MONS. LEFEBVRE: NO CERNE DA “QUESTÃO ECÔNE”: O LIBERALISMO

LEFEBFRE

Em uma Carta a Amigos e Benfeitores publicada em 1975, Mons. Lefebvre explicou o que estava no centro da oposição que se manifestava contra o Seminário de Ecône: o liberalismo, por natureza contrário à Tradição da Igreja. Observações sempre esclarecedoras para compreender a implacabilidade contra a Tradição que infelizmente ainda está em andamento na Igreja.

Fonte: La Porte Latine – Tradução: Dominus Est

Como explicar essa oposição à Tradição em nome de um Concílio e sua aplicação? Podemos razoavelmente, e devemos realmente, nos opor a um Concílio e suas reformas? Além disso, podemos e devemos nos opor às ordens da hierarquia que apelam ao Concílio e todas as orientações pós-conciliares oficiais? Eis o grave problema que hoje, passados ​​dez anos pós-conciliares, surge na nossa consciência por ocasião da condenação de Ecône. É impossível responder prudentemente a essas perguntas sem fazer um breve relato da história do liberalismo e do catolicismo liberal nos últimos séculos. Só podemos explicar o presente por meio do passado.

Princípios do liberalismo

Vamos primeiro definir o liberalismo, em poucas palavras, cujo exemplo histórico mais típico é o protestantismo. O liberalismo pretende libertar o homem de qualquer restrição indesejada ou aceitas por ele mesmo.

Primeira libertação: aquela que liberta a inteligência de qualquer verdade objetiva imposta. A Verdade deve ser aceita diferentemente de acordo com os indivíduos ou os grupos de indivíduos, e portanto, é necessariamente compartilhada. A Verdade é criada e buscada incessantemente. Ninguém pode alegar tê-la exclusiva e integralmente. Podemos adivinhar o quanto isso é contrário a Nosso Senhor Jesus Cristo e à sua Igreja.

Segunda libertação: a da fé, que nos impõe dogmas, formulados definitivamente e aos quais a inteligência e a vontade devem se submeter. Os dogmas, segundo o liberal, devem ser submetidos ao crivo da razão e da ciência e isso de forma constante, dado o progresso científico. Portanto, é impossível admitir uma verdade revelada definida para sempre. Notaremos a oposição deste princípio à Revelação de Nosso Senhor e à Sua autoridade divina.

Finalmente, a terceira libertação, a da lei (do direito). A lei, de acordo com o liberal, limita a liberdade e impõe-lhe um constrangimento primeiramente moral e depois físico. A lei e suas restrições vão contra a dignidade e a consciência humanas. A consciência é a lei suprema. O liberal confunde liberdade e licença. Nosso Senhor Jesus Cristo é a Lei viva, sendo o Verbo de Deus. Ainda podemos medir quão profunda é a oposição do liberal a Nosso Senhor.

Consequências do liberalismo

Os princípios liberais têm como consequência destruir a filosofia do ser e recusar qualquer definição do ser para se fecharem no nominalismo ou existencialismo e evolucionismo. Tudo está sujeito a mutações, a mudanças.

Uma segunda consequência igualmente séria, senão mais, é a negação do sobrenatural, portanto do pecado original, da justificação pela graça, do verdadeiro motivo da Encarnação, do sacrifício da Cruz, da Igreja, do sacerdócio. Tudo é distorcido na obra realizada por Nosso Senhor, e isso se traduz em uma visão protestante da liturgia, do sacrifício da Missa e dos sacramentos que não têm mais por objeto a aplicação da Redenção às almas, a cada alma, a fim de comunicar-lhes a graça da vida divina e para prepará-la para a vida eterna, por pertencer ao corpo místico de Nosso Senhor, mas que doravante tem por centro e motivo a pertença a uma comunidade humana de caráter religioso. Toda a reforma litúrgica é afetada por esta orientação.

Outra consequência: a negação de toda autoridade pessoal, participação na autoridade de Deus. A dignidade humana exige que o homem esteja submetido apenas ao que ele consente. Sendo uma autoridade indispensável para a vida da sociedade, ela só aceitará autoridade aprovada pela maioria, por representar a delegação de autoridade indivíduos dos mais numerosos a uma pessoa ou grupo designado, sendo sempre essa autoridade apenas delegada.

No entanto, esses princípios e suas consequências, que exigem liberdade de pensamento, liberdade de ensino, liberdade de consciência, liberdade de escolha da própria religião, essas falsas liberdades que pressupõem o laicismo do Estado, a separação da Igreja e do Estado, têm sido, desde o Concílio de Trento, incessantemente condenados pelos sucessores de Pedro e, em primeiro lugar, pelo próprio Concílio de Trento.

Condenação do liberalismo pelo Magistério da Igreja

Foi a oposição da Igreja ao liberalismo protestante que provocou o Concílio de Trento, daí a considerável importância deste Concílio dogmático para a luta contra os erros liberais, para a defesa da Verdade, da Fé, em particular pela codificação da liturgia do Sacrifício da Missa e dos Sacramentos, através das definições relativas à justificação pela graça.

