JOÃO PAULO II: UM NOVO SANTO PARA A IGREJA? – ARTIGO 3/3: JOÃO PAULO II PODE SER CANONIZADO?

2210-S-Joao-Paulo-II-768x411

Padre Jean-Michel Gleize, FSSPX

Fonte: Courrier de Rome, Janeiro de 2014 – Tradução: Dominus Est

[Nota do blog: Texto publicado originalmente antes da canonização do Papa João Paulo II]

ARGUMENTOS A FAVOR E CONTRA

Parece que sim

Primeiramente, a canonização de João Paulo II foi oficialmente anunciada pela Santa Sé. Ela está prevista para o domingo, 27 de abril de 2014. Sendo a canonização um ato reservado ao sumo pontífice, somente ele pode decidir propor um santo como exemplo a toda a Igreja e, se ele o fez, deve-se concluir que a canonização desse santo é possível. Visto que o Papa Francisco decidiu canonizar João Paulo II, ele é portanto canonizado.

Em segundo lugar, para poder ser canonizado, um fiel defunto deve primeiro ser beatificado. Ora, João Paulo II foi beatificado por Bento XVI. Portanto, João Paulo II pode ser canonizado.

Parece que não

Em terceiro lugar, João Paulo II não foi santo. Ora, nenhum ato poderia reconhecer como santo aquele que não o foi. Portanto, nenhum ato poderia reconhecer como santo João Paulo II e, visto que a canonização é o ato pelo qual o papa reconhece oficialmente a santidade de um fiel defunto, João Paulo II não poderia ser canonizado. Prova da primeira premissa: em suas palavras e atos públicos, João Paulo II foi frequentemente ocasião de ruína para a fé e para a religião dos fiéis.

Em quarto lugar, os milagres atribuídos a João Paulo II são duvidosos. Ora, nenhum ato poderia reconhecer como desfrutando da glória celeste aquele cuja intercessão é duvidosa que os milagres sejam realizados. Portanto, nenhum ato poderia reconhecer João Paulo II como desfrutando da glória celeste e, visto que a canonização é o ato pelo qual o papa reconhece oficialmente a glória celeste de um fiel defunto, João Paulo II não poderia ser canonizado.

Princípio de resposta

A canonização é o ato pelo qual o papa declara a santidade e a glória celeste de um fiel defunto. Ela os declara, ou seja, que ela dá a conhecer após ter verificado sua existência. Da mesma maneira que «o Espírito Santo não foi prometido aos sucessores de São Pedro para que estes, sob a revelação do mesmo, pregassem uma nova doutrina, mas para que, com a sua assistência, conservassem santamente e expusessem fielmente o depósito da fé, ou seja, a revelação herdada dos Apóstolos»[28], também o poder de canonizar não foi dado ao papa para que ele tornasse santo e glorioso aquele que não o é, mas para que ele declare e publique fielmente a glória celeste e as virtudes heroicas daquele que efetivamente mereceu aquela primeira ao exercer realmente as estas segundas.

A reta razão esclarecida pela fé está em condições de constatar a ausência das virtudes heroicas na vida de João Paulo II. Com efeito, as virtudes heroicas são as virtudes sobrenaturais infusas, crescidas até ao mais alto grau. Enquanto tais, elas estão conexas na caridade, ou seja, todas elas pressupõem a caridade que está em sua fonte, e na alma de um fiel elas devem existir e crescer juntas. E a caridade presume a fé. Ora, é patente que João Paulo II não exerceu a virtude sobrenatural da fé no mais alto grau, visto que suas palavras e seus atos constituem às vezes omissão grave — e às vezes até a negação aberta, ou ao menos o questionamento — de muitas verdades da fé. É igualmente manifesto, pelas mesmas razões, que João Paulo II não praticou a virtude sobrenatural da religião no mais alto grau[29]. A verdadeira fé e a verdadeira religião só podem ser exercidas na verdadeira Igreja fundada por Jesus Cristo, que é a Igreja católica romana. «Um homem não pode se salvar se não está na Igreja católica», diz Santo Agostinho. «Fora da Igreja católica pode haver tudo, exceto a salvação. Pode haver a honra (ser bispo), pode haver os sacramentos, pode-se cantar o Aleluia, pode-se responder Amém, pode-se ter o Evangelho, pode-se ter e pregar a fé em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, mas jamais pode-se encontrar a salvação se não estiver na Igreja Católica. […] Pode-se inclusive derramar seu sangue, mas sem receber a coroa»[30]. Pode-se seriamente pensar e elevar sobre os altares um papa que se exprime sobre essas graves questões da forma como fez João Paulo II?

Dirigindo-se diretamente aos luteranos, João Paulo II repete por conta própria os ensinamentos de uma nova eclesiologia, manifestamente oposta àquela da Tradição da Igreja: «Por isso, com gratidão, posso dirigir-vos as mesmas palavras do Concílio Vaticano II sobre as comunidades cristãs que não estão em plena comunhão com Roma. Não obstante as diferenças que subsistem entre elas e a Igreja católica em matéria de moral e disciplina, que nós consideramos obstáculos para uma plena comunhão, o Concílio declara expressamente que “por isso, as igrejas e comunidades separadas, embora creiamos que tenham defeitos, de forma alguma estão despojadas de sentido e de significação no mistério da salvação. Pois o Espírito de Cristo não recusa servir-se delas como de meios de salvação cuja virtude deriva da própria plenitude de graça e verdade confiada à Igreja católica”[31]»[32].

Superando a letra, mas não o espírito desses ensinamentos, João Paulo II considera como um dos maiores atos do seu pontificado a abertura da Porta Santa em São Paulo Extramuros, em 18 de janeiro de 2000. «Para empurrar essa Porta», sublinha ele, «havia não somente minhas mãos, mas também aquelas do metropolitano Athanasios, representante do Patriarcado ecumênico de Constantinopla, e as do Primado anglicano George Carey. Em nossas pessoas, era toda a cristandade que estava representada, afligida por causa das divisões históricas que a ferem, mas, ao mesmo tempo, estando na escuta do Espírito de Deus que a empurra para a plena comunhão»[33]. Como é possível dizer que as comunidades cismáticas ou heréticas representam a cristandade? Como, sem evitar grave escândalo, associar os responsáveis dessas comunidades a um ato cultual exemplar?

Reiterando sete anos mais tarde a reunião inter-religiosa de Assis em 1986, o papa polonês declarava ainda: «Eis-nos aqui reunidos para dirigir nossas orações ao Senhor da história, cada um à sua maneira e em sua tradição religiosa, implorando-Lhe o precioso dom da paz, da qual Ele é o único autor verdadeiro. […] Cada um de nós veio aqui movido pela fidelidade à sua tradição religiosa, mas ao mesmo tempo na consciência e no respeito pela tradição dos outros, pois nos reunimos aqui com o mesmo propósito: o de rezar e jejuar pela paz. A paz reina entre nós. Cada um aceita o outro como ele é e o respeita como irmão e irmã na humanidade comum e nas convicções pessoais. As diferenças que nos separam permanecem. E este é o ponto essencial e o sentido deste encontro e das orações que se seguirão: mostrar a todos que só na aceitação recíproca e no consequente respeito mútuo, aprofundado pelo amor, está o segredo de uma humanidade finalmente reconciliada, de uma Europa digna da sua verdadeira vocação. Queremos contrastar com humildade, mas também vigorosamente às guerras e os conflitos com o espetáculo da nossa harmonia, respeitando a identidade de cada um. A esse respeito, permitam-me citar o primeiro versículo do Salmo 132: “Ó quão bom e quão suave para irmãos viverem juntamente!”»[34]. Se as diferenças religiosas, dogmáticas e disciplinares não impedem a oração comum e a reconciliação da humanidade, elas só poderiam ocorrer em um plano onde a única verdadeira religião católica seria considerada como uma respeitável opção dentre outras. Isso é próprio do indiferentismo denunciado por Pio XI, quando cita aqueles que nutrem a esperança «de que, sem dificuldade, ocorrerá que os povos, embora cada um sustente sentença diferente sobre as coisas divinas, concordarão fraternalmente na profissão de algumas doutrinas como que em um fundamento comum da vida espiritual. Por isto costumam realizar por si mesmos convenções, assembleias e pregações, com não medíocre frequência de ouvintes e para elas convocam, para debates, promiscuamente, a todos: pagãos de todas as espécies, fiéis de Cristo, os que infelizmente se afastaram de Cristo e os que obstinada e pertinazmente contradizem à sua natureza divina e à sua missão. Sem dúvida, estes esforços não podem, de nenhum modo, ser aprovados pelos católicos, pois eles se fundamentam na falsa opinião dos que julgam que quaisquer religiões são, mais ou menos, boas e louváveis, pois, embora não de uma única maneira, elas alargam e significam de modo igual aquele sentido ingênito e nativo em nós, pelo qual somos levados para Deus e reconhecemos obsequiosamente o seu império. Erram e estão enganados, portanto, os que possuem esta opinião: pervertendo o conceito da verdadeira religião, eles repudiam-na e gradualmente inclinam-se para o chamado Naturalismo e para o Ateísmo. Daí segue-se claramente que quem concorda com os que pensam e empreendem tais coisas afasta-se inteiramente da religião divinamente revelada»[35].

