – o coração, por exemplo – mas não o princípio primeiro. […] Com efeito, todo ser em movimento recebe seu movimento, é verdade; mas, como não se pode voltar ao infinito, é necessário que haja uma causa de movimento que não a receba”.
A alma é, portanto, o princípio primeiro da vida do corpo, no sentido de que é ela que causa o movimento de todo o corpo, do qual ela é a alma, sem ser ela mesma posta em movimento.
5. É inegável que existam interações entre os diferentes princípios secundários da vida, que são os princípios de ordem corporal: os órgãos, os músculos, os nervos – e para os órgãos, interação entre os principais deles: o cérebro, o coração, pulmões. A evolução da medicina levou – e ainda leva – a um reposicionamento da ordem dessas interações. No passado deu-se prioridade ao coração e agora dá-se prioridade ao cérebro. Mas, de qualquer forma, é uma prioridade que se dá ao nível dos princípios secundários e corporais da vida. Só a alma é o primeiro princípio de toda a vida.
6. A morte não é a destruição ou corrupção deste ou daquele órgão (o coração, o cérebro); ela é a separação da alma do corpo, comprovada necessária e suficientemente pela cessação irreversível de todas as operações vitais, tanto no cérebro como no coração e pulmões. Se o cérebro cessou – mesmo irreversivelmente – sua função vital, enquanto o coração ou os pulmões ainda não cessaram – mesmo que por muito pouco tempo – a sua, a alma está “em processo de” separação do corpo, mas ainda não está separado do corpo: o sujeito está morrendo, mas não está morto. Um moribundo – mesmo em estado de morte avançado– ainda não é um cadáver.
4) Resposta à questão suscitada: “A falência cerebral irreversível – ou “morte cerebral” – equivale verdadeira e adequadamente à morte?”
1. Para responder a esta pergunta retornemos às verdades básicas mencionadas acima:
- esta questão é uma questão de fato; não se deve questionar aqui se a definição de morte é “falência cerebral irreversível”, porque isso não faz sentido; deve-se perguntar aqui se a falência irreversível da atividade cerebral é o sinal necessário e suficiente da cessação da vida, isto é, da separação da alma e do corpo.
- para responder a essa pergunta, o médico deve permanecer em estreita dependência da observação da realidade, em cada caso particular.
- Esta observação centrar-se-á em dois pontos:
a. Existe realmente cessação, e sobretudo uma cessação irreversível da atividade cerebral (devemos primeiro verificar a presença do sintoma)?
b. Existe realmente uma cessação irreversível de toda atividade vital, ou seja, existe, paralelamente a essa cessação irreversível da atividade cerebral, uma cessação igualmente irreversível de todas as outras atividades vitais, orgânicas e corporais (atividade cardíaca, respiratória)?
c. Com efeito, somente a cessação completa de toda atividade vital é o sinal necessário e suficiente da cessação efetiva da vida, no estado de separação consumada da alma e do corpo; enquanto a cessação de uma ou outra atividade vital, mas não de todas, atesta apenas uma degradação mais ou menos avançada da vida e um estágio do movimento que tende à separação da alma e do corpo.
d. Em outras palavras, a partir da observação da cessação irreversível da atividade cerebral, pode ser feito um prognóstico de morte, mas ainda não um diagnóstico.
2. No que se refere mais precisamente às objeções e respostas que poderiam ter sido feitas a esta questão, particularmente no meio da Tradição, é importante verificar sempre o que se entende por “morte cerebral”. Na anatomia, é feita uma distinção entre o sistema nervoso central e o sistema nervoso periférico: o primeiro é composto pelo encéfalo e pela medula espinhal, o segundo pelos outros nervos e gânglios. À primeira vista, a classe médica concorda com o fato de que a morte cerebral resulta de lesões irreversíveis sofridas pelo encéfalo. No entanto, uma análise mais detalhada revela divergências entre os médicos. Para alguns, a morte resulta da destruição completa do cérebro – cérebro e tronco encefálico – e se manifesta pelos sinais que o exame médico competente pormenoriza. Para os outros, a morte é a perda definitiva da consciência e da capacidade de respirar espontaneamente, causada apenas pela destruição do tronco cerebral e manifestada pela abolição da consciência e dos reflexos confirmados pelo teste de apneia. É aqui que pertence à sã filosofia colocar as questões fundamentais e verificar a validade desses diferentes pontos de vista anatômicos. Aos olhos da reta razão, o que exatamente significa “morte cerebral”?
a) Pode ser a cessação irreversível das principais atividades cerebrais, mas não todas.
b) Pode ser a cessação de toda a atividade cerebral, mas não irreversível.
c) Finalmente, pode ser a cessação irreversível de toda atividade cerebral.
