DUAS ENCÍCLICAS SOB O PATROCÍNIO DE ASSIS

pape

Fonte : La Porte Latine – Tradução : Dominus Est

Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX

Com cinco anos de intervalo, o Papa Francisco publicou duas Encíclicas, das quais pode-se dizer que tem a intenção de ser decisivas na orientação da doutrina oficial da Igreja pós-Vaticano II. E tal orientação é sempre colocada pelo próprio Papa sob o patrocínio de São Francisco de Assis. Em 24 de maio de 2015,naLaudato Si, o Papa já se referia explicitamente ao Cântico das criaturas: «Neste gracioso cântico», escrevia ele, «recordava-nos [o santo de Assis] que a nossa casa comum se pode comparar ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços»[1]. Em 3 de outubro de 2020, com a Fratelli Tutti, o Papa referiu-se ao texto da Regra dos frades menores: «Fratelli Tutti foi escrita por São Francisco de Assis dirigindo-se a seus irmãos e irmãs, para lhes propor uma forma de vida com o sabor do Evangelho. Destes conselhos, quero destacar o convite a um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço»[2].

Essa referência a São Francisco de Assis não é vã, porque pretende iluminar a ligação profunda que une as duas Encíclicas no pensamento do Papa. «Este Santo do amor fraterno», disse logo no começo da recente Encíclica, «da simplicidade e da alegria, que me inspirou a escrever a encíclica Laudato si’, volta a inspirar-me para dedicar esta nova encíclica à fraternidade e à amizade social»[3].A inspiração é, portanto, a mesma nos dois casos. E além de ser uma piedosa dedicatória, o assunto abordado pretende mostrar uma ligação orgânica que deve conservar toda sua importância. Essa ligação profunda aparece desde o começo de Fratelli Tutti, quando o Papa evoca o sentido de fraternidade no Poverello: «Com efeito, São Francisco, que se sentia irmão do sol, do mar e do vento, sentia-se ainda mais unido aos que eram da sua própria carne»[4]. Aqui, o sentido da fraternidade encontra o sentido da ecologia: ambos devem se situar no mesmo plano, e entre um e outro – pelo menos no pensamento do Papa – há apenas uma diferença de grau, sendo o sentido da fraternidade meramente mais intenso que o da ecologia.

Um outro indício mostra o parentesco profundo das duas Encíclicas. Com efeito, o Papa indica mais adiante quais foram suas «fontes de inspiração» para ambos os textos. «Se na redação da Laudato si’», escreve, «tive uma fonte de inspiração no meu irmão Bartolomeu, o Patriarca ortodoxo que propunha com grande vigor o cuidado da criação, agora senti-me especialmente estimulado pelo Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, com quem me encontrei, em Abu Dhabi, para lembrar que Deus “criou todos os seres humanos iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade, e os chamou a conviver entre si como irmãos”»[5]. Nas duas Encíclicas, o Papa obteve sua inspiração fora das fontes da Revelação divina, fora dos monumentos da Tradição católica. Ele encontrou sua inspiração junto a um cismático para a Laudato si’ e junto a um infiel para a Fratelli Tutti.

A ideia central que une as duas Encíclicas, e que se atesta por esses dois indícios, é a de buscar «viver em harmonia com todos»[6], sem impor doutrinas. Com efeito, São Francisco, nos dizeres do Papa, «não fazia guerra dialética impondo doutrinas, mas comunicava o amor de Deus» e é assim que ele foi um «pai fecundo que suscitou o sonho duma sociedade fraterna»[7]. Esse sonho da sociedade fraterna, que quer realizar a harmonia entre todos os seres humanos, estende-se ao sonho ecológico, que quer realizar a harmonia entre todas as criaturas. E nos dois casos trata-se do sonho de uma união de vontades (ou daquilo que a filosofia chama ‘união das tendências apetitivas’) no mesmo amor, que só poderia se realizar se essas vontades se libertarem de toda referência propriamente doutrinal. Acerca disso podemos observar duas coisas.

