A “TEOLOGIA DO CORPO” DE JOÃO PAULO II

Síntese inicial de uma doutrina em voga: seus fundamentos e suas consequências.

Fonte: Lou Pescadou n°244 – Tradução: Dominus Est

Muito popular em diversos cursos preparatórios para o matrimônio, a “teologia do corpo” é regularmente apresentada como a quintessência da mensagem da Igreja sobre o casamento e o amor humano. Consequentemente, ela é apresentada como a arma por excelência contra a “cultura da morte”, que invade nossas sociedades ocidentais, mas também, dizem, contra um puritanismo ainda presente em certos círculos católicos. Em relação a este último aspecto, esta teologia alega trazer “uma reabilitação definitiva do corpo e da sexualidade no ensinamento da Igreja (1)”.

Esta “teologia”, sabemos, foi construída por João Paulo II. Ela foi o ápice de sua vida, como ele mesmo escreveu: “Quando era um jovem sacerdote, aprendi a amar o amor humano. Foi um dos temas em que concentrei todo o meu sacerdócio, todo o meu ministério, na pregação, no confessionário e em tudo o que escrevi (2)”. Yves Sémen não hesita em dizer que “a teologia do corpo pode ser vista como o ponto culminante de todo o pensamento filosófico e teológico de Karol Wojtyla (3).”

A teologia do corpo pode ser vista como o ápice de todo o pensamento filosófico e teológico de Karol Wojtyla .

Yves Sémen

Aqui, não cabe uma análise aprofundada desta “teologia do corpo”, pois sua origem imediata a torna suficientemente clara: Karol Wojtyla escreveu-a seguindo a encíclica Humanæ vitæ de Paulo VI, que proíbe a contracepção. Embora essa encíclica se referisse, apesar de algumas deficiências, ao direito natural objetivo para mostrar o caráter objetivamente desordenado da contracepção, Karol Wojtyla estava convencido de que apenas uma moralidade personalista, partindo de uma subjetividade, seria uma resposta válida ao desafio apresentado pela revolução sexual em andamento. É essa moral personalista que a sua “teologia do corpo” propõe. Ainda que coubesse uma exposição sistemática em uma análise filosófica ou teológica, nada nos impede de apresentar, aqui, um primeiro vislumbre.

Para isso, começaremos expondo a sã doutrina, questionando o plano de Deus quando Ele criou o ser humano homem e mulher. Sob esta luz, poderemos resumir, então, as teses de João Paulo II, para finalmente descrever suas consequências nefastas.

I – A visão tradicional

E Deus criou o homem à sua imagem: criou-o à imagem de Deus, e criou-os macho e fêmea. E Deus os abençoou, e disse: Crescei e multiplicai-vos. (Gn 1, 27-28). Ao anunciar a criação do homem à sua imagem, o Deus Único cria o ser humano “duplo”: homem e mulher. É importante compreender o porquê desta vontade divina.

Em Deus tudo é simples, de uma simplicidade plena e infinita, por causa da riqueza infinita de seu ser: Eu sou aquele que é (Ex 3,14). Essa plenitude do ser não pode suportar nenhuma composição, o que implicaria a possibilidade de decomposição, o que é impossível em Deus. É neste sentido que se diz que Deus é simples.

Através da criação, Deus permite ao homem participar da riqueza do seu ser. Mas onde há simplicidade em Deus, o Criador introduz, no criado, a composição, que é a marca do limite inerente a toda criatura, de sua finitude.

Desta forma, a inteligência humana pode participar do Deus Verdadeiro, mas através da composição da linguagem (sujeito, verbo, complemento). O mesmo acontece em todos os campos. Se Deus é a própria Vida, o homem é apenas vivo, e sua vida é marcada pela composição: batimento cardíaco, respiração, tempo, etc.. É isso que torna o homem mortal, enquanto Deus é imortal. Portanto, ao dar ao homem uma participação em sua obra criadora (Crescei-vos e multiplicai-vos), Deus também introduz a composição: Deus os criou homem e mulher, e lhes disse: “Crescei-vos e multiplicai-vos”.

Segundo o desígnio de Deus, o relacionamento homem/mulher é fundamentalmente explicado pela procriação, tomada em seu sentido mais amplo: não apenas o ato de procriar, mas a geração diária, que é a educação. É somente sob essa luz que Deus explica a bela complementaridade do homem e da mulher, não apenas em seus corpos, mas também em sua psicologia.

