ENTREVISTA COM O SUPERIOR GERAL DA FSSPX: “OS ACONTECIMENTOS TRAZEM À LUZ A PERSPICÁCIA EXCEPCIONAL DO NOSSO FUNDADOR.”

Entrevista com o Padre Pagliarani, Superior da Fraternidade Sacerdotal São  Pio X - Seminário Nossa Senhora Corredentora - AR

OS CINQUENTA ANOS DA FSSPX

«Reavivar nosso ideal de fidelidade naquilo que recebemos.»

  1. DICI: O que representa, para a Tradição, o cinquentenário da FSSPX?

Em primeiro lugar, o jubileu é a ocasião para agradecer à Providência por tudo o que ela nos concedeu durante esses cinquenta anos, porque uma obra que não fosse de Deus não teria resistido ao desgaste do tempo. Devemos atribuir tudo isso primeiramente a Deus.

Acima de tudo, o jubileu é ocasião de reavivar nosso ideal de fidelidade naquilo que recebemos. Com efeito, após tantos anos, pode surgir um compreensível cansaço. Esse dia, portanto, deve reanimar nosso fervor no combate pelo estabelecimento do reinado de Cristo Rei, para que Ele reine primeiro em nossas almas e depois a nosso redor. É esse ponto em especial que merece nossa atenção, seguindo Dom Lefebvre.

  1. DICI: Por que, segundo o senhor, a herança de Mons. Lefebvre pode ser resumida nessa vontade de estabelecer o reinado de Cristo Rei?

A resposta me parece muito simples: é o amor a Cristo Rei que fez de Mons. Lefebvre um santo prelado e um grande missionário, um homem que buscou apaixonadamente estender à sua volta o reino d’Aquele que reinava antes em sua alma – e é esse amor que o conduziu à denunciar com vigor tudo aquilo que lhe era oposto. Ora, para estender esse reino e combater seus inimigos, o meio principal é o Santo Sacrifício da Missa. A voz de Mons. Lefebvre tremulava de emoção quando ele pronunciava essas palavras da liturgia, que também resumem seu amor pela Missa e por Cristo Rei: «Regnavit a ligno Deus» (hino Vexilla Regis), Deus reina pelo madeiro da Cruz. Em uma carta escrita a um antigo confrade de sua congregação de origem, pouco antes de sua morte, Mons. Lefebvre fez questão de dizer que, durante toda sua vida, a única coisa pela qual trabalhou foi pelo reino de Nosso Senhor. Eis o que sintetiza tudo o que ele foi e tudo o que ele nos legou.

  1. DICI: No dia 24 de setembro, a seu pedido, o corpo de Mons. Lefebvre foi transferido para uma cripta na igreja do seminário de Ecône. Apesar da crise do coronavirus, muitos padres, seminaristas, religiosos e fiéis participaram da cerimônia. Como foi esse dia?

Na verdade, essa transferência foi determinada no último capítulo geral, em 2018, e estou muito feliz que ela tenha podido se concretizar dentro do período de dois anos. Ainda que pertença apenas à Igreja um dia canonizar Mons. Lefebvre, penso que ele já merece nossa veneração num local de sepultura digno de um santo bispo. Neste ano jubilar, esse gesto é a expressão da gratidão de todos os membros da FSSPX para aquele que a Providência suscitou como instrumento para salvaguardar a Tradição da Igreja, a fé, a santa Missa, e para nos legar todos esses tesouros. O fato de rever, após trinta anos, o caixão do nosso fundador, de ver nossos padres carregá-lo sobre seus ombros como no dia do seu funeral, foi algo especialmente comovente. Vi antigos confrades comovidos até às lágrimas.

A VIDA DA FSSPX

«A Fraternidade São Pio X deve se enraizar mais profundamente nos lugares em que ela já está presente.»

  1. DICI: Quando a Fraternidade Sacerdotal São Pio X foi fundada, ela parecia para a imprensa um «fenômeno francês» então fadado a manter-se naquele local. Hoje, a FSSPX é uma comunidade mundial. O que isso implica na sua administração?

