“Trata-se de saber se se deseja viver com os Anjos ou com as bestas…”
Fonte: La part des Anges n° 13 – Tradução: Dominus Est
Essas palavras de Psichari resumem muito bem a grande diferença que divide os homens. Elas simplesmente repetem o que São Paulo disse aos Gálatas: Andai segundo o espírito… a carne tem desejos contrários ao espírito e o espírito desejos contrários a carne. Essas coisas são contrárias entre si. A carne é o que se opõe ao espírito… é a matéria, é a obsessão do corpo com todos os seus vícios. É também a tirania do poder, da dominação pelo dinheiro ou pela ciência pervertida, seja ela econômica, ecológica ou médica. O marxismo continua, todos os dias, a materializar com sucesso as massas…
É nesse mundo materialista que sobrevivemos, e os pseudo valores que ele nos impõe tendem cada vez mais a sufocar nossa realidade espiritual. O fato é que as pessoas não acreditam mais. Não apenas não acreditam mais no Credo, mas também não acreditam mais no espírito, ou seja, em Deus, na alma espiritual: elas não sabem mais que têm uma alma e que ela foi feita para Deus.
O homem não é uma besta. A oposição ao materialismo deve ser uma luta moral e espiritual. Pois a derrota da matéria é a vitória do espírito. E a vitória do espírito é uma alma que encontra a transcendência absoluta de Deus.
Erat in civitate peccatrix...
Havia uma pecadora na cidade. Lucas não diz seu nome nem seu passado. A tradição judaica, o Talmud, por outro lado, nos fornece detalhes sobre a beleza de Madalena, seu exuberante cabelo, suas riquezas e seus escândalos.
Casada com um certo Pappus, doutor da lei, cujo ciúme – que está de acordo com os costumes orientais – chegava ao ponto de trancá-la quando ele saía de casa, a orgulhosa mulher judia se libertou dessa escravidão e, unindo-se a um oficial romano de Naim, seguiu-o até Magdala. Sua conduta desordenada a tornou famosa lá, o que lhe rendeu o apelido de “Madalena, a mulher de Magdala”.
Esses detalhes, supostamente precisos, não provariam de forma alguma que pudéssemos ver nela uma pecadora da pior classe, diferente de tantas patrícias romanas.
O apelido pelo qual os judeus a denegriram, “a Madalena”, é suficientemente explicado por esses fatos: adultério público que a lei judaica punia com apedrejamento, vida pagã em um ambiente particularmente dissoluto: Magdala. Tudo o que resta dessa cidade hoje são algumas pedras em ruínas às margens do Lago Tiberíades. Mas, na época, Magdala era para a colônia romana uma cidade de água, uma cidade de prazeres, uma cidade de pecado. Madalena, a bela judia, esposa infiel de um doutor da lei, era a “estrela”, a alma perdida de Magdala.
Mas Magdala também estava no coração da Palestina, que Jesus já evangelizava há um ano. Foi nessas cidades e vilarejos próximos ao lago que ele multiplicava seus milagres, procurando as ovelhas perdidas. Lá ele proferiu o Sermão da Montanha: Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus! – Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, pois serão saciados!
Acostumada a se locomover livremente em seu novo ambiente, Madalena deve ter visto e ouvido aquele a quem a multidão aclamavam e os Doutores perseguiam com seu ódio invejoso.
Alma elevada, apesar dos “sete demônios” dos quais Jesus a libertaria, a irmã de Marta e Lázaro ouvia essas palavras tão novas, tão diferentes da casuística farisaica à qual seu primeiro marido a havia iniciado.
Seu coração inquieto abriu-se à confiança. Era uma dimensão diferente para ela. Os leprosos purificados, os cegos curados, o filho da viúva de Naim ressuscitado, os pecadores evangelizados – tudo lhe sugeria que ela também poderia ser ressuscitada, entrar na terra dos vivos, onde o amor não é mais uma palavra profanada. Sua lepra era a luxúria. Sua morte era esse corpo que ela havia afastado de Deus. Ela começa a enxergar, mas seu pecado a mantém longe da Luz. Onde ela encontrará a Vida? Ela busca aquele olhar eterno de bondade que a tudo torna belo.
Essa inexorável vontade feminina que, em Herodíades, buscava fins criminosos com uma astúcia prodigiosa, nós a encontramos, mas voltada para o bem. Madalena não descansará enquanto não realizar seu sonho: obter o perdão de Jesus.