3. É evidente que apenas a situação mencionada na alínea c) corresponde exatamente a uma “morte”, que poderíamos qualificar como “cerebral”, do ponto de vista de sua ocasião imediata; as situações mencionadas em ambos os pontos a) e b) estão fora de nossa questão. Não há dúvida de que certas lesões cerebrais levam à perda de consciência e capacidades cognitivas. Mas a incapacidade – mesmo definitiva – de exercer certas faculdades da alma devido a um defeito orgânico não equivale à perda da vida. A este respeito, a atividade cardiorrespiratória espontânea e prolongada de recém-nascidos anencefálicos e pacientes em estado vegetativo permanente é esclarecedora. Isso sem falar nas gestações levadas a termo enquanto a mãe está com morte cerebral ou do desenvolvimento prolongado de uma criança cujo cérebro está completamente destruído. Na Suíça (e particularmente no Valais) os critérios aplicados para verificar se estamos perante uma morte cerebral são aqueles que estabelecem rigorosamente que se está na presença da situação c). Na ausência de tal verificação, a presunção é pelo estado de vida e a remoção de órgãos é excluída.
4. A situação mencionada na c) é, muito frequentemente, seguida com bastante rapidez pelo estado de morte completa. Mas nem sempre é assim. E, em todo caso, o período de tempo que decorre entre a cessação irreversível de toda atividade cerebral e a cessação irreversível de toda atividade vital, por menor que seja, ainda não corresponde a um estado de morte completa. Durante esse tempo, por breve que seja, o sujeito está “morrendo” ou em processo de morte e não está morto. Um coração ainda pulsante e vivo só pode ser removido de um sujeito ainda vivo, e de um sujeito em estado de morte completa, pode-se remover apenas um coração inoperante.
5. A situação limítrofe é aquela em que – na situação c) – outras atividades vitais que não as cerebrais são artificialmente prolongadas por meio de uma máquina: o coração, por exemplo, não pode bater por muito tempo se o cérebro não puder mais exercer sua função vital, mas a máquina pode estimulá-lo por mais tempo. É moralmente legítimo interromper esse estímulo artificial e deixar a natureza fazer seu trabalho. Mas é moralmente ilegítimo manter esse estímulo a fim de remover um coração palpitante de um sujeito que, de fato, ainda não está morto.
6. A doutrina da Igreja é muito clara: na dúvida a presunção deve ser sempre pela vida. Pio XII já havia, em seu tempo, abordado o tema dos transplantes de órgãos. Nessa época, proclamou a necessidade da certeza da morte do doador. Ele escreveu de fato:
“Em caso de dúvida insolúvel, pode-se recorrer às presunções de direito e de fato. Em geral, a presunção da permanência da vida deve ser utilizada, porque trata-se de um direito fundamental recebido pelo Criador e do qual é necessário demonstrar que cessou. […] Considerações de ordem geral nos permitem acreditar que a vida continua quando as funções vitais, diferentemente da vida simples de seus órgãos, se manifestam espontaneamente, mesmo com o auxílio de processos artificiais”.
Pio XII, “Discurso ao Doutor Bruno Haid, e a numerosas personalidades das ciências médicas, em resposta a algumas questões capitais sobre a ressuscitação”, 24 de novembro de 1957 (AAS 1957, págs. 1031 e 1033).