Vamos listar alguns dos documentos mais importantes que completaram e confirmaram esta doutrina do Concílio de Trento:

  • A Bula Auctorem fidei de Pio VI contra o Concílio de Pistoia.
  • A Encíclica Mirari Vos de Gregório XVI contra Lamennais.
  • A Encíclica Quanta Cura e o Syllabus de Pio IX.
  • A Encíclica Immortale Dei de Leão XIII sobre a constituição cristã dos estados.
  • As Atas de São Pio X contra o Sillon e o modernismo e especialmente o decreto Lamentabili e o Juramento Antimodernista.
  • A Encíclica Divini Redemptoris do Papa Pio XI contra o comunismo.
  • A Encíclica Humani Generis do Papa Pio XII.

Assim, o liberalismo e o catolicismo liberal sempre foram condenados pelos sucessores de Pedro em nome do Evangelho e da Tradição Apostólica.

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Esta conclusão óbvia é de suma importância para determinar nossa atitude e manifestar nossa união inabalável com o magistério da Igreja e com os sucessores de Pedro. Ninguém mais do que nós estamos ligados ao sucessor de Pedro hoje reinante quando ecoa as tradições apostólicas e os ensinamentos de todos os seus predecessores, pois é a própria definição do sucessor de Pedro manter o depósito e transmiti-lo fielmente. Eis o que o Papa Pio IX proclama sobre este assunto em sua encíclica Pastor Aaeternus:

“O Espírito Santo não foi, de fato, prometido aos sucessores de Pedro para capacitá-los a pregar, sob a revelação do mesmo, uma nova doutrina, mas para guardar estritamente e expor fielmente, com sua assistência, as revelações transmitidas pelos apóstolos, ou seja, o depósito da fé.”

Influência do liberalismo no Concílio Vaticano II

Chegamos agora à questão que nos preocupa: como explicar que, em nome do Concílio Vaticano II, possa-se opor às tradições seculares e apostólicas, colocando em questão o próprio sacerdócio católico e o seu ato essencial, o Santo Sacrifício do Missa?

Uma séria e trágica ambiguidade paira sobre o Concílio Vaticano II, apresentado pelos próprios Papas em termos que o favoreceram: um Concílio de “aggiornamento”, de “atualização” da Igreja, um Concílio pastoral, não dogmático, como o Papa acaba de nomeá-lo novamente, há um mês.

Esta apresentação, na situação da Igreja e do mundo em 1962, apresentava perigos imensos dos quais o Concílio não podia escapar. Foi fácil traduzir essas palavras, de tal maneira que erros liberais se espalharam amplamente no Concílio. Uma minoria liberal entre os Padres do Concílio e especialmente entre os Cardeais foi muito ativa, muito organizada, muito apoiada por uma série de teólogos modernistas e numerosos secretariados. Considere a enorme produção de material impresso do IDOC, subsidiado pelas Conferências Episcopais Alemã e Holandesa.

Eles tinham liberdade de pedir insistentemente a adaptação da Igreja ao homem moderno, ou seja, ao homem que quer se libertar de tudo, apresentar a Igreja como inadequada, impotente, fazendo um “mea culpa” pelos predecessores, a Igreja é apresentada como tão culpada quanto os protestantes e os ortodoxos das divisões do passado. Ela devia pedir perdão aos protestantes presentes.

A Igreja da Tradição é culpada de suas riquezas, de seu triunfalismo, os Padres conciliares se sentiam culpados de estar fora do mundo, de não serem do mundo. Já sentem vergonha de suas insígnias episcopais, suas batinas.

Essa atmosfera de libertação em breve atingirá todas as áreas e refletirá no espírito colegial, onde a vergonha por exercer uma autoridade pessoal tão contrária ao espírito do homem moderno, digamos do homem liberal, será velada. O Papa e os Bispos exercerão sua autoridade colegialmente em Sínodos, nas Conferências Episcopais, nos Conselhos Presbiterais. Finalmente, a Igreja está aberta aos princípios do mundo moderno.

A liturgia também será liberalizada, adaptada, submetida às experiências das conferências episcopais.

A liberdade religiosa, o ecumenismo, a investigação teológica, a revisão do direito canônico atenuarão o triunfalismo de uma Igreja que se proclamava a única arca da salvação! A Verdade é compartilhada em todas as religiões, uma busca comum fará avançar a comunidade religiosa universal em torno da Igreja.

Os protestantes em Genebra – Marsaudon em seu livro O Ecumenismo visto por um maçom – liberais como Fesquet, triunfam. Finalmente, a era dos Estados católicos desaparecerá. Direito comum para todas as religiões! “A Igreja Livre no Estado Livre”, fórmula de Lamennais! Eis a Igreja adaptada ao mundo moderno! O direito público da Igreja e todos os documentos acima citados tornam-se peças de museu destinadas a tempos idos! Leia, no início do esquema da Igreja no mundo, a descrição das mudanças nos tempos modernos, leia as conclusões, elas são do mais puro liberalismo. Leia o esquema sobre Liberdade Religiosa e compare com a encíclica Mirari Vos de Gregório XVI, com a Quanta Cