AS COMUNIDADES ECCLESIA DEI, 30 ANOS DEPOIS

Um dos efeitos do motu proprio Traditionis custodes foi produzir, por parte das comunidades Ecclesia Dei, um acordo de adesão ao Concílio Vaticano II e o reconhecimento da benignidade do Novus Ordo. Essa aprovação enfraquece ainda mais a situação dessas comunidades.

Fonte: La Couronne de Marie n°103 – Tradução: Dominus Est

Criada em 1988 pelo Papa João Paulo II na sequencia da sagração de quatro bispos por D. Lefebvre, a Comissão Ecclesia Dei tinha como missão oficial de “facilitar a plena comunhão eclesial” daqueles que então se separaram da Fraternidade fundada por Dom Lefebvre, ao mesmo tempo que ” preservavam suas tradições espirituais e litúrgicas “.

Sua missão “oficiosa”, havia sido revelada por D. Lefebvre: a Comissão Ecclesia Dei, explicou ele com clarividência, “é responsável pela recuperação dos tradicionalistas a fim de submetê-los ao Concílio” (1). O tempo provou que ele verdadeiramente tinha razão.

A fim de obter o reconhecimento canônico da Igreja Conciliar, as comunidades Ecclesia Dei concordaram em se calar sobre os erros e escândalos doutrinários da hierarquia eclesiástica, ou mesmo em justificá-los. Não denunciam a nocividade da missa nova, do novo código de direito canônico, do diálogo inter-religioso, da liberdade religiosa etc., e sua contradição com o ensinamento tradicional da Igreja. Este silêncio é o preço a pagar para ser oficialmente reconhecido e poder exercer um ministério nas dioceses.

De forma privada, alguns membros dessas comunidades reconhecem os estragos do modernismo triunfante na Igreja. Mas, em público, silenciam-se sobre as causas da destruição da fé nas almas, que eles, como qualquer sacerdote, têm o dever de denunciar e combater.

D. Lefebvre já havia predito isso: “Quando dizem que não desistiram de nada, isso não é verdade. Eles abriram mão da possibilidade de combater Roma. Eles não podem dizer mais nada. Devem ficar calados diante dos favores que lhes foram concedidos. Agora é-lhes impossível denunciar os erros da Igreja conciliar” (2).

Se não dizem explicitamente: aceitamos o Concílio e tudo o que Roma atualmente professa, implicitamente o fazem. Colocando-se inteiramente nas mãos da autoridade de Roma e dos Bispos, eles serão praticamente obrigados a concordar com eles”(3).

O mecanismo da deriva

Quando se dá um ensinamento que, sem aprovar positivamente os erros modernistas, já não os condena, pouco a pouco o juízo sobre a crise da Igreja se degenera. Esse compromisso leva, inevitavelmente, a relativizar o alcance dos erros modernistas, a uma incapacidade de distinguir entre erro e o mal.

D. Gérard, Superior do mosteiro de Barroux, tinha declarado que o reconhecimento do seu mosteiro por Roma não vinha acompanhado de “nenhuma contrapartida doutrinal ou litúrgica”, e que “nenhum silêncio seria imposto à sua pregação antimodernista”(4). Bum! A queda foi rápida. Alguns anos mais tarde, o mosteiro de Barroux tornou-se o defensor do Concílio Vaticano II e da liberdade religiosa. Em 1993 publicou um livro:  Sim! o Catecismo da Igreja Católica é católico! em resposta à Fraternidade São Pio X que via nele a exposição da fé da Igreja Conciliar. E Dom Gérard devia declarar: “Aceitamos todo o Magistério da Igreja, de ontem, de hoje e de amanhã” (5).

Isso ocorre porque é muito difícil permanecer íntegro em um ambiente contaminado. O homem é profundamente influenciado pelo meio em que vive. Há aqui uma lei escrita no mais profundo na natureza humana, uma vez que o homem é feito para viver em sociedade.

Os sacerdotes, especialmente, são silenciados pelas engrenagens da máquina eclesiástica. O padre “rallié” está dividido entre seu desejo de fazer o que é certo e sua obediência ao Bispo local e ao Papa. Seus sermões são inevitavelmente afetados por isso. A mesa de imprensa, as revistas também. Por sua submissão pública à hierarquia, ele engana as almas fazendo-as acreditar que a situação da Igreja é normal; não diz publicamente que a Igreja conciliar põe em perigo a fé dos fiéis; ele não prega que a missa nova é ruim, perigosa para a fé. De fato, essas sociedades preferem a Missa tradicional, mas não por motivos de fé; admitem a legitimidade do novo rito e a verdadeira Missa passa a ser forma “extraordinária” do rito romano.

“Tal como somos”

O Superior da Fraternidade de São Pedro na França declarou há alguns anos: “Que encorajamento ver-nos assim aceitos pela Igreja, pela boca do Sumo Pontífice, como somos, como fomos fundados, como fomos reconhecidos quando a Santa Sé nos erigiu como sociedade de vida apostólica de direito pontifício”(6).

Aceitos como somos”: é nisso que ele quer acreditar, mas desde o início foram aceitos como Roma esperava que eventualmente se tornassem a longo prazo.

Já em 1988 o Cardeal Decourtray, presidente da Conferência dos Bispos da França, declarava perante todos os seus colegas: “É claro que eles devem progredir no caminho da verdadeira adesão ao Concílio em sua totalidade” (7).

Roma é paciente, levou a seu tempo, o de uma geração. Aqui novamente D. Lefebvre havia dito: “Eles irão devagar, lentamente, mas com segurança”(8).

Em 2021, uma nova etapa

Em um artigo anterior, vimos a decisão tomada pelo Papa Francisco em julho passado(9) de restringir e marginalizar ao máximo a celebração da Missa tradicional.

Francisco recorda que a celebração do rito antigo está subordinada à plena e completa adesão ao Concílio Vaticano II e a todo o magistério pós-conciliar, que é um imperativo para todos. Os Bispos devem garantir que os grupos que ainda são autorizados a usar o antigo rito “não excluam a validade e legitimidade da reforma litúrgica, das disposições do Concílio Vaticano II e do Magistério dos Sumos Pontífices”(10). Sacerdotes e sociedades que, por concessão, ainda mantêm a Missa tradicional, devem dar sinais tangíveis de alinhamento, por exemplo, participando aos ofícios da Missa nova.

O Papa Bento XVI já havia deixado isto claro: “Para viver a plena comunhão, os sacerdotes das comunidades que aderem ao uso antigo não podem, por princípio, excluir a celebração segundo os novos livros. A exclusão total do novo rito não seria coerente com o reconhecimento do seu valor e da sua santidade” (11). A diferença com Francisco é que ele é autoritário e usa os devidos meios para ser obedecido.

Quanto aos Bispos, eles querem que essas comunidades sejam mais “solúveis” na realidade e na vida das dioceses.

A reação das comunidades envolvidas

Um dos efeitos produzidos pelo motu proprio, e certamente pretendido, foi o de produzir por parte das comunidades Ecclesia Dei um acordo de adesão ao Concílio Vaticano II e um reconhecimento, não só da validade, mas também da benignidade do Novus Ordo. Essa aprovação fragiliza ainda mais a situação dessas comunidades e torna cada vez mais difícil qualquer crítica ao Concílio, ou ainda sua recusa em celebrar ou concelebrar a missa nova de vez em quando.

situação vivida pela Fraternidade São Pedro em Dijon, onde a exigência de concelebração foi brandida pelo Bispo, D. Roland Minnerath, para justificar a exclusão da sociedade da diocese, corre o risco de se repetir.

