AS SAGRAÇÕES EPISCOPAIS DE 1988 PREJUDICARAM UM ELEMENTO ESSENCIAL DA FÉ CATÓLICA: A UNIDADE DA IGREJA?

Mgr Lefebvre lors du sermon des sacres du 30 juin 1988

Essa é a continuação da Parte 1: As sagrações realizadas por D. Lefebvre em 1988 representam um ato de natureza cismática?

Fonte: La Porte Latine – Tradução: Dominus Est

1. Na segunda entrevista, da seção “teologia”, publicada na página de 27 de abril de 2022, do site “Claves.org”, o Pe. de Blignières indica qual é, segundo ele, “o critério para avaliar as sagrações de 1988”. Os sacerdotes e os fiéis que não quiseram seguir a D. Lefebvre não teriam agido em virtude de uma concepção errônea de obediência, tampouco de forma puramente tática ou com vistas a obter qualquer vantagem. O que teria acontecido e estaria em questão “é um juízo fundamental sobre a comunhão hierárquica como elemento essencial da fé e da estrutura da Igreja Católica”. Com efeito, a sagração episcopal realizada contra a vontade do Papa seria “um ato intrinsecamente mau porque atenta contra um elemento da fé católica”. Esse elemento é que, para ser não apenas válido, mas legitimamente sagrado, um Bispo deve receber a sagração episcopal “no seio da comunhão hierárquica entre todos os Bispos católicos”, cujo garante é o Bispo de Roma, sucessor de Pedro. Deste modo, a sagração episcopal, recebida sem a instituição pontifícia, constitui “um gravíssimo ataque à própria unidade da Igreja”.

2. O Pe. de Blignières refere-se aqui à Encíclica Ad apostolorum Principis de Pio XII, bem como ao número 4 do Motu proprio Ecclesia Dei adflicta. No entanto, nenhum desses dois textos citados são pertinentes para avaliar as sagrações de 30 de junho de 1988.

3. O texto que nos colocaria no caminho certo é aquele que o Pe. de Blignières não cita: é o número 3 do Motu proprio Ecclesia Dei adflicta. Ao contrário do que afirma o fundador da Fraternidade São Vicente Ferrier, em uma resenha excessivamente simplista, a sagração de um Bispo realizada sem mandato pontifício e cometida contra a vontade explícita do Sumo Pontífice, não constitui em si mesma um ato de natureza cismática”. Pelo contrário, o Motu Proprio de João Paulo II começa por dizer que uma sagração deste tipo “é em si uma desobediência ao Romano Pontífice(1). Ora, a desobediência é algo bem diferente do cisma(2). Por isso, sagrar um Bispo sem mandato pontifício e provocar um cisma são dois atos fundamentalmente diferentes. O primeiro pode ser ocasião do segundo, mas não necessariamente. Com efeito, provocar um cisma é recusar, em princípio, a autoridade suprema do Papa, e isso acontece na pessoa que afirma dar um poder que só o Papa (e não simplesmente um Bispo) pode dar, isto é, o poder de governar a Igreja. Sagrar um Bispo sem mandato pontifício é desobedecer ao Papa, comunicando um poder que qualquer Bispo pode dar, o poder de santificar na Igreja, mas somente com o consentimento do Papa.

4. Com efeito, um Bispo só é um Bispo porque recebe e detém dois poderes diferentes: o poder de ordenar ou o poder de santificar administrando validamente os sacramentos; e o poder de jurisdição ou o poder de governar estabelecendo leis. O Bispo recebe o poder de santificar por sua sagração e recebe o poder de governar pela missão canônica, por meio da qual o Sumo Pontífice lhe comunica esse poder de governar(3). A ordenação dos Bispos não é, enquanto tal, sacramental ou ritualmente falando, o ato em que é comunicado o poder de governar. Este poder é comunicado na medida exata em que o Bispo sagrado recebe do Papa – ou seja, além de sua sagração, que só lhe confere o poder de santificar – a missão canônica, do Sumo Pontífice. Ordinariamente, e na maioria das vezes, o Bispo sagrado recebe ambos os poderes, o poder de ordem e o poder de jurisdição, ao mesmo tempo. Mas também pode acontecer que um Bispo seja sagrado sem receber o poder de governar. Tais são os Bispos titulares(4) ou ad honores consecrati, e de fato, vemos que também existem fora da Igreja (por exemplo, entre os cismáticos) bispos validamente sagrados, que, portanto, têm realmente o poder de ordem, recebido por uma sagração, mas que não receberam do Papa o poder de governar, uma vez que a seita a qual pertencem não reconhece a autoridade do Papa, querida por Cristo para a sua Igreja(5). Esses Bispos não são apenas desobedientes, mas também cismáticos, na medida em que o Bispo que os sagra arroga a si próprio a autoridade do Papa para dar-lhes um poder de governo que só o Papa pode dar. É o caso dos Bispos cismáticos sagrados na Igreja Patriótica do Estado Comunista da China, mencionados na Encíclica de Pio XII, Ad apostolorum Principis, de 29 de junho de 1958 (6): “os bispos não nomeados nem confirmados pela Santa Sé, e até escolhidos e consagrados contra suas disposições explícitas, não podem gozar de nenhum poder de magistério nem de jurisdição; pois a jurisdição vem aos bispos unicamente através do Romano Pontífice. […] E os atos do poder de ordem, postos por tais eclesiásticos, mesmo sendo válidos – supondo tenha sido válida a consagração a eles conferida – são gravemente ilícitos, isto é; pecaminosos e sacrílegos”.

5. Ora, é evidente – porque assim o disse explicitamente no Sermão de 30 de junho de 1988 – que D. Lefebvre não teve vontade de dar o poder de governar aos Bispos por ele sagrados, arrogando para isso a própria autoridade do Papa, o que teria sido um cisma. “Nós não somos cismáticos”, disse ele. “Se a excomunhão foi pronunciada contra os Bispos da China – que se separaram de Roma e que se submeteram ao governo chinês – é fácil compreender por que o Papa Pio XII os excomungou. Mas, para nós, está fora de questão separar-nos de Roma e de submeter-nos a algum poder estranho a Roma e de constituir uma espécie de Igreja paralela, como fizeram, por exemplo, os Bispos de Palma de Troia, na Espanha, que nomearam um Papa e criaram um colégio de cardeais. Não se trata de coisas semelhantes para nós. Longe de nós pensarmos em afastarmo-nos de Roma”. Na intenção de D. Lefebvre, as sagrações que ele realizou em Ecône, mesmo sem mandato pontifícios, não davam nem mais nem menos do que o poder de ordem e de modo algum o poder de jurisdição. Portanto, não podem representar um ato de natureza cismática, e constituem, no máximo, desobediência.

6. Ora, um ato constitui desobediência se, e somente se, se opõe ao mandamento legitimamente desejado pelo superior. Portanto, não haverá desobediência por duas razões. Ou porque quem manda não é o superior e, neste caso, aqueles que sagram Bispos sem mandato pontifício justificam-se dizendo que João Paulo II não é Papa, que é a tese do sedevacantismo, adotada por exemplo anteriormente pelo Pe. Guérard des Lauriers. Ou porque quem manda, embora superior, não exprime um mandato legítimo, pelo próprio fato de que esta ordem humana se opõe à ordem de Deus, que lhe é superior(7). No entanto, como mostramos no artigo anterior, “As sagrações realizadas por D. Lefebvre em 1988 representam um ato de natureza cismática?”, o mandamento pelo qual João Paulo II disse a D. Lefebvre para não prosseguir com as sagrações episcopais previstas opõe-se à vontade de Deus que é garantir a sobrevivência da Tradição na Igreja, graças ao sacerdócio; sobrevivência esta seriamente ameaçada pela falsa ideia de Tradição, “contraditória e incompleta”, imposta e difundida pelas autoridades romanas, incluindo o próprio João Paulo II. A sagração de 30 de junho de 1988, portanto, não constitui um ato cismático e nem mesmo um ato de desobediência.

7. Foi a operação sobrevivência da Tradição, como bem explicou D. Lefebvre: “Hoje, neste dia, é a operação sobrevivência. E se eu tivesse realizado esta operação com Roma, continuando os acordos que assinamos e continuando a colocar esses acordos em prática, eu estaria realizando a operação suicídio. Não há escolha. Devemos sobreviver e é por isso que hoje, sagrando bispos, estou convencido de que continuaremos a manter viva a Tradição, ou seja, a Igreja Católica”.

8. Portanto, o Pe. de Blignières comete aqui um duplo erro:

– Não, não é verdade que uma sagração contra a vontade do Papa seja intrinsecamente má, porque supostamente prejudicaria um elemento da fé católica: tudo depende da vontade, legítima ou não, do Papa. 

– Não, também não é verdade que “as sagrações de 1988 constituíram um gravíssimo ataque à própria unidade da Igreja”.

Continua…

Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX

Notas

  1. “In semetipso talis actus fut inoboedientia adversus Romanum Pontificem”.
  2. Caetano, Comentário à Summa Theologica, 2a2ae, questão 39, artigo 1, n° VII; veja a edição de abril de 2018 do Courrier de Rome.
  3. Este é o ensinamento de Santo Tomás na Summa Theologica, 2a2ae, questão 39, artigo 3, corpus. Este é também o ensinamento de autores como Louis Billot, “De episcopatu, tese 32, § 1” em De sacramentis, t. 2, pág. 315; Charles Journet, A Igreja do Verbo Encarnado , volume 1: “A hierarquia apostólica”, Desclée de Brouwer, 1955, p. 34-35 e 637-640. Na época do Concílio Vaticano II, os padres membros do Coetus recordaram esta doutrina a fim de denunciar os erros presentes no esboço da futura constituição sobre a Igreja. Ver na Acta synodalia concilii Vaticani secundi , no vol II, pars I, as observações escritas de D. Jean Prou ​​(p. 557-559) no final da 2ª sessão do Concílio (1963) e vol. III, pars I, os do Cardeal Browne (pp. 629-630) e os do Bispo Carli (pp. 660-661) no diagrama De Ecclesia , no final da 3ª sessão do Concílio (verão de 1964).
  4. Antigamente eram chamados Bispos in partibus infidelium, denominação revogada por decreto da Sagrada Congregação da Propaganda de 27 de fevereiro de 1882. A denominação ‘titular’ vem do fato de receberem o título de uma antiga diocese, agora habitada principalmente por infiéis ou cismáticos. Cf F. Claeys-Bouuaert, “Bispos” no Dicionário de Direito Canônicode Raoul Naz, t. V, coluna 574.
  5. Louis Billot, “De episcopatu, tese 32, § 1” in De sacramentis, t. 2, pág. 317.
  6. AAS, T. L, pág. 601ss. A tradução francesa pode ser encontrada nos Documentos Pontifícios de Sua Santidade Pio XII, Edições Saint-Augustin, Saint Maurice (Suíça), vol. do ano de 1958, pág. 327-338. 

Santo Tomás de Aquino, Summa Theologica, 2a2ae, questão 104, artigo 5.