A caridade da qual os santos nos deixaram o exemplo é essencialmente missionária. João Paulo II nos dá o contraexemplo de um humanitarismo e de um indiferentismo ecumenistas.

João Paulo II informou ao patriarca cismático de Constantinopla sua vontade de «relegar ao esquecimento as antigas excomunhões e se colocarem na rota para a recomposição da plena comunhão». Segundo ele, a Igreja católica e as comunidades ortodoxas «se reconheciam como Igrejas irmãs, responsáveis juntas pela salvaguarda da única Igreja de Deus, na fidelidade ao desígnio divino, e especialmente no que diz respeito à unidade». De qual unidade pode se tratar, visto que a Igreja é indefectivelmente una? A unidade da Igreja não tem de ser recomposta; são os cismáticos que devem voltar a ela. A unidade da Igreja é idêntica à da Igreja de Deus e da Igreja Católica, da qual os cismáticos ortodoxos estão excluídos. Somente o vigário de Cristo tem a responsabilidade suprema desse triplo vínculo de unidade entre fé, culto e governo que define a sociedade eclesiástica. Falar da maneira que fala aqui João Paulo II é abrir o caminho para um latitudinarismo já condenado por seus predecessores. Pio XI, com efeito, rejeita a audácia daqueles que dizem ser preciso «colocar de lado e afastar as controvérsias e as antiquíssimas variedade de sentenças que até hoje impedem a unidade do nome cristão e, quanto às outras doutrinas, elaborar e propor uma certa lei comum de crer, em cuja profissão de fé todos se conheçam e se sintam como irmãos, pois, se as múltiplas igrejas e comunidades forem unidas por um certo pacto, existiria já a condição para que os progressos da impiedade fossem futuramente impedidos de modo sólido e frutuoso»[37]. Cooperar com tal empreendimento seria, como diz ainda Pio XI, «[conceder] autoridade a uma falsa religião cristã, sobremaneira alheia à única Igreja de Cristo»[38].

João Paulo II não hesitou em celebrar as vésperas em Roma junto com o chefe da comunhão anglicana. Ele declarou nessa ocasião que «essa oração ecumênica revela a realidade da nossa fraternidade em Cristo e nos move a confiar ao seu amor misericordioso o futuro da nossa unidade e o reforço dos vínculos que já nos unem (Cf. Ut unum sint, nº 26). […] Já estamos reunidos em uma oração comum diante do nosso único Pai, sendo gratos e dando graças por nossa real comunhão, mesmo que ela seja imperfeita. Tornemo-nos conscientes de tudo o que nos une e assim adquiriremos a coragem para trabalhar com cada vez mais ardor para superar as divisões que permanecem (Cf. Ut unum sint, nº 22)»[39]. Em declaração conjunta assinada posteriormente, o papa e o chefe dos anglicanos dão graças a Deus «pelo fato que, em muitos lugares do mundo, os anglicanos e católicos reconhecem-se mutuamente como irmãos e irmãs em Cristo e exprimem esse reconhecimento pela oração comum, a ação comum e o testemunho comum»[40]. A partir de 1535, centenas de católicos ingleses, clérigos e leigos, dos quais muitos depois vieram a ser beatificados ou declarados veneráveis, foram martirizados no subúrbio de Tyburn, em Londres, onde permanentemente era erguida a forca dos condenados à morte. Somente sob o reino de Elisabeth I, aconteceram 189 execuções (62 leigos, 111 padres seculares e 16 religiosos). O sangue deles condena, por si só, a nova teologia ecumenista de João Paulo II. Dentre eles, o jesuíta Edmund Campion declarou ao ministro anglicano que viera ajudá-lo: «Senhor, eu e você não somos da mesma religião». Ele o exorta a deixá-lo rezar sozinho.

João Paulo II também acreditava que «o diálogo entre luteranos e católicos também trouxe uma contribuição importante na superação de antigas polêmicas e aproximação rumo a uma visão comum»[42]. Ele inclusive disse o seguinte: «O ano jubilar, enquanto acontecimento espiritual, proporciona aos católicos e aos luteranos várias possibilidades das quais juntos devemos tirar proveito. As Vésperas ecumênicas, que vivemos por ocasião da elevação de Santa Brígida da Suécia a co-Padroeira da Europa, proporcionaram-nos uma antecipação disso. Naquela ocasião, quando demos graças a Deus com hinos e Salmos, apercebi-me do “espaço espiritual”, no qual os cristãos se encontram juntos diante do seu Senhor (cf. Ut unum sint, nº 83). O espaço espiritual comum é maior do que algumas barreiras confessionais que nos dividem no limiar do terceiro milénio. Se os cristãos, apesar das suas divisões, souberem cada vez mais unir-se em oração comum à volta de Cristo, aumentará a sua consciência de quanto é limitado aquilo que os divide em comparação com o que os une (cf. Ut unum sint, nº 22)»[43]. Apesar do dito, pensemos: o que divide os católicos e protestantes é a realidade do santo sacrifício propiciatório da missa, definido pelo Santo Concílio de Trento; é a realidade da mediação universal da Santíssima Virgem, ensinada por São Pio X em Ad diem illum e por Pio XII em Ad caeli reginam; é a realidade do sacerdócio católico, definido pelo Santo Concílio de Trento e ensinado por Pio XII; é a realidade do primado de jurisdição do bispo de Roma definida pelos santos concílios de Constantinopla IV, Lyon II, Florença e Vaticano I.

João Paulo II declarou ao principal rabino da sinagoga de Roma: «Cada uma das nossas religiões [cristã e judaica], na plena consciência dos vínculos que unem uma à outra, e em primeiro lugar desse vínculo do qual fala o Concílio, quis ser reconhecida e respeitada em sua identidade própria, para além de todo sincretismo e de toda aproximação equívoca»[44]; e ele disse aos judeus: «Sim, por minha voz a Igreja católica […] reconhece o valor do testemunho religioso do vosso povo»[45]. João Paulo II jamais chamou os judeus à conversão a Cristo. Ele inclusive baniu explicitamente o procedimento da sua metodologia, assim como mostra como exemplo uma de suas intervenções durante um colóquio judaico-cristão: «Vosso colóquio pode ajudar a evitar o desprezo ao sincretismo, a confusão da nossa identidade recíproca de crentes, a sombra e a suspeição do proselitismo»[46]; «Precisamos especificar, sobretudo àqueles que mantêm-se céticos, ou mesmo hostis, que essa aproximação não poderia se confundir com um certo relativismo religioso e menos ainda com uma perda de identidade? […] Que Deus conceda aos cristãos e aos judeus encontrarem-se mais, intercambiar com profundidade e a partir de sua própria identidade, sem jamais obscurecê-la tanto de um lado como do outro, mas buscando verdadeiramente a vontade de Deus que se revelou»[47]. «Creio que nós, cristãos e muçulmanos, devemos reconhecer com alegria os valores religiosos que temos em comum, e dar graças a Deus por isso. […] cremos que Deus será Juiz misericordioso ao final dos tempos e que, depois da ressureição, estará satisfeito de nós assim como nós estaremos satisfeitos Dele. […] Cristãos e muçulmanos frequentemente nos entendemos mal, e algumas vezes, em épocas passadas, nos enfrentamos e inclusive nos esgotamos em polêmicas e guerras. Creio que Deus nos convida hoje a mudar nossos velhos costumes. Temos que saber nos respeitar e também nos estimularmos mutuamente nas obras de bem e ao longo do caminho que nos conduz a Deus»[48]. Assim como o judaísmo depois de Cristo, a religião de Maomé nega o mistério da Santíssima Trindade e também o da Encarnação redentora. Junto de toda a Tradição da Igreja, o doutor angélico vê aí uma idolatria pura e simples, que nenhum motivo de credibilidade poderia recomendar aos olhos da reta razão[49].