Mas o plano divino não para por aí. Porque Deus criou tudo por amor, ele quer que o homem e a mulher participem de seu ato criativo através de um ato de amor, e que eles sejam, para a criança, o reflexo de seu próprio amor criador. É aqui que reside a beleza do ato conjugal, vivido de acordo com o desígnio divino. Enraizada no compromisso e na união dos corações em torno de um mesmo ideal familiar (matrimônio), é a união única dos corpos (Gn 2,24: serão uma só carne ), referindo-se à unidade de Deus criador.

Deveríamos ir mais longe, e ver na família uma imagem do Deus Trino, como sugere o texto hebraico do Gênesis (Gn 1, 27-28)? Se assim fosse, essa imagem seria inferior àquela posta na parte espiritual de cada homem. Entretanto, talvez possamos dizer que a família, considerada em seu conjunto, seja como um vestígio da Trindade: o pai e a mãe, em sua complementaridade canalizada, representam, então, o Pai; os filhos gerados diariamente através da educação representam o Filho, e o espírito familiar que dela resulta, se as coisas forem vividas no amor, refere-se ao Espírito Santo. Um teólogo diria que a ordem das procissões trinitárias se encontra, assim, na ordem familiar.

“Se o bem dos filhos é a razão primeira do matrimônio, o amor mútuo é cronologicamente anterior, pois é na medida em que os pais são unos de coração que eles refletem a imagem da paternidade criativa de Deus.”

A partir dessa perspectiva surgem os dois grandes propósitos que definem o matrimônio cristão, bem como a sua ordem. Se o bem dos filhos é a razão primeira do matrimônio, o amor mútuo é cronologicamente anterior, porque é na medida em que os pais são unos de coração que eles refletem a imagem da paternidade criativa de Deus.

II – A releitura personalista de João Paulo II

Pelo fato de a visão católica pressupor que o homem é completo, ela é insuportável ao personalista. Como sabemos, o personalismo adotou o adágio reducionista de Kant: “Nunca considere o homem como um meio, mas sempre como um fim”. Assim, segundo o Vaticano II, o homem é a “única criatura na terra que Deus quis para si” (GS 24, 3), de modo que “tudo na terra deve ser ordenado ao homem como no seu centro e seu ápice” (GS 12, 1). O personalismo pretende, portanto, eliminar qualquer referência à finalidade em sua nova definição de matrimônio, visto doravante no contexto da realização da pessoa.

Surge, então, o segundo adágio personalista: “O homem […] só pode encontrar-se plenamente através do dom desinteressado de si mesmo” (GS 24, 3). Em outras palavras, o homem só se realiza na “comunhão de pessoas”, da qual a união do homem e da mulher é a expressão primária (GS 12, 4).

A “teologia” do corpo de João Paulo II está situada nesse nível. Baseia-se em uma releitura personalista do capítulo dois do Gênesis, considerado “a mais antiga descrição e vestígio da autocompreensão do homem” (TDC 3, 1) (4). Em suas palavras, através da atração mútua que lhes é revelada por sua masculinidade e feminilidade corporais, Adão e Eva descobrem que são feitos para “entregarem-se reciprocamente, na plenitude da sua subjetividade” (TDC 18, 5). Devemos compreender o significado desta afirmação constantemente repetida por João Paulo II. Ele o tornou claro desde 1960, em seu livro Amor e Responsabilidade. Além do amor de amizade, que consiste em querer o bem do outro como a si próprio, K. Wojtyla supõe um grau mais elevado de amor, denominado “conjugal”. Ele “consiste no dom da pessoa. Sua essência é a doação de si mesmo, do próprio “eu” […]. O amor mais completo [amor conjugal] exprime-se precisamente no dom de si, portanto, no fato de se doar em plena posse deste “eu” inalienável e incomunicável.” (5) Compreendemos o quanto esse suposto amor conjugal se identifica com a consagração total do próprio ser, que é devida apenas a Deus. De fato, só Deus, e não o homem, deve ser amado de todo o coração, de toda a alma e de todo o entendimento (Mt 22,39), porque só Deus, “mais presente para nós do que nós mesmos” (Santo Agostinho) é o bem em essência, e, portanto, plenamente digno de amor, o que não acontece com o homem. Este só é chamado a ser amado como a si mesmo (Mt 22,39), sabendo que nem tudo em mim é amável, a começar por este “eu odioso” (cf. Lc 14,26). Mas João Paulo II esquece isto e não hesita em escrever: “O dom revela […] a própria essência da pessoa. […] “Sozinho”, o homem não realiza plenamente essa essência. Ele só a alcança existindo “com alguém” e, ainda mais profunda e completamente, “para alguém”. […] Comunhão de pessoas significa existir em um “para” recíproco, numa relação de dom recíproco”  (TDC 14, 2). Desse princípio resultam todos os excessos da “teologia do corpo”.