Isso significa que a Casa geral deve conseguir coordenar as mais diversas situações. A própria Tradição foi redescoberta em diferentes países, por caminhos diferentes e com sensibilidades também muito diferentes. Isso explica porque a FSSPX não se desenvolveu da mesma maneira em todos os lugares, nem ao mesmo tempo. Não é preciso dizer que uma obra da amplitude que tem a FSSPX, com todas suas facetas, não é administrada somente pelo Superior geral: ele é auxiliado nessa tarefa pelos Superiores maiores, que agem nos diferentes países.

Mas a grande diversidade de situações não nos permite subestimar o fato de que a unidade da FSSPX é fundada sobre um ideal e em princípios comuns a todos os membros e a todos os fiéis sem distinção. É essa unidade que faz a nossa força, apesar das inevitáveis e legítimas diferenças. Ademais, é por a FSSPX ser uma obra da Igreja que ela deve, de certa maneira, reproduzir a capacidade da Igreja de propor aos fiéis do mundo inteiro os mesmos princípios e a mesma fé, a despeito de suas diferenças.

  1. DICI: Após dois anos à frente da FSSPX, qual juízo o senhor faz do desenvolvimento dela?

A FSSPX está presente desde há muito tempo em todas as partes do mundo. Não penso que, atualmente, a Providência nos esteja pedindo que abramos novas casas e que nos estendamos – o que talvez fosse, da nossa parte, uma falta de prudência. Penso que a FSSPX, antes, deve se enraizar mais profundamente nos lugares em que ela já está presente, para ter comunidades mais fortes. Especialmente para que os jovens padres tenham tempo de amadurecer, de completar sua formação, permitindo-nos assim prepará-los para as diversas responsabilidades – em especial ao ofício de prior – a fim de que um dia sejam verdadeiros pais para seus confrades e para as almas confiadas ao seu cuidado.

  1. DICI: O senhor conhece todos os países onde a FSSPX está estabelecida? Como o «tesouro», que o senhor falou após sua eleição[1], é comunicado pela FSSPX no contexto atual?

Em razão da Covid-19, há distritos que não pude visitar ainda, e muito me lamento por isso. Esse «tesouro» é comunicado pelos padres da FSSPX em situações muito distintas, mas que sempre permitem a expressão do verdadeiro zelo de nossos padres. A respeito disso, fui muito edificado pela inventividade dos nossos confrades, que encontraram soluções muito engenhosas para administrar, tanto quanto possível, os sacramentos em situação de confinamento. Sobretudo, alguns de nossos padres ficaram isolados durante vários meses em lugares em que a comunicação com os outros padres havia se tornado impossível. Eles têm um grande mérito, e devemos parabeniza-los.

Ao mesmo tempo, fui tocado também pelas reações de nossos fiéis, que tinham um tal desejo de receber os sacramentos que não pouparam esforços, aceitando consideráveis sacrifícios para mostrar seu apego a Nosso Senhor. Essa crise certamente nos ajudou a sair da rotina e apreciar melhor todos os tesouros cujo benefício era-nos habitual.

  1. DICI: Quais são os projetos que estão em andamento e quais estão por vir?

Atualmente, os projetos são sobretudo de ordem moral, e não são ainda necessariamente projetos em que podemos constatar exteriormente sua realização. Trata-se, para resumir tudo em uma palavra, de continuar a trabalhar o máximo possível para tornar a FSSPX forte, unida, realmente ancorada em Deus, fiel à graça que a socorre e, ouso dizer, sólida como um exército em ordem de batalha, capaz de defender, com todos os meios colocados à sua disposição, os tesouros que Deus lhe confiou; capaz também de atacar o que lhe opõe; capaz, enfim, como um exército digno desse nome, de cuidar dos mais fracos dentre os seus membros, dos feridos, dos desencorajados, e daqueles que são particularmente provados.

  1. DICI: O senhor é o quarto Superior geral da FSSPX, seguindo Mons. Lefebvre, Pe. Franz Schmidberger e Mons. Bernard Fellay. O seu estilo de governar difere do deles?

Penso que cada personalidade é inevitavelmente diferente, e que cada uma traz, consequentemente, outras experiências. Ademais, cada época da história da FSSPX é diferente – após cinquenta anos, as circunstâncias e as pessoas não são mais as mesmas.