A diocese de Paris, que está sendo vigiada de perto em França, definiu a sua linha de conduta. Em carta datada de 8 de setembro, D. Michel Aupetit estabeleceu as regras para a aplicação do motu proprio Traditionis custodes em sua diocese. Ele reduziu drasticamente o número de santuários em que a Missa tradicional pode ser celebrada: apenas cinco igrejas na capital, quando até agora era celebrada em cerca de quinze locais. “Os sacerdotes que receberam de mim a missão escrita poderão celebrar ali de acordo com a antiga forma. E acrescentou: “Desejo, a fim de promover ainda mais a comunhão, que os sacerdotes chamados estejam abertos aos dois missais“. Claramente, isso significa a celebração, pelo menos ocasionalmente, da missa nova.

Qual será o destino das  comunidades Ecclesia Dei  ?

Os “ecclesiatistas” deram muitos sinais de submissão, chegando ao ponto de justificar a liberdade religiosa ou o encontro de Assis, louvando o “São” João Paulo II…: nada disso ajuda. Quaisquer concessões que se façam à Revolução, quaisquer que sejam as promessas feitas a ela, ela nunca estará satisfeita. Ela quer cada vez mais e esmaga aqueles que pensam que podem colaborar com ela, mostrando sua ignorância dos processos revolucionários.

Vendo que a armadilha está se fechando, os Institutos Ecclesia Dei vão se recompor? Ou, para salvar suas cabeças, se curvarão um pouco mais? Infelizmente, suas atitudes por trinta anos deixam pouca esperança.

Reunidos em 31 de agosto, doze superiores desses Institutos estabelecidos na França assinaram uma (vergonhosa) carta conjunta na qual expressavam sua reação ao motu proprio Traditionis custodes do Papa Francisco.

Protestam sua adesão ao Magistério do Vaticano II e posteriores, e voltam-se aos bispos da França, numa linguagem patética e chorosa, para implorar sua compreensão e sua misericórdia. “Nem uma palavra sobre a nocividade fundamental da missa nova de Paulo VI. Nem uma palavra sobre os frutos amargos do Concílio. Nem uma palavra sobre a terrível aceleração da crise na Igreja sob o Papa Francisco” (12).

A fim de preservar a Missa tradicional, os doze superiores reivindicam o “carisma” específico de suas sociedades, que os autoriza a abrir exceções. Mas se queremos a Missa tradicional, não é egoisticamente para nós, é para toda a Igreja! E lutamos não só pela Missa tradicional, mas pela fé católica, pela doutrina imutável, pela moral e pelos sacramentos de todos os tempos e, portanto, contra os erros que a ela se opõem.

A situação atual nos mostra mais uma vez que a única posição verdadeira e sólida é a da Fraternidade São Pio X. Uma posição que não varia e a que lhe dá credibilidade.

Pe. Hervé Gresland, FSSPX

POSTS INTERESSANTES SOBRE O ASSUNTO:

Notas:

  1. Entrevista à Radio Courtoisie, 22 de novembro de 1989.
  2. Entrevista com Dom Marcel Lefebvre, Fideliter n° 79 de janeiro-fevereiro de 1991.
  3. Conferência em Flavigny, dezembro de 1988; Fideliter nº 68, março-abril de 1989.
  4. Declaração de 18 de agosto de 1988.
  5. Ouest-France de 11 a 12 de fevereiro de 1995
  6. Padre Ribeton, sermão de 16 de novembro de 2013, por ocasião do 25º aniversário da Fraternidade São Pedro.
  7. Discurso perante a assembléia plenária dos Bispos em Lourdes, 22 de outubro de 1988.
  8. Conferência em Flavigny, dezembro de 1988; Fideliter nº 68, março-abril de 1989.
  9. Pelo motu proprio Traditionis custodes de 16 de julho
  10. Artigo 3º § 1º do motu proprio.
  11. Carta a todos os Bispos, 7 de julho de 2007.
  12. Pe. Gleize, La Porte Latine, 3 de setembro de 2021.