Primeiramente, encontramos aí o mesmo gênero de ambição cujo sonho (visto que se trata apenas de um sonho) já fora condenado pelo Papa Pio XI na Encíclica Mortalium animos, de 6 de janeiro de 1928. Por isso, contrariamente ao que pretende o Padre Jean-Michel Garrigues[8], não é possível receber essa Encíclica do Papa Francisco em continuidade com o Magistério constante da Igreja católica. Com efeito, diz Pio XI, querer fundar a unidade das vontades no amor ou na fraternidade, sem fazer que essa união repouse na unidade das inteligências na doutrina, equivale a sustentar que as diferentes religiões significam de maneiras diferentes o mesmo sentimento religioso natural, que seria como seu denominador comum. E isso equivale a professar o naturalismo, ou seja, a negar a existência de uma religião divinamente revelada para se contentar com um estado de pura natureza. A economia concreta da salvação, tal como desejada por Deus, não consiste numa religião natural inscrita nos corações dos homens, mas sim em uma religião revelada, única e definitiva, cujo órgão autêntico é somente a Igreja católica, única e definitiva tal como Deus a quis: única e definitiva em seus sacramentos, única e definitiva em seu Magistério, garantidora da unidade da doutrina e da fé.

Em segundo lugar, quem diz fraternidade diz filiação. De qual filiação estamos falando, dado que se pretende livrar-se da unidade da fé católica, que é o fundamento primeiro da filiação do homem em relação a Deus? O Padre Garrigues nos dá a resposta: «Não se pode restringir a filiação divina só aos batizados. Como lembra o Concílio Vaticano II, em uma frase que São João Paulo II usou muitas vezes em diversos documentos de seu magistério: pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem (citação de Gaudium et spes, nº 22)»[9]. A mesma constituição pastoral Gaudium et Spes já dizia desde o seu nº 3: «Eis a razão por que este sagrado Concílio, proclamando a sublime vocação do homem, e afirmando que nele está depositado um germe divino, oferece ao gênero humano a sincera cooperação da Igreja, a fim de instaurar a fraternidade universal que a esta vocação corresponde». A fraternidade universal a qual sonha atualmente Papa Francisco encontraria sua justificação na presença de um «germe divino» depositado por Deus no homem – em todo homem, batizado ou não. Antes de Francisco, João Paulo II já havia dito, na Encíclica Evangelium vitae de 25 de março de 1995: «Mais, o homem e a sua vida não se revelam apenas como um dos prodígios mais altos da criação: Deus conferiu ao homem uma dignidade quase divina (cf. Sal 8, 6-7). Em cada criança que nasce e em cada homem que vive ou morre, reconhecemos a imagem da glória de Deus: nós celebramos esta glória em cada homem, sinal do Deus vivo, ícone de Jesus Cristo». Mais do que a confusão entre natureza e graça, o pressuposto aqui, tal como aparece nos textos de Gaudium et spes e de João Paulo II, é o da negação da gratuidade da graça: a graça, ou o famoso «germe divino», do qual fala o Concílio, é depositado em todo homem – batizado ou não –pelo próprio fato que Cristo se encarnou. Portanto, a graça acompanha necessariamente a natureza, em todos os homens. Não é mais gratuita – e não é mais a graça: ela torna-se justamente um «germe divino». Desse modo, a humanidade possui um ser comum de graça, e ao mesmo tempo um ser comum de natureza, um mesmo germe divino em Cristo; e tal seria a razão pela qual todos os homens seriam irmãos, filhos do mesmo Pai de Cristo.

O estabelecimento dessa fraternidade resultaria, necessariamente, numa comunidade mundial, em que os diferentes povos seriam convencidos a viver em conformidade com o «germe divino» depositado neles. «Para se tornar possível o desenvolvimento duma comunidade mundial capaz de realizar a fraternidade a partir de povos e nações que vivam a amizade social», diz o Papa, «é necessária a política melhor, a política colocada ao serviço do verdadeiro bem comum»[10]. Em perfeita coerência com o pressuposto inicial do Vaticano II, e em nome do «germe divino», o Papa atual torna-se, nesta Encíclica, o operário de um mundialismo naturalista.

Courrier de Rome nº 636 – Novembro/Dezembro de 2020.

Notas

1.Laudato Si, nº 1.

2.Fratelli Tutti, nº 1.

3.Fratelli Tutti, nº 2.

4.Fratelli Tutti, nº 2.

  1. 5. Fratelli Tutti, nº 5.

6.Fratelli Tutti, nº 4.

7.Fratelli Tutti, nº 4.

  1. Pe. Jean-Michel Garrigues, O.P. «Fratelli tutti: une Encyclique à recevoir en catholique cohérent», página de 17 de outubro de 2020 publicada no site Aleteia: <https://fr.aleteia.org/2020/10/17/fratelli-tutti-une-encyclique-a-recevoir-en-catholique-coheren/>.
  2. Pe. Jean-Michel Garrigues, O.P., ibidem.

10.Fratelli Tutti, nº 154.