7. Para compreender o que Pio XII quer dizer aqui, recordemos que, em termos legais, uma presunção é a provável conjectura de algo incerto (Código de Direito Canônico de 1917, cânon 1825). Ela constitui uma prova indireta, quando há dúvida e a prova direta é impossível, como é o caso aqui da dúvida sobre a morte. Existem dois tipos de presunção. A presunção de direito, ou presunção legal, que se baseiana legislação positiva que decidiu que, em tais circunstâncias, tal fato deve ser considerado verdadeiro e comprovado. Por exemplo, um acusado é presumidamente inocente até ser provada a sua culpa. Presume-se que um casamento é válido até que se prove o contrário. A presunção de fato, ou presunção pessoal, baseia-se em indícios. Por exemplo, o acusado foi visto na cena do crime, fez ameaças violentas à vítima pouco antes do crime, havia comprado armas, etc. Todos esses indícios, se graves e numerosos, permitem a presunção de fato de que o acusado é culpado. Em caso de morte, devem ser tidos em conta dois tipos de presunção. A primeira, de direito, baseia-se na regra moral segundo a qual é imoral correr o risco de matar diretamente uma pessoa inocente. Quando se trata dos direitos de terceiros é preciso agir da forma mais segura possível. Portanto, se um homem está suspeitosamente morto e a remoção de um órgão vital é cogitada, deve-se presumir que ele está vivo. Outras presunções são factuais. Elas baseiam-se no que os médicos veem com mais frequência. Por exemplo, se um homem ainda consegue respirar, mesmo artificialmente, presume-se que ele está vivo. O mesmo vale se o seu coração ainda estiver batendo ou se ainda tiver reflexos neuro-vegetativos.
8. Dito isso, a nova definição de “morte cerebral“, introduzida para evitar as consequências legais e morais da remoção de órgãos vitais dos moribundos antes de sua morte, baseia-se no conceito de que a perda permanente da capacidade de consciência e respiração espontânea deve ser suficiente para diagnosticar a morte de um ser humano, e que isto coincida com a morte do cérebro. Esta assimilação, bem como a pretensão de identificar a morte de uma parte do corpo, por mais nobre que seja, com a morte de toda a pessoa, não são absolutamente demonstradas, são arbitrárias e não encontram qualquer justificação real, científica ou filosófica.
IV – RESPOSTAS AOS ARGUMENTOS A FAVOR OU CONTRA.
1. Ao argumento da eficiência: respondemos que a definição de morte deve ser válida por si mesma e não deve depender das vantagens ou desvantagens subsequentes. Se partirmos do princípio de que “quem quer afogar seu cachorro, acusa-o de raiva”, a definição de raiva rapidamente se torna muito extensa.
2. Pode ser que se a falência cerebral irreversível não for o estado de morte completa:
a) o transplante de órgãos se torne impossível; mas não há nada de odioso, injusto ou revoltante nisso, se tivermos em mente esta verdade do senso comum de que o fim não justifica todos os meios: querer salvar uma vida humana por transplante de órgãos não pode ser feito à custa de um relativização caprichosa da definição de morte, porque isso abriria a porta para todos os excessos.
b) o exame médico mais rigoroso deve limitar-se aos sintomas necessários e suficientes; certamente sim, o médico observa algo por meio de sintomas e o elevado tecnicismo desse exame permanece valioso; mas não cabe ao médico decidir o que é a morte ou confundir o estado de morte com o movimento que a ela conduz, mesmo que inexoravelmente.
3. Ao argumento da cientificidade: respondemos como acima. Isso equivale, em parte, a dizer que não cabe ao médico (mesmo que seja altamente qualificado) dizer tudo e decidir tudo. A arte e a ciência da medicina permanecem subordinadas e reguladas pelos princípios da filosofia e da lei natural. Caso contrário, a arte médica corre o risco de degenerar em puro pragmatismo, que logo será a fornecedora da mais desavergonhada eugenia.
4. Ao argumento legal/jurídico: responde-se que o argumento da autoridade é o mais fraco de todos, se não de valor zero, em questões filosóficas e científicas. A lei e as políticas devem ser reguladas pelas certezas da experiência e da filosofia, que é apenas a explicação intelectual da experiência e do senso comum. Quanto aos atuais representantes da autoridade religiosa, perderam o rumo e se colocaram em contradição, neste ponto como em muitos outros, com as constantes declarações de seus predecessores.