Dito isso, a FSSPX é desde sempre fiel ao que Mons. Lefebvre ensinou e legou: a salvaguarda da herança do fundador, a fidelidade ao seu espírito, eis a preocupação de todo Superior geral, seja quem for, e seja qual for sua personalidade. Por outro lado, a continuidade é igualmente garantida por que cada Superior geral quer o mesmo objetivo: a salvaguarda do sacerdócio católico e da Tradição da Igreja, para serviço das almas e da própria Igreja. Essa é uma realidade que transcende a diferença de estilos, e que permite que a renovação necessária de superiores não seja uma ameaça para a estabilidade da obra.

Da minha parte, a conservação dessa continuidade é tanto mais facilitada na medida em que tenho o grande privilégio de ser ajudado por meus predecessores, pois Mons. Fellay e o Pe. Schmidberger foram eleitos conselheiros do Superior geral no último capítulo. Para mim, não se trata de uma eleição puramente formal, para tarefas a se cumprir administrativamente, mas da possibilidade de me apoiar em dois antigos superiores gerais, que conheceram bem o fundador e a vida da Fraternidade durante décadas, e que consagraram o melhor de si mesmos a servir, merecendo hoje nossa estima. Tive a especial alegria de ser beneficiado por preciosos conselhos de Mons. Fellay, que continuou a morar na Casa geral durante dois anos. Pude admirar nessa ocasião uma grande disponibilidade para ajudar unida a uma discrição digna de nota. A presença dos meus dois predecessores compensa parte do que me faltaria se eles não estivessem lá.

  1. DICI: Os estatutos da FSSPX dão ao Superior geral dois objetivos espirituais:

1) fazer todo o possível para manter, conduzir e agregar «ao coração dos membros» uma «grande generosidade, um profundo espírito de fé e um ardoroso zelo a serviço da Igreja e das almas».

2) ajudar os membros «a não cair na tibieza ou fazer concessões ao espírito do século».

O que o senhor faz para poder alcançar esses objetivos?

Um Superior geral deve, em primeiro lugar, lembrar-se que não pode cumprir tais objetivos sem o trabalho da graça. Ele se enganaria se pensasse que teria sucesso apenas pelos textos, por apelos ou por outras medidas puramente exortativas.

Quanto a mim, estou intimamente persuadido que a chave da nossa fidelidade a esses objetivos reside na virtude da pobreza. Com efeito, com o passar dos tempos, é inevitável que os membros da FSSPX corram o risco de se acomodarem num certo conforto – e que, por esse meio, o espírito do mundo se infiltre imperceptivelmente nas nossas comunidades. Se isso acontecesse, teríamos repercussões na generosidade dos membros, e consequentemente sobre a fecundidade de seu zelo apostólico.

AS RELAÇÕES COM ROMA

«O próprio Vaticano preferiu, agora, não retomar as discussões doutrinais.»

  1. DICI: O parágrafo IV dos Estatutos prevê: «Conforme a Fraternidade tiver casas em diferentes dioceses, ela tomará medidas necessárias para obter o estatuto de instituto de direito pontificial». Isso leva à seguinte questão: como é possível cumprir o desejo do nosso venerável fundador na atual crise da Igreja?

Os estatutos da FSSPX foram aprovados em 1970 em nível diocesano. Era normal que nosso fundador já tivesse em vista uma aprovação em nível superior, visto que a Fraternidade estava destinada a se estender pelo mundo inteiro.

Mas todos sabem que, apesar de todos os seus esforços nesse sentido, Mons. Lefebvre, em vez de receber uma aprovação de direito pontificial, recebeu em 1975 uma supressão, pura e simples, da FSSPX. Desde então, os Superiores da Fraternidade, a começar pelo próprio Mons. Lefebvre, consideraram possíveis soluções, mas os últimos encontraram-se, da parte da Santa Sé, com exigências doutrinais simplesmente inaceitáveis. Eles certamente teriam permitido o reconhecimento canônico, mas também destruiriam o valor da congregação. O exemplo mais recente foi quando a Congregação para a Doutrina da Fé, em 2017, quis exigir da FSSPX que ela aceitasse os ensinamentos do Vaticano II e reconhecesse a legitimidade da Missa nova: se a FSSPX tivesse aceitado as condições impostas naquele momento, ela teria negado o que ela é, renegando aquilo que está entranhado no seu ser.

