JOÃO PAULO II: UM NOVO SANTO PARA A IGREJA? – ARTIGO 1/3: O QUE É A CANONIZAÇÃO DOS SANTOS?

João Paulo II: o atentado, o perdão e a misericórdia - A12.com

Padre Jean-Michel Gleize, FSSPX

Fonte: Courrier de Rome, Janeiro de 2014 – Tradução: Dominus Est

[Nota do blog: Texto publicado originalmente antes da canonização do Papa João Paulo II]

PRÓLOGO

Na sua primeira Epistola aos Tessalonicenses (capítulo 1, versículos 6 a 9), São Paulo louva e felicita os fiéis da igreja de Tessalônica pois eles haviam seguido seu exemplo, e também porque eles mesmos deram exemplo a todos os demais fiéis da sua nação. E por isso, graças a eles, a fé foi difundida não somente por toda sua nação, mas também fora dela. Vemos aqui a importância concreta e a eficácia da pregação através do exemplo, da pregação através da santidade de vida. E vemos também a que ponto — se acontecer tal como está previsto — a canonização de João Paulo II representará um acontecimento grave, porquanto esse ato dará a todos os católicos o exemplo enganoso de uma falsa caridade. Falsa caridade oposta em absoluto às exigências da Realeza de Cristo, falsa caridade ecumênica da qual o papa polonês se tornou apóstolo incansável. Esse exemplo dado a toda a Igreja seria ipso facto a apoteose (no sentido mais estrito e etimológico do termo) do Vaticano II: por meio da canonização do Papa João Paulo II, os ensinamentos do Concílio se tornarão intocáveis.

É por isso que é indispensável relembrar alguns princípios elementares, a fim de dar aos fiéis católicos os meios de discernimento, e para que não se deixem ser enganados por raciocínios falsos. Aqueles que querem canonizá-lo não se detêm e se esforçam desde já a incitar os católicos a reconhecer, na vida de João Paulo II, um ideal de santidade autêntica, cuja imitação se impõe a toda a Igreja.

Dirão que não podemos toda hora desobedecer, contestar e recusar o magistério e o papa. Responderemos que, de fato, não podemos desobedecer; e é justamente para continuar a obedecer à Tradição bimilenar da Igreja — para não a contestar e para lhe dar toda a adesão a que Ela nos obriga — que somos obrigados a ser contra todas as iniciativas que se afastam Dela, ainda que venham das mais altas autoridades da Igreja.

A ruptura não é obra daqueles que contestam os méritos de uma eventual canonização de João Paulo II. Ao contrário, ela é obra desse papa, que quis conformar a Igreja às novidades introduzidas pelo Concílio Vaticano II, especialmente ao promulgar uma nova lei. «O instrumento, que é o Código» diz João Paulo II, «combina perfeitamente com a natureza da Igreja, tal como é proposta, principalmente pelo magistério do Concílio Vaticano II, no seu conjunto e de modo especial na sua eclesiologia. Mais ainda, este novo Código pode, de certo modo, ser considerado como grande esforço de transferir, para a linguagem canonística, a própria eclesiologia conciliar. […] A consequência é que a razão fundamental da “novidade” que, sem jamais afastar-se da tradição legislativa da Igreja, se encontra no Concílio Vaticano II, principalmente em sua eclesiologia, constitui também a razão da “novidade” no novo Código. Entre os elementos que exprimem a verdadeira e autêntica imagem da Igreja, cumpre mencionar sobretudo os seguintes: a doutrina que propõe a Igreja como Povo de Deus, e a autoridade hierárquica como serviço; a doutrina que, além disso, apresenta a Igreja como comunhão e, por conseguinte, estabelece as relações que deve haver entre Igreja particular e Igreja universal, e entre a colegialidade e o primado; a doutrina, segundo a qual todos os membros do Povo de Deus participam, a seu modo, do tríplice múnus de Cristo: sacerdotal, profético e régio. A esta doutrina está unida também a que se refere aos deveres e direitos dos fiéis e expressamente dos leigos; enfim, o esforço que a Igreja deve consagrar ao ecumenismo. Portanto, se o Concílio Vaticano II hauriu elementos antigos e novos do tesouro da Tradição e se sua novidade se constitui por estes e outros elementos, é manifesto que o Código deve possuir a mesma característica de fidelidade na novidade e de novidade na fidelidade, conformando-se a ela em seu próprio campo e sua maneira especial de expressar-se»[1].

Nesse sentido, a própria canonização de João Paulo II também será uma novidade. Mas uma novidade contestável para aqueles que querem se manter vinculados à Tradição da Igreja.

ARTIGO 1 – O QUE É A CANONIZAÇÃO DOS SANTOS?

[Cf. Timóteo Zapelena, S.J., De Ecclesia Christi, t. 2, 1954, tese XIX, p. 244-249]

I – Definição da canonização

A canonização dos santos recebe seu nome por inscrever um bem-aventurado no cânon, ou seja, na lista dos santos. Define-se como uma sentença definitiva do soberano pontífice por meio da qual um fiel beatificado é proposto a toda a Igreja para que ela o considere verdadeiramente como santo, participante da felicidade no céu e que por isso deve ser, aqui embaixo, objeto de culto.

Primeiramente, a canonização é uma sentença definitiva, ou seja, um juízo derradeiro e peremptório, que não poderá ser nem ab-rogado, nem modificado, nem revisado ou reexaminado.

Em segundo lugar, a canonização é uma sentença reservada somente ao sumo pontífice (Código de Direito Canônico de 1917, cânon 1999, §1). No passado, a beatificação e a canonização eram realizadas pelo próprio bispo do local. Foi o Papa Alexandre III, em 1170, que reservou totalmente à Santa Sé esse gênero de atos, e é Urbano VIII quem proíbe, em 1634, sob a ameaça das mais pesadas punições, que se atribua a um fiel defunto um culto público sem que o sumo pontífice tenha em primeiro lugar procedido com sua beatificação ou canonização.

A canonização é, em terceiro lugar, uma sentença por meio da qual um fiel já beatificado é proposto a toda a Igreja para que ela o considere obrigatoriamente como verdadeiro santo, e que ele goza da felicidade no céu e, portanto, que ele deve ser aqui embaixo objeto de um culto. Com efeito, a canonização traz consigo um duplo juízo. Um juízo especulativo, onde se afirma que o fiel beatificado é santo e conseguiu ir para o céu. Um juízo prático e perceptivo, onde se decide que esse fiel beatificado deve ser aqui embaixo objeto de um culto. E esclarece-se que essa sentença propõe esse fiel beatificado «a toda a Igreja para que ela o considere obrigatoriamente assim», porque todos os fiéis estão obrigados a crer sem a menor dúvida que a pessoa canonizada é santa e alcançou o céu, e a considerá-la como possuidora do direito de um culto público.

Tais precisões nos mostram qual é a diferença entre a canonização e a beatificação. A beatificação é um juízo que, longe de ser derradeiro e definitivo, somente precede e prepara a canonização. Ela só permite o culto, sem torná-lo obrigatório. E na maioria das vezes, o decreto de uma beatificação não tem o alcance de um juízo universal que diria respeito a toda a Igreja. Ela tem somente o alcance de um juízo particular e diz respeito somente a uma província, região, país ou sociedade religiosa.

II – Propriedade da canonização: ela é infalível

A infalibilidade do sumo pontífice não se estende à beatificação dos servos de Deus do fato mesmo de que esta última não significa uma sentença derradeira e peremptória. Somente uma sentença deste gênero pode efetivamente beneficiar-se do privilégio da infalibilidade. Não obstante, pode-se piedosamente crer (com fé humana) que Deus não permitiria jamais que fosse beatificado um fiel defunto que não fosse santo, mas pecador, e inclusive que ele fosse réprobo, sobretudo se o decreto de beatificação dá sua aprovação a um culto universal.

O verdadeiro objeto formal da infalibilidade da qual goza o papa quando ele canoniza um santo corresponde a tudo o que ele define e somente a isso, ou seja, ao fato tríplice que a pessoa histórica que é inscrita no catálogo dos santos seja verdadeiramente santa, tenha obtido a felicidade celeste e merecido ou pedido um culto. Não se pode admitir a opinião de certos autores isolados que, para resolver certas dificuldades de ordem histórica, gostariam de restringir a infalibilidade da canonização ao ponto em que ela apresenta somente um retrato ideal indubitavelmente revestido das virtudes e milagres, que não guarda relação alguma com a realidade histórica da pessoa à qual lhe seria atribuída.