5. Aos argumentos contra a morte encefálica:
- Admite-se que a constatação da morte deve ser baseada em sintomas necessários e suficientes. Evitaremos, assim, tanto uma posição relativista (que ignora os sintomas necessários) quanto outra posição que poderíamos qualificar de “fundamentalista” e que se recusaria a se satisfazer com sintomas que, no entanto, são suficientes. A questão é que os sintomas atestam o estado de morte completa.
- Responde-se que a morte cerebral seriamente diagnosticada, se de fato é uma “morte“, deve ser irreversível; a recuperação de uma vida consciente é uma indicação de que a morte não era uma morte.
V – ANEXO: A OBSTINAÇÃO
1. A Igreja ensina que os cuidados ordinários são moralmente obrigatórios, enquanto o cuidado extraordinário não o são: pode-se recorrer a ele, mas não são obrigados a fazê-lo, moralmente falando.
2. Devemos distinguir aqui entre dois casos bastante diferentes:
– Obstinação terapêutica: manutenção artificial da sobrevivência de uma pessoa que, sem essa ajuda técnica, é susceptível de morrer. Uma vez que ninguém é obrigado a empregar meios extraordinários para prolongar sua vida (exceto se for necessário para o bem comum, se houver assuntos a resolver, etc.), é permitido desligar os dispositivos de suporte à vida quando as razões que o introduziram seu uso (a expectativa de sobrevida do paciente) cessa, pelo menos provavelmente. Não se trata aqui de eutanásia, porque o paciente não é morto diretamente. Deixamos a natureza fazer o seu trabalho.
– Bem diferente é a pressa criminosa de certos cirurgiões que retiram precipitadamente órgãos vitais de um paciente em coma, enquanto a morte deste não é certa. Nesse caso, se a pessoa ainda estiver viva, o cirurgião a mata. (No primeiro caso, o paciente morreria de morte natural, mas no presente caso, sua morte é diretamente provocada.)
Pe. Jean Michel Gleize, FSSPX
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NOTA DO BLOG: CLIQUE AQUI E LEIA UM OUTRO EXCELENTE TEXTO SOBRE MORTE CEREBRAL E TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS, ESCRITO PELO PE. PETER SCOTT, FSSPX
Notas
- Na Suíça, o transplante de órgãos está sujeito à Lei Federal de Transplante de Órgãos, Tecidos e Células de outubro de 2004, que entrou em vigor em 2007. A Portaria Federal de 16 de março de 2007 refere-se às Diretrizes Médicas Éticas da Academia Suíça de Ciências Médicas.
- Paolo Becchi, “A posição da Igreja Católica sobre o transplante de órgãos de cadáveres” in Revue d’éthique et de theologie morale, n° 247 (2007/4), págs. 93-107. Este artigo mostra que a posição da FSSPX e outros objetores ao pressuposto da morte cerebral, embora pouco compartilhada, é consistente, enquanto a posição atualmente adotada pela Santa Sé é inconsistente. Artigo disponível em: https://www.cairn.info/revue-d-ethique-et-de-theologie-morale-2007-4-page-93.htm
- Na Itália, a crítica melhor fundamentada, no meio católico, sobre a identificação da morte cerebral com a morte de fato encontra-se no livro do oblato beneditino Ugo Tozzini, Mors tua vita mea . Transplante de órgãos humanos. Será a morte uma opinião? , Nápoles, 2000. Este livro inspirou o artigo de Don Guiseppe Rottoli, “A predação de órgãos e as ambiguidades de João Paulo II” em La Tradizione cattolica, I (2000), págs. 34-41. O texto também apareceu em francês em um livreto que adota o mesmo horizonte de pensamento: Pe. François Knittel, D. Guiseppe Rottoli, Pe. Marie-Dominique, O que pensar da doação de órgãos? A morte cerebral. A extração de órgãos, Avrillé, 2005. Ao qual pode se acrescentar o longo artigo publicado na edição de junho de 2008 do Courrier de Rome, escrito pelo Pe. François Knittel alias Arbogast.