João Paulo II afirmou: «O Estado não pode reivindicar uma competência, direta ou indireta, sobre as convicções religiosas das pessoas. Ele não pode se arrogar o direito de impor ou de impedir a profissão e a prática públicas da religião de uma pessoa ou de uma comunidade. Nessa matéria, as Autoridades civis têm o dever de garantir que os direitos dos indivíduos e das comunidades sejam respeitados, ao mesmo tempo em que salvaguarda a ordem pública justa. Mesmo quando um Estado concede a uma religião determinada uma posição jurídica particular, ele deve reconhecer legalmente e respeitar efetivamente o direito à liberdade de consciência em todos os cidadãos, assim como dos estrangeiros que residem em seu território, mesmo que temporariamente, por razões profissionais ou outras. […] Uma ordem social justa requer que todos – individualmente ou em comunidade – possam professar suas convicções religiosas sempre respeitando as demais»[50]. Ele ainda acrescenta: «É de se auspiciar que a autêntica liberdade religiosa seja concedida a todos, em qualquer lugar, e para isso a Igreja se empenha a fim de que tal aconteça nos vários países, especialmente nos de maioria católica, onde ela alcançou uma maior influência. Não se trata porém, de um problema de maioria ou de minoria, mas de um direito inalienável de toda a pessoa humana»[51]. Essa declaração exprime a recusa explícita da Realeza Social de Cristo. Ela cai sob o golpe da condenação lançada por São Pio X em Vehementer nos: «Nós reprovamos e condenamos a lei votada na França sobre a separação entre Igreja e Estado como profundamente injuriosa em relação a Deus, e que ela renega oficialmente, colocando em princípio, que a República não reconhece qualquer culto»[52].

A reta razão esclarecida pela fé está igualmente em condições de duvidar que os milagres requeridos para atestar a bem-aventurança celeste e confirmar a virtude heroica de um santo tenham sido suficientemente estabelecidos no que diz respeito a Karol Wojtyla. Com efeito, o discernimento do único milagre evocado até aqui para a beatificação deixa fortemente a desejar. Por um lado, a ligação entre essa cura e a invocação de João Paulo II não está suficientemente estabelecida. Por outro lado, o diagnóstico de uma doença de Parkinson deixa frequentemente margem para dúvidas e, neste caso, não está suficientemente estabelecido que a cura seja definitiva e nem que ela seja naturalmente inexplicável[53].

Respostas aos argumentos

A resposta ao primeiro e ao segundo já foi dada no princípio de resposta: nenhum papa pode decidir canonizar quem não é santo. Mesmo que ele o fizesse, esse ato — por revestir-se de aparências enganosas de uma canonização — não enganaria nenhum daqueles cuja razão, já retificada, está esclarecida pelo ensinamento constante que representam todas as canonizações realizadas em conformidade com o espírito da Igreja. Em particular, todos os santos mártires vítimas da perseguição cismática, herética, judaica ou idólatra são a condenação sempre atual do ecumenismo incessante fomentado pelo papa polonês.

Estamos de acordo com a terceira e a quarta, desde que se considere as precisões dadas até aqui.

EPÍLOGO

Se devemos considerar João Paulo II santo, devemos considerar sua doutrina irreprovável até nos mínimos detalhes. Com efeito, o grau heroico da virtude da fé implica uma docilidade sem falhas a todo o espírito do magistério, que se exprime através de todo o ensinamento dos doutores, e não somente a adesão à letra dos ensinamentos do magistério infalível e ao menor denominador comum dos dogmas obrigatórios.