III – Provas da infalibilidade das canonizações

Primeiro argumento. A Igreja é infalível para dizer até onde estende sua própria infalibilidade. Ora, a Igreja se atribui a infalibilidade quando Ela canoniza os santos. Certamente essa infalibilidade nas canonizações ainda não foi ela mesmo objeto de uma definição infalível e, em particular, o Concílio Vaticano I não considerou oportuno se pronunciar categoricamente em seu favor. Todavia, a infalibilidade das canonizações representa a doutrina comum dos teólogos e ela está pressuposta pela disciplina eclesiástica. Por outro lado, a Igreja se atribui a infalibilidade cada vez que ela propõe de maneira peremptória e irrevogável o que Ela obriga os fiéis a cumprir, e somente neste caso em específico. Ora, a Igreja propõe de maneira peremptória e irrevogável a canonização dos santos e ela obriga todos os fiéis a reconhecê-la enquanto tal. Podemos nos dar conta disso se observarmos as expressões as quais a Igreja usa quando ela realiza esse ato ou exercício solene de seu magistério. Como por exemplo nesses termos utilizados por Pio XII: «Pela honra da Santíssima e indivisa Trindade, pela exaltação da fé católica e crescimento da religião cristã, pela autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, […] nós decidimos e definimos que os bem-aventurados João de Brito, mártir, José Cafasso e Bernardino Realino, confessores, são santos e nós os inscrevemos no catálogo dos santos. Nós estabelecemos que sua memória deve ser objeto de culto por parte de toda a Igreja»[2]. Duas coisas aparecem claramente nesta fórmula. Primeiramente, a definição do papa é revestida de um caráter definitivo. Em segundo lugar, seu objeto não é somente um retrato ideal ou um tipo de santidade; trata-se, ao contrário, da santidade da glória celeste e do culto que pertencem a um personagem histórico.

Segundo argumento. A infalibilidade da Igreja estende-se tão longe quanto exige o fim para o qual Cristo estabeleceu o magistério dessa mesma Igreja. Ora, esse fim em razão do qual Cristo estabeleceu o magistério e quis que ele fosse revestido do privilégio da infalibilidade consiste em instruir adequadamente os fiéis acerca da doutrina e a dirigir sua vida de maneira segura, em conformidade com a lei do Evangelho. E para dirigir seus fiéis no caminho da justiça e da salvação, a Igreja procede de duas maneiras. Em primeiro lugar, Ela propõe as regras objetivas da vida cristã reveladas por Deus; e, em segundo lugar, Ela coloca diante dos nossos olhos exemplos vivos e concretos, onde a regra de vida evangélica é colocada em prática, representando assim para eles o modelo excepcional e ao mesmo tempo o espelho e sustentáculo do qual eles necessitam. É por isso que o socorro divino prometido por Cristo se estende adequadamente a esses atos pelos quais o magistério propõe aos fiéis os exemplos heroicos de vida cristã que eles devem imitar e invocar, tanto quanto se estende àqueles atos pelos quais o mesmo magistério lhes prega as regras ordinárias da santidade.

Terceiro argumento. Se o soberano pontífice pode se enganar no ato solene da canonização de um santo, é necessário admitir que ele pode impor à Igreja um culto objetivamente contrário à integridade. Mas isso é muito difícil de se conceber, e parece muito inconveniente. Em tal situação, acaso o sucessor de Pedro continuaria o fundamento da fé evangélica, confirmando seus irmãos cristãos nessa fé?

Como a Igreja sabe que um santo está no céu? Ela não tem tal certeza por meio de uma nova revelação, mas pela assistência de Deus que dirige sua Igreja quando Ela examina a vida desse santo, suas virtudes heroicas e os milagres obtidos em seu nome.

Continua…

Notas

  1. João Paulo II, Constituição apostólica Sacrae disciplinae leges, 25 de janeiro de 1983, disponível em https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/apost_constitutions/documents/hf_jp-ii_apc_25011983_sacrae-disciplinae-leges.html.
  2. Acta apostolicae sedis, t. 30 (1947), passim.