Parece-me portanto, seguindo a conduta de nosso fundador, que convém seguir a Providência e não atropela-la.

  1. Os contatos com o Vaticano, portanto, continuarão estagnados?

Isso não depende da FSSPX nem de seu Superior Geral. O próprio Vaticano prefere, neste momento, não retomar as discussões doutrinais, propostas pela FSSPX com objetivo de melhor expor sua posição e de mostrar seu apego à fé católica e à Sé de Pedro.

É impressionante que o Vaticano nos peça, junto a tal posição, que regularizemos primeiro nossa situação canônica: isso cria uma situação problemática e intrinsecamente contraditória, visto que a possibilidade de um reconhecimento canônico da FSSPX está submisso às exigências de natureza doutrinal – que continuam, agora e sempre, absolutamente inaceitáveis para nós.

Acrescentaria que, quaisquer que sejam as opiniões pessoais nesse assunto, é importante ter o cuidado para não se preocupar obsessivamente por questões tão delicadas, como às vezes acontece. É preciso nos lembrarmos que, assim como a Providência nos guiou e assistiu desde a nossa fundação, ela não deixará de nos dar, no devido tempo, os sinais adequados e oportunos que nos permitirão tomar as decisões que as circunstâncias pedirem. Esses sinais serão tais que sua evidência será facilmente perceptível pela Fraternidade, e que a vontade da Providência aparecerá claramente.

A SITUAÇÃO DA IGREJA

«Todo esforço hermenêutico que tende a interpretar ‘o erro’ para torná-lo uma ‘verdade mal compreendida’ não pode senão fracassar, necessariamente.»

  1. DICI: Durante este ano de 2020, a crise ligada à Covid-19 afetou também a Igreja e condicionou suas atividades. Como o senhor vê isso?

É interessante notar que com a crise do Covid, a hierarquia eclesiástica perdeu uma oportunidade de mover as almas à verdadeira conversão e penitência, o que é sempre muito mais fácil quando os homens redescobrem sua natureza mortal. Ademais, essa teria sido uma ocasião de lembrar à humanidade, tomada de pânico e desespero, que Nosso Senhor é a Ressureição e a Vida.

Em vez disso, a hierarquia preferiu interpretar a epidemia de uma maneira ecológica, em coerência com princípios muito caros ao Papa Francisco. Assim, o Covid não seria outra coisa que o sinal da rebelião da Terra contra uma humanidade que teria abusado dela – pela exploração desmedida dos seus recursos, a poluição das águas, a destruição das florestas, etc. Isso é lamentável, e é incompatível com uma análise em que subsiste um mínimo de fé e de consciência do que é o pecado – que se mede em relação à majestade ofendida de Deus, e não em relação à poluição da Terra.

Na sua mensagem para o Dia mundial de oração pelo cuidado da criação (Jubileu da Terra), em 1 de setembro de 2020, o próprio papa nos ensina a qual conclusão moral a pandemia deve nos levar: « De algum modo a pandemia atual levou-nos a redescobrir estilos de vida mais simples e sustentáveis. […] Foi possível constatar como a Terra consegue recuperar, se a deixarmos descansar: o ar tornou-se mais puro, as águas mais transparentes, as espécies animais voltaram para muitos lugares donde tinham desaparecido. A pandemia levou-nos a uma encruzilhada. Devemos aproveitar este momento decisivo para acabar com atividades e objetivos supérfluos e destrutivos, e cultivar valores, vínculos e projetos criadores…» Em suma, a crise da Covid nos leva novamente à «conversão ecológica», pedra angular da encíclica Laudato si’. Como se a santidade pudesse ser resumida no respeito ao planeta.

  1. Ao longo dos últimos dois anos houve o Sínodo da Amazônia e a Declaração de Abu Dhabi em que o senhor reagiu por meio de um comunicado de 24 de fevereiro de 2019[2], etc. Como o senhor vê a situação atual, na sequência desses acontecimentos?

Infelizmente, os últimos ensinamentos do papa Francisco parecem confirmar, em definitivo, a má direção tomada no início do seu reinado. Com efeito, no último dia 3 de outubro, o papa assinou a encíclica Fratelli tutti, considerada como o farol da segunda parte de seu pontificado, seguindo a Laudato si’, que foi o ponto de referência de sua primeira parte. Essa encíclica é um desenvolvimento da declaração de Abu Dhabi da qual tira sua inspiração, e que pretendia reconhecer como expressão da vontade de Deus a diversidade das religiões, todas chamadas a construir a paz. Temos aí o ápice catastrófico do ecumenismo, do diálogo inter-religioso, da liberdade religiosa, e sobretudo da negação da realeza universal de Cristo e de seus direitos intangíveis.

Trata-se de um texto que trata muitos assuntos diferentes, mas com uma unidade de princípio muito clara. Esse longo discurso do papa se desenvolve ordenadamente em torno de uma ideia fundamental: a ilusão segundo a qual poderia existir uma fraternidade universal verdadeira – até mesmo sem referência alguma, direta ou indireta, a Cristo e à sua Igreja. Em outras palavras, em torno de uma «caridade» puramente natural, um tipo de filantropia vagamente cristã, à luz da qual se reinterpreta o Evangelho. De fato, percorrendo essa encíclica, temos a impressão que é a filantropia que nos dá a chave interpretativa do Evangelho, e não o Evangelho que nos fornece a luz para esclarecer os homens. Essa fraternidade universal é uma ideia de origem liberal, naturalista e maçônica, e é sobre essa utopia apóstata que se construiu a sociedade contemporânea.

  1. DICI: Bispos como Mons. Schneider e Mons. Viganò destacaram a relação de causa e efeito entre o Concílio Vaticano II e a crise atual. Como o senhor recebe essas tomadas de posição? Seria preciso «corrigir» o Concílio (Mons. Schneider) ou «esquecê-lo» (Mons. Viganò)?

Não é preciso nem dizer que nos alegramos com essas reações, porque bispos fora da FSSPX e sem ligação direta com ela enfim chegaram, por outros meios e percorrendo outros caminhos, à conclusões similares às da FSSPX – e sobretudo à conclusões capazes de esclarecer muitas almas sem direção. Isso é muito encorajador.

Penso que não poderemos simplesmente, para nossa tristeza, «esquecer» o Concílio, porque trata-se de um acontecimento ímpar da história, assim como a queda do Império Romano ou a Primeira Guerra Mundial. Seria preciso antes colocá-lo discussão, em discussão séria – e certamente corrigir tudo o que contém de incompatível com a fé e a Tradição da Igreja.

A própria Igreja resolveria a delicada questão da autoridade desse concílio atípico e bizarro, decidindo sobre a melhor maneira de corrigi-lo. Mas o que é certo é que um erro enquanto tal – e o Concílio contém muitos – não pode de maneira alguma ser considerado como voz da Igreja e ser atribuído a ela: nós podemos e nós devemos dizê-lo. Ademais, os acontecimentos destes últimos anos, a partir do pontificado de Bento XVI, mostraram aos homens de boa vontade que todo esforço hermenêutico que tende a interpretar «o erro» para torná-lo uma «verdade mal compreendida» não pode senão fracassar, necessariamente. É um beco sem saída no qual entrar é vão.

  1. DICI: Os julgamentos de Mons. Lefebvre sobre o Concílio e as reformas pós-conciliares em seu livro Acuso o Concílio (1976), e em sua carta ao cardeal Ottaviani (1966) ainda são atuais?

Os juízos correspondem à posição que sempre foi e sempre será a da FSSPX; nesses pontos ela não pode e não poderá mudar. Quanto mais os acontecimentos se desenrolam, mais vemos a confirmação desse juízo, trazendo à luz a perspicácia sobrenatural de nosso fundador.

  1. DICI: Mons. Schneider, em seu livro Christus vincit (pp. 152-155 da edição francesa), reconhece que sua posição em relação aos argumentos da FSSPX mudou de modo positivo. Como o senhor analisa essa mudança de postura? Acredita que ela seja possível em outros prelados?

Desde sempre Mons. Schneider mostra muita boa vontade, resultado de um espírito humilde e com honestidade intelectual. O que é notório nesse prelado é sua tranquilidade, unida à coragem de falar publicamente em favor da Tradição. Penso que são essas as qualidades – infelizmente muito raras – que lhe conduziram às conclusões que nós conhecemos.

Quanto a outros prelados, estou convencido de que eles também poderiam fazer a mesma jornada, mas somente na medida em que eles tiverem a mesma liberdade moral e o mesmo amor pela verdade. É certamente uma intenção das orações de todos nós.

  1. DICI: Hoje a Missa Tridentina também é rezada fora da FSSPX, por outras comunidades, algo que não acontecia quando a FSSPX foi fundada. Do mesmo modo, há também padres que estão atualmente descobrindo esse rito. Como o senhor vê essa evolução da situação?

Sobretudo nos últimos anos, constatamos que alguns sacerdotes descobriram a Missa de sempre, iniciando um caminho que os leva gradualmente a descobrir a grandeza do seu sacerdócio – e, de um modo mais geral, o tesouro da Tradição. Este é um desenvolvimento muito interessante, porque nada mais é do que aquilo que a Missa causa. Lembro-me do testemunho recebido de um padre que tinha escolhido, não sem oposições severas, celebrar unicamente a Missa Tridentina. Ele contou-me como, ao celebrar esta Missa, começou a repensar todo o seu sacerdócio – e consequentemente tudo o que foi convocado a fazer como sacerdote: pregação, aconselhamento das almas, catecismo, etc. Isso é muito bonito, e só podemos nos alegrar de tais regenerações que vemos brotar na alma do sacerdote.

Dito isto, é imperativo guardar a Missa Tridentina por ela ser a expressão da nossa fé, em particular na divindade de Nosso Senhor, no seu Sacrifício redentor e, consequentemente, na sua realeza universal. Trata-se de viver a Santa Missa, penetrando completamente em todos os seus mistérios, especificamente no mistério da caridade. Isso é incompatível com uma fé morna, centrada no homem, leviana, ecumênica – ou com uma apreciação puramente estética das riquezas do rito tridentino, como às vezes se encontra, infelizmente, entre aqueles que se sentem tentados a dissociar o uso do rito tridentino da necessidade de vivê-lo realmente, de aprofundar-se e, sobretudo, de se deixar assimilar por Nosso Senhor e por sua caridade.

Em suma, podemos dizer: a própria Missa fica estéril se não nos leva a viver em Cristo: per Ipsum, et cum Ipso, et in Ipso. Ela pouco serve se não produzir em nós o desejo de imitar a Nosso Senhor pelo dom de nós mesmos – e tal generosidade que se mostra impossível em um contexto imbuído do espírito do mundo, ou sempre inclinado a se comprometer com ele. A fecundidade da Missa é tanto maior quanto um ardente espírito de sacrifício dispõe as almas a se doar generosamente ao Cristo.

  1. DICI: Recentemente, os meios de comunicação deram considerável repercussão ao escândalo ligado ao cardeal Becciu. O que o senhor pensa sobre isso?

Nem é preciso dizer que não cabe à FSSPX se pronunciar sobre as responsabilidades uns dos outros neste assunto, ou investigá-lo. Dito isto, como filhos da Igreja, não podemos deixar de lamentar este escândalo que, infelizmente, a afeta e a humilha. Isso inevitavelmente nos entristece, pois a santidade da Igreja fica assim obscurecida. Devemos lembrar que, infelizmente, escândalos deste tipo sempre existirão na Igreja, e que Deus os permite misteriosamente em sua Sabedoria, para a santificação dos justos. Portanto, é impróprio ficar escandalizado de uma forma farisaica, à maneira dos protestantes.

Indo mais longe, o que acho importante notar é a atenção que a mídia laica dá sobre tal assunto da Igreja. Essa atenção excede a que é dada a outros acontecimentos da vida da Igreja, ou que os imperadores da Idade Média conseguiam dedicar aos papas de seu tempo. Se lermos nas entrelinhas dos muitos artigos de jornais dedicados a este tema, reconheceremos uma certa complacência, uma satisfação doentia. Parece que o mundo secular não pode desperdiçar tão bela oportunidade de cuspir na face da Esposa de Cristo – contra a qual supostamente jurou indiferença. Isso deve nos fazer refletir, e acima de tudo fazer refletir os iludidos que acreditam na paz entre a Igreja e um mundo que se tornou efetivamente laico e, como ele mesmo diz, tolerante com todo. Isso é falso. Por trás da retórica liberal está sempre o desejo de ver a Igreja desacreditada e destruída, jamais purificada. Não há acordo possível com este mundo.

O LUGAR DO FSSPX NESTA SITUAÇÃO

«Uma Missa verdadeiramente vivida, que nos permite penetrar no mistério da Cruz, é necessariamente apostólica.»

  1. DICI: Como a FSSPX pode fornecer um remédio, dentro de seus meios, à crise atual?

Em primeiro lugar, a nível doutrinário, a FSSPX está ciente de que não pode mudar suas posições. Querendo ou não, tais posições são um ponto de referência para todos aqueles que, na Igreja, procuram a Tradição. É, portanto, em serviço ao próximo, e à própria Igreja, que devemos manter a luz acima do alqueire, sem fraquejar.

No plano prático, os membros da FSSPX devem mostrar que seu apego ao santo Sacrifício da Missa é um apego a um mistério de caridade que deve refletir em toda a Igreja. Isso significa que uma Missa verdadeiramente vivida, que nos permite penetrar no mistério da Cruz, é necessariamente apostólica e nos incitará sempre a buscar o bem do próximo, mesmo dos mais distantes, sem distinção alguma. É uma atitude fundamental – uma disposição moral de benevolência que deve permear todas as nossas ações.

  1. DICI: O objetivo da Fraternidade é o sacerdócio católico e tudo o que diz respeito a ele. É por isso que o senhor se preocupa principalmente com as vocações, a santificação dos sacerdotes e a fidelidade à Missa de sempre. Quais são suas preocupações atuais? 

São exatamente essas que você listou. Estou convicto de que enquanto conseguirmos guardar esses três objetivos, as graças e a luz que necessitamos para o nosso futuro e para as decisões a serem tomadas serão concedidas no momento oportuno.

Ao guardar o sacerdócio, preservamos o que a FSSPX e a Igreja mais valorizam. Na verdade, cada vocação tem um valor infinito. Uma vocação é, sem dúvida, a graça mais preciosa que Deus pode dar a uma alma e à sua Igreja. Portanto, um seminário é o lugar mais sagrado que se pode imaginar ou encontrar na terra. O Espírito Santo continua a atuar ali como no Cenáculo, para transformar as almas dos candidatos ao sacerdócio e torná-los apóstolos. Devemos continuar a empenhar todos os nossos esforços para isso, e a neles investir nossa vontade e energia. Tudo o que construirmos com base no sacerdócio de Nosso Senhor e para perpetuar Seu sacerdócio permanecerá n a eternidade.

  1. DICI: Que tipo de encorajamento o senhor dá aos padres e aos fiéis apegados à Tradição?

Gostaria de lhes salientar que a Providência sempre guiou a FSSPX e sempre a protegeu em meio a mil dificuldades. Essa mesma Providência, sempre fiel às suas promessas, sempre vigilante e generosa, não nos abandonará no futuro, porque deixaria de ser o que é – o que é impossível, porque Deus permanece sempre o mesmo.

Em outras palavras, após 50 anos de existência da FSSPX, nossa confiança está ainda mais enraizada nos inúmeros sinais dessa benevolência – sinais que se manifestaram durante todos esses anos.

Mas prefiro deixar a última palavra ao próprio Nosso Senhor: “Não temais, ó pequenino rebanho, porque foi do agrado do vosso Pai dar-vos o (seu) reino.” (Lc 12,32)

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[1]https://fsspx.news/fr/news-events/news/la-fsspx-a-entre-les-mains-un-tresor-entretien-avec-abbe-davide-pagliarani-41072

[2]https://fsspx.news/fr/news-events/news/communique-de-la-fsspx-la-vraie-fraternite-existe-qu-en-jesus-christ-45323