Se João Paulo II é realmente santo, os fiéis católicos devem reconhecer que a Igreja católica e as comunidades ortodoxas são Igrejas irmãs, responsáveis juntas pela salvaguarda da única Igreja de Deus. Eles devem, portanto, reprovar o exemplo de Josaphat Kuncewicz, arcebispo de Polotsk (1580-1623). Convertido da ortodoxia, ele publicou em 1617 uma Defesa da unidade da Igreja onde ele reprovava os ortodoxos por ferirem a unidade da Igreja de Deus, e foi por isso que ele excitou o ódio desses cismáticos que o martirizaram.

Se João Paulo II é realmente santo, os fiéis católicos devem reconhecer os anglicanos como irmãos e irmãs em Cristo e exprimir esse reconhecimento pela oração comum. Eles devem, portanto, reprovar o exemplo de Edmund Campion (1540-1581), que recusou rezar com o ministro anglicano no momento de seu martírio.

Se João Paulo II é realmente santo, os fiéis católicos devem considerar que o que divide católicos e protestantes – ou seja, a realidade do santo sacrifício propiciatório da Missa, a realidade da mediação universal da Santíssima Virgem, a realidade do sacerdócio católico, a realidade do primado de jurisdição do bispo de Roma – é pouca coisa se comparado ao que lhes pode unir. Eles devem, portanto, reprovar o reprovar o exemplo do capuchinho Fiel de Sigmaringa (1578-1622) que foi martirizado pelos reformados protestantes, junto dos quais ele havia sido enviado em missão e que compusera uma Disputatio contra os ministros protestantes a respeito do santo sacrifício da Missa.

Se João Paulo II é realmente santo, os fiéis católicos devem reconhecer que após a ressureição final, Deus estará satisfeito com os muçulmanos e os muçulmanos estarão satisfeito com Ele. Eles devem, portanto, reprovar o exemplo do capuchinho José de Leonissa (1556-1612), que trabalhou incontavelmente em Constantinopla junto aos cristãos reduzidos à escravidão pelos adeptos do Islã: seu zelo lhe valeu uma acusação junto ao sultão por haver ultrajado a religião muçulmana e aplicaram-lhe o suplício da forca: manteve-se três dias suspendido a uma corrente, enganchado por uma mão e um pé. Os fiéis católicos deveriam também reprovar o exemplo de Pedro Mavimène, morto em 715 e após ter sido supliciado durante três dias por haver insultado Maomé e o Islã.

Se João Paulo II é realmente santo, os fiéis católicos devem reconhecer que os chefes de Estado não podem se arrogar o direito de impedir a profissão pública de uma falsa religião. Eles devem, portanto, reprovar o exemplo do rei da França Luis IX, que limitou tanto quanto pôde o exercício público das religiões não cristãs.

Todavia, Josaphat Kuncewicz foi canonizado por Pio IX, e Pio XI consagrou-lhe uma encíclica, sendo sua festa na Igreja o dia 14 de novembro. Edmund Campion foi canonizado por Paulo VI em 1970 e sua festa se comemora no dia 1 de dezembro. Fiel de Sigmaringa foi canonizado em 1746 e Clemente XIV designou-o como «protomártir da Propaganda»; sua festa no calendário da Igreja é no dia 24 de abril. Pedro de Arbués foi canonizado por Pio IX em 1867. José de Leonissa foi também canonizado por Bento XIV em 1737 e sua festa na Igreja é no dia 4 de fevereiro; Pio IX proclamou-o patrono das missões da Turquia. São Pedro Mavimène, enfim, é celebrado na Igreja no dia 21 de fevereiro. Quanto ao rei São Luis, seu exemplo suficientemente conhecido é ilustrado pelos ensinamentos do Papa São Pio X, também canonizado. Se João Paulo II é realmente santo, todos os papas que canonizaram todos esses santos estão gravemente enganados e deram a toda a Igreja não um exemplo de uma santidade autêntica, mas o escândalo da intolerância e do fanatismo. É impossível escapar de tal dilema.

O único meio de escapar é chegar à dupla conclusão que se impõe: Karol Wojtyla não pode ser canonizado e o ato que pretenderia declarar sua santidade perante toda a Igreja só pode ser uma falsa canonização.