Pois ela é a única, como aponta Bourdaloue, que aparece no Evangelho como dirigindo-se a Jesus Cristo para obter a remissão de seus pecados. Os outros, que eram judeus em espírito e coração, bem como em religião, recorreram a Ele apenas para obter graças temporais, para serem curados de suas doenças. E se Jesus os convertia, era quase contra a vontade deles.
Mas Madalena busca Jesus Cristo por Jesus Cristo mesmo. Não me procuraríeis se já não me tivésseis encontrado… Uma indicação de uma rara qualidade de alma da qual Jesus se lembrará quando disser aos fariseus vestidos com suas virtudes externas: Pecadores públicos vos precederão no Reino de Deus.
O que esses judeus pedem a Cristo é que ele se considere honrado por receber deles uma salvação protetora, que ele os consulte sobre o justo e o injusto, dos quais eles são os juízes. Mas pedir perdão por seus pecados? Que ideia! Eles que não têm pecado, eles que julgam e não são julgados.
Um desses homens puros, Simão, o fariseu, convida Jesus para jantar. Por que ele fez isso? Seria apenas por curiosidade, para espionar esse rabino de quem os sinédrios estavam tentando se livrar, da mesma forma que se livraram de João Batista, e assim ganhar certa proeminência nesse meio? Ou será que é por vaidade mundana, que só se preocupa com as aparências?
Eu irei!
Madalena toma conhecimento do acontecimento e decreta dentro de si o mesmo movimento que arranca sua alma do atoleiro de sua escravidão, como o filho pródigo que abandona o serviço do cocho dos porcos de que cuida. Eu irei, arrancarei dele o meu perdão. Que pecador, lúcido de seu estado, não disse a si mesmo um dia estas mesmas palavras… Eu irei!
Ela, a excomungada, legalmente reservada ao apedrejamento, não ignora que a porta de um fariseu lhe é duplamente proibida. Ela sabe que a lei ordena que Simão a expulse. Tudo o que ela busca é o olhar misericordioso de Cristo. O que isso importa para ela? escreve Bourdaloue, ela finalmente ama pela primeira vez. Com medo deliberamos, mas com amor agimos.
Tudo o que resta das desordens de ontem é sua impudência. Até agora ela não teve pudor; ela não sabe o que é se envergonhar. E é indiferente ao olhar desses homens que a desprezam para reduzi-la ao que ela era. Ela entra na sala onde Jesus estava. Ela deixou para trás a impureza de uma mulher mundana, mas reservou para si a fronte de uma mulher mundana.
São Lucas nos conta que Simão, o fariseu, ao dar as boas-vindas a Jesus, omitiu os deveres elementares da polidez judaica. Seria uma maneira sutil de se esconder dos olhos dos fariseus ou uma nova arrogância para enfatizar a grande honra que ele estava dando a esse rabino sem título ao admiti-lo em sua mesa?
Então, ele se omitiu de banhar os pés cobertos de poeira de Jesus, esqueceu-se deliberadamente de beijá-lo e de perfumar seus cabelos. Jesus não apontou essas grosserias. Ele havia se sentado à mesa, entre os fariseus, cujos olhares mediam sua baixeza. Depois das bênçãos rituais, das quais Simão certamente não omitiu nenhum item desta vez, ele deitou-se no sofá, como fará na Cruz: o reino dos Céus é como uma festa de casamento, ele dirá… em poucos instantes, uma pequena alma, uma noiva, reencontrará a Vida.
Como era de costume, o salão de banquetes foi deixado aberto e os amigos de Simão entraram livremente. Mas de repente, há certa inquietação! A Madalena se esquiva entre os visitantes. Ela se aproveita da surpresa e caminha rapidamente em direção ao rabino, cujos pés descalços estavam alí, disponíveis a ela.
Em suas mãos, ela carrega um vaso de alabastro cheio de perfume, um vaso de gargalo longo que um toque de seus dedos é suficiente para quebrar. Silenciosamente, ela se ajoelha, asperge os pés de Jesus com suas lágrimas, quebra o gargalo do vaso e derrama o óleo perfumado em seus pés, que ela enxuga com seus longos cabelos soltos. Um ato gerador…ato primeiro de humildade, um ato de nascimento.
Para uma mulher judia, é uma vergonha aparecer em público com os cabelos soltos… E Jesus parece não notar. Simão, por outro lado, agita-se, com um sorriso zombador nos lábios; a alegria se sobrepõe à raiva, é uma alegria maligna… é a alegria dos condenados que se alegram com o mal e o escândalo. Jesus está sendo julgado! Se ele fosse um profeta, como essa população, ignorante da lei, pensava, ele saberia que essa mulher que o estava tocando era uma pecadora. Ele a teria repelido – e deveria tê-lo feito! – para não contrair uma mancha legal. O moralismo hipócrita de Simão não sabe que Jesus lê sua alma. Porque Jesus olha para as almas.
Simão, disse ele, olhando para sua alma além de seu olhar… Eu tenho algo para lhe dizer. Aqui está Simão diante de si mesmo: Diga, mestre.
Mestre ? A única maneira de Cristo falar com Simão é convidando-o para as realidades espirituais, mas ele não quer entrar. Dois homens tinham uma dívida com um credor: um 500 denários e o outro 50. Como não tinham com que pagar; ele perdoou a dívida de ambos. Quem você acha que o amará mais? – Provavelmente aquele a quem ele terá dado mais. – Muito bem respondido. Enquanto Simão estava perdido em pensamentos malignos, Jesus falou com ele sobre o amor: Quem você acha que o amará mais?
Vês esta mulher, Simão?
E, voltando-se para Madalena, Jesus ensina Simão a olhar melhor os outros, a olhá-los de forma diferente, não apenas através dos olhos do corpo. Quando entrei em sua casa, não me derramastes água sobre meus pés, mas ela os aspergiu com suas lágrimas e os enxugou com seus cabelos. Não me destes um beijo; mas ela, desde que entrei, não parou de beijar meus pés. Não ungistes a minha cabeça com óleo, mas ela ungiu os meus pés com perfume.
Essa sucessão de “não me fizestes tal coisa“ deve ter ferido a vaidade do fariseu. Mas aqui está esse rabino que ele convidou para sua mesa, comparando-o a uma mulher, e que mulher! Essa comparação com esse pecador certamente o humilhou profundamente. Para Simão, é uma queda terrível, semelhante à de São Paulo do seu cavalo. É uma queda interior que Cristo provoca em sua alma.
Por isso eu vos digo que os seus muitos pecados lhe são perdoados, porque ela muito amou. E ela amará mais porque lhe foi dado mais. As palavras de Jesus são extremamente gentis. No entanto, a lição foi difícil para Simão; mas sua vida eterna estava em jogo. Mas aquele que recebe menos ama menos… Jesus diz a Simão o que vê nele: você não ama nada porque sente que não recebeu nada e acha que não tem nada a receber. Simão é a imagem do desespero.
Não há progresso, não há horizontes, não há esperança para o homem que se entrega à escravidão da carne: há apenas o “eu”, o “eu” obeso que cega. A matéria o encerra, o limita a si mesmo. É uma questão de saber se se deseja viver com os Anjos ou com as bestas. Em seguida, dirigindo-se a Madalena, Jesus diz: Os teus pecados te são perdoados… Os teus pecados te são perdoados, palavra que desperta as murmurações dos fariseus: Quem é este que perdoa pecados, um poder reservado a Deus? Mas Ele, impassível, continua: a tua fé te salvou, vá em paz!
Madalena se levanta. Eles continuarão a murmurar… infelizes fariseus, pobres pecadores cheios de si mesmos e incapazes, neste momento, de compreender o drama espiritual desta alma que encontrou Deus. Um dia, ouvirão essa sentença devastadora: Raça de víboras! Assim como não pensam em serem perdoados, não perdoam aqueles que os fazem cair. Enquanto eles abaixam a cabeça e desviam o olhar com desprezo, Madalena, indiferente aos seus murmúrios, vai embora, transformada, purificada, ressuscitada. Ela vive! De agora em diante, ela é insensível a tudo, exceto às alegrias puras do amor penitente.
Bossuet se emociona com esse espetáculo e expõe, em poucas linhas, a psicologia dos grandes místicos penitentes: Vá, coração exausto, cansado, que nunca encontrou nada capaz de acolher a imensidão do teu amor; vá e afunda-te no oceano, vá e perca-te no infinito, vá e absorva-te em tudo.
Muitos pecados lhe foram perdoados. É pelo fato de Madalena ter deixado a prisão dos sentidos e despertado para o espírito que Jesus perdoa. Com uma audácia desconcertante, ele reabilita essa pecadora cuja alma ele vê transformada; ele a admite, ao lado da Virgem Maria, no colégio das santas mulheres. Porque Jesus olha o coração. Além disso, ele não se recusará a aceitar as refeições dela na casa de Betânia. E enquanto Marta se ocupava em preparar a refeição, Madalena, aos pés do Mestre, ouvia e agora se alimentava. Marta fica irritada, mas Jesus defende Madalena. Ela escolheu a melhor parte. O que não é inação. Madalena se mostrará mais ativa que Marta quando chegar a hora das grandes batalhas; a melhor parte é aprender antes de agir.
Para aprender isso: Deus precisa menos dos nossos braços do que dos nossos corações e, quando os corações não são dados, os braços rapidamente se cansam.
Foram as lágrimas de Madalena que, após a morte de Lázaro, arrancaram lágrimas de Jesus e o fizeram ordenar, inclinando-se sobre o túmulo onde o cadáver apodrecido jazia havia quatro dias: “Lázaro, levanta-te e sai!”
No dia seguinte à ressurreição de Lázaro, na festa de Simão, o leproso, em Betânia, encontramos o mesmo gesto da pecadora de Magdala. No início da refeição, Madalena, prostrada diante dos pés descalços de Jesus, asperge-os com lágrimas e perfumes e enxuga-os com os cabelos soltos. Ora, esse perfume valia 300 denários! Um escândalo de prodigalidade aos olhos de Judas, mas um gesto de amor ao qual Jesus promete a imortalidade. Nela o espírito se afirmou, ela conquistou a vitória sobre a carne… o homem animal foi domado. Judas é a derrota do espírito, é a derrota do homem; ele será eternamente a sombra, a antítese, a demonstração pelo absurdo das incríveis possibilidades espirituais do espírito. Infelizmente, também será o modelo para o nosso mundo moderno.
A grande realidade mística leva Madalena à expiação, ao amor, à doação de si mesma. Na Sexta-feira Santa, no Calvário, mais corajosa do que os Apóstolos, restaurando a honra da humanidade com sua coragem, ela estará ao lado da Virgem. O último olhar do Cristo moribundo repousará sobre ela e sobre a Imaculada. Então, provando mais uma vez que a coragem de agir nunca foi tão grande quanto entre os contemplativos diante dos Apóstolos, ela retornará ao Santo Sepulcro na manhã de Páscoa. Uma ousadia que não duvida de nada, porque o amor ignora as impossibilidades. Ao ver o sepulcro vazio, ela questionará Jesus ressuscitado, a quem ela supõe ser o jardineiro: Se levastes embora, diga-me onde o colocou e eu o tirarei.
Maria!
Com uma palavra, Jesus faz-se reconhecer e depois envia-a aos Apóstolos para lhes anunciar a Ressurreição. Ela foi escolhida para ser a “apóstola dos Apóstolos”. No dia seguinte à Ascensão, ao sabor das ondas, Jesus a conduz até as margens da Provença. Depois de ajudar no apostolado de seu irmão Lázaro em Marselha até o dia de seu martírio, ela chegou às selvagens solidões de Sainte-Baume. Lá, Cristo fará com que ele suba os mais altos cumes da vida mística.
Essas almas, enfatiza Bossuet, precisam da solidão dos desertos e lugares selvagens, um símbolo da miséria total pela qual aspiram Chega um momento em que eles conhecem apenas uma alegria: a de se doar; eles sacrificam até mesmo as alegrias puras da contemplação. E esse é o fim do Cântico, a consumação de todo o mistério do santo Amor. Então só resta a morte, o começo da vida.
Quando Madalena sentiu que seu fim se aproximava, ela desceu do Tabor, depois de ter pedido a São Maximino para que lhe trouxesse a comunhão pela última vez. Ela se juntou a ele na Via Aureliana e se ajoelhou, como havia feito em Magdala e Betânia, aos pés do Mestre. Seu exuberante cabelo, antes profanado e depois reabilitado, tornaram-se brancos. Ajoelhada à beira da estrada, ela recebeu Aquele que um dia lhe disse: vá em paz, seus pecados estão perdoados. Tudo o que restava era expiá-los por meio de penitência e ação. Na doação diária ela encontrou a paz que lhe escapava no pecado. Após a comunhão, ela abaixou a cabeça e entrou em êxtase eterno.
É nas profundezas de nossa alma, entre o espírito e a matéria, entre o espírito e a besta, que o destino do mundo e o nosso destino são traçados. É por sabermos que há vinte séculos, na Cruz da Sexta-feira Santa, o espírito finalmente prevaleceu sobre a matéria, que os cristãos não podem ceder à vertigem do desespero. A Quaresma que se aproxima ainda será tempo de grandes batalhas com Jesus na Cruz e de grandes vitórias com Ele, na manhã de Páscoa.
Pe. Vincent Bétin, FSSPX