Para João Paulo II, assim como para o Vaticano II (GS 24, 3), a comunhão interpessoal é aquela pela qual o homem é, à imagem de Deus, ele próprio uma comunhão de Pessoas em sua Trindade: “O homem torna-se imagem de Deus, não tanto no momento de solidão quanto no momento de comunhão. “Desde o início”, de fato, não é apenas uma imagem na qual se reflete a solidão de uma Pessoa que governa o mundo, mas também, e essencialmente, a imagem de uma insondável comunhão divina de Pessoas  ” (TDC 9, 3). Podemos ver a profunda transformação que a imagem trinitária sofreu na família, da qual, aliás, a criança é excluída (6): não mais a ordem familiar é mantida como uma imagem da ordem das procissões trinitárias, mas a comunhão de dom entre pessoas iguais… 

E como, de acordo com João Paulo II, Adão e Eva supostamente descobriram sua dimensão intersubjetiva por meio da atração mútua de seus corpos masculino e feminino, o falecido papa não hesitou em chegar a uma conclusão radical: A união carnal do homem e da mulher é o “sacramento” do mistério trinitário, no sentido que lhe cabe tornar visível o invisível: “Nessa dimensão interior do dom, constitui-se um sacramento primordial, entendido como um sinal que efetivamente se transmite, ao mundo visível, o mistério invisível escondido em Deus desde toda a eternidade. E este é […] o mistério da vida divina da qual o homem participa verdadeiramente. […] Como sinal visível, o sacramento se constitui com o ser humano enquanto“corpo”, através de sua masculinidade e feminilidade “visíveis”. O corpo, com efeito, e somente ele, é capaz de tornar visível o que é invisível: o espiritual e o divino  ” (TDC 19, 3–4).

“Idealizando, portanto, o amor humano expresso no ato conjugal para torná-lo imagem viva do Deus Trindade – pela qual o homem participa da vida divina – João Paulo II faz da “intersubjetividade” a própria essência da graça”

Idealizando, portanto, o amor humano expresso no ato conjugal para torná-lo imagem viva do Deus Trindade – aquele através do qual o homem participa da vida divina – João Paulo II faz da “intersubjetividade” a própria essência da graça, assim descrita: “esse dom misterioso dado à parte mais íntima do homem – ao “coração” humano – que permite a ambos, homem e mulher, existirem desde a “origem” na relação recíproca do dom desinteressado de si  ” (TDC 16, 3). Ei-nos aqui diante da plena confusão da natureza e da graça, de modo que, a partir de agora, a felicidade dos nossos primeiros pais antes do pecado se reduz à sua união: “A revelação e descoberta do significado conjugal do corpo explica a felicidade original do homem” (TDC 15, 5).

III – As consequências da “teologia” do corpo

Diante da banalização da sexualidade humana, na qual o outro é frequentemente reduzido a um objeto de gratificação, K. Wojtyla certamente se lembrou do que deveria ser uma evidência, ou seja, que o ser amado é alguém, uma pessoa-sujeito. A dupla particularidade da sua “teologia do corpo” reside em outro lugar. Ao eliminar o aspecto de finalidade, João Paulo II fez do amor humano, vivido como uma “relação interpessoal”, o próprio constituinte do matrimônio; em seguida, ele tornou sagrado o ato sexual assim vivido, ao ponto de torná-lo um “sacramento” capaz de tornar visível o invisível, ou seja, a comunhão trinitária das Pessoas divinas.

Quanto ao segundo ponto, o excesso de sacralização leva ao ridículo. Sem enfatizar aqui as questões teológicas – e dramáticas – dessa afirmação, diremos simplesmente que se trata de uma ilusão, e que é muito perigoso comprometer a própria vida em uma utopia. Não, o ato sexual vivido em toda a sua suposta verdade “interpessoal” não é o paraíso na terra.

Porém, é sobretudo o primeiro ponto que merece nossa atenção aqui. Ao estabelecer o amor humano como constitutivo do matrimônio, João Paulo II provocou uma verdadeira revolução, cujas consequências se tornam cada dia mais evidentes. Se o amor já não é a alma com que cada cônjuge anima quotidianamente o seu matrimônio, mas também a própria definição do vínculo conjugal, pode-se facilmente, então, estabelecer uma equação: onde há amor autêntico há matrimônio, enquanto sua ausência implica a ausência de qualquer vínculo. É por isso que, desde o código de 1983, muitos casamentos foram abusivamente considerados nulos e sem efeito, sob o pretexto da imaturidade psicológica de um dos contraentes: diz-se que ele ou ela não tinha maturidade suficiente para realizar um ato interpessoal autêntico! Os comentaristas ortodoxos dizem que a Igreja Católica introduziu o divórcio em sua legislação.

“Ao estabelecer o amor humano como constitutivo do matrimônio, João Paulo II provocou uma verdadeira revolução.”

Tal lógica ainda pode ser aplicada em muitas outras áreas. Por exemplo, o Papa Francisco não hesita em dizer que encontra a realidade do sacramento muito mais nos casais que coabitam e que se amam, do que nos cônjuges que já não se amam. Ao fazer isto, ele está simplesmente se apoiando sobre os princípios estabelecidos por seu antecessor. Aliás, também é notório que uma proporção significativa do jovem clero francês, formado nessa “teologia” do corpo, acredita que não há pecado em ter relações sexuais antes do casamento, “desde que se amem!”…

Por fim, uma vez que é através de sua atração corporal recíproca que Adão e Eva supostamente descobriram a sua vocação divina para um relacionamento interpessoal, o que impediria que duas pessoas do mesmo sexo que experimentassem uma atração corporal entre si não desenvolvessem também um relacionamento interpessoal autêntico? Assim, somos levados a abençoar esse par no que ele tem de bom, ainda que o ato homossexual permaneça publicamente declarado como maligno. É claro que João Paulo II não tirou nenhuma dessas conclusões, se não a primeira. Foi ele quem introduziu no código canônico de 1983 o novo – e ilegítimo – fundamento para a nulidade do matrimônio por imaturidade psicológica. Mas enquanto lutava em outros pontos para defender a família, podemos ver que o próprio fundamento de sua nova “teologia” do corpo, ou seja, a visão personalista do casamento, longe de ser um baluarte inexpugnável para a família, foi o cavalo de Troia que penetrou na primeira sociedade fundada por Deus.

Pe. Patrick de La Rocque, FSSPX

O Pe. Nicolas Cadiet, FSSPX proferiu uma conferência sobre o assunto no Instituto Universitário São Pio X – 2024 com o título: “A Teologia do Corpo sob uma avaliação tomista“:

Notas

(1) Y. Semen, em JP II, Teologia do corpo (TDC), Le Cerf 2014, introdução, p. 25

(2) JP II, Entre na Esperança , Plon Mame 1994, p. 192

(3) Y. Semen, em JP II, Teologia do corpo, Le Cerf 2014, introdução, p. 22

(4) Autocompreensão: o termo é carregado de significado. O Gênesis não é mais uma revelação de Deus sobre o homem criado por ele, sobre sua natureza e propósito, mas uma autodescoberta do homem; não uma teologia do homem (o que Deus diz sobre o homem), mas uma consciência do próprio homem sobre o que ele está vivenciando. Essa perspectiva é ainda mais acentuada quando João Paulo II enfatiza o “caráter mítico primitivo” (TDC 3, 1) do Gênesis, explicando em uma nota que “o mito […] expressa, em termos de mundo, até mesmo de “mundo superior” ou segundo mundo, a compreensão que o homem tem de si mesmo em relação ao fundamento e ao limite da sua existência ”.

(5) K. Wojtyla, Amor e responsabilidade, Stock 1978 , p. 87–88

(6) Segundo João Paulo II, o filho é uma “bênção” divina de amor interpessoal vivido na verdade; um efeito, não um fim.