Notas

  1. Concílio Vaticano I, constituição Pastor aeternus, capítulo IV, DS 3070.
  2. Para mais detalhes, o leitor poderá se reportar ao livro do Padre Patrick de la Rocque, Jean Paul II. Doutes sur une béatification, publicado em éditions Clovis, assim como o estudo publicado na revista The Remnant e cuja tradução francesa foi publicada sob o título «Exposé des réserves sur la prochaine béatification de Jean-Paul II» em DICI nº 233 de 16 de abril de 2011. Acrescentamos enfim o estudo intitulado «Dúvidas sobre a canonização de João XXIII e de João Paulo II» publicado em DICI nº 284 de 18 de outubro de 2013. Assinalamos enfim o estudo de Daniel Le Roux, Pierre M’aimes-tu?, Fideliter, 1998.
  3. Santo Agostinho, Sermão ao povo da Cesareia, nº 6 em PL 43/695.
  4. Decreto Unitatis redintegratio, nº 1.
  5. «Discurso durante o encontro com bispos luteranos da Dinamarca, 6 de junho de 1989» em DC 1988, p. 688-689.
  6. «Discurso à cúria em 21 de dezembro de 2000» em DC 2240, p. 56-57.
  7. «Discurso de boas-vindas aos participantes do encontro de oração, penitência e jejum para a paz em Assis, em 9 de janeiro de 1993» em DC 2066, p. 166-167.
  8. Pio XI, encíclica Mortalium animos, disponível em https://www.vatican.va/content/pius-xi/pt/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_19280106_mortalium-animos.html
  9. «Declaração comum de João Paulo II e do Patriarca Ortodoxo Bartholomeos I, assinado no Vaticano em 29 de junho de 1995» em DC 2121, p. 734-735.
  10. Pio XI, encíclica Mortalium ânimos
  11. Id., ibidem.
  12. «Homilia nas vésperas ecumênicas celebradas em Roma, na igreja dos Santos André e Gregório no monte Celio, na presença do primado da Comunhão anglicana, o doutor Carey, em 5 de dezembro de 1996» em DC 2152, p. 85.
  13. 40. «Declaração comum de João Paulo II e do Primado da Comunhão anglicana, assinada em 5 de dezembro de 1996» em DC 2152, p. 88-89.
  14. Evelyn Waugh, Edmond Campion, Amiot Dumont, 1950, p. 176.
  15. «Alocução durante a celebração ecumênica de Paderborn, em 22 de junho de 1996» em DC 2142, p. 662-663.
  16. «Discurso do Papa João Paulo II durante o encontro com a delegação da Federação Luterana Mundial em 9 de dezembro de 1999», disponível em https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/speeches/1999/december/documents/hf_jp-ii_spe_09121999_lutheran-fed.html
  17. «Discurso de 13 de abril de 1986 durante visita à sinagoga de Roma» em DC nº 1917, p. 438.
  18. «Discurso de 9 de outubro de 1998 à comunidade judaica da Alsácia» em DC nº 1971, p. 1027.
  19. «Discurso de 6 de novembro de 1986 no colóquio internacional judaico-cristão» em DC nº 1931, p. 34.
  20. «Discurso de 6 de março de 1982 aos delegados das conferências episcopais para as relações com o judaísmo» em DC nº 1827, p. 340.
  21. «Discurso durante o encontro com a juventude no estádio de Casablanca, em 18 de agosto de 1985» em DC 1903, p. 945.
  22. O leitor poderá se reportar ao estudo de Edouard Pertus, Connaissance élémentaire de l’Islam, suplemento do nº 65 da Action Familiale et Scolaire, 1985.
  23. «Mensagem de 8 de dezembro de 1987 para a Jornada mundial da paz de 1988» em DC 1953, p. 2.
  24. Encíclica Redemptoris missio de 7 de dezembro de 1990, nº 39, disponível em http://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_07121990_redemptoris-missio.html
  25. São Pio X, Encíclica Vehementer nos de 11 de fevereiro de 1906.
  26. Para mais detalhes o leitor poderá se reportar ainda aos estudos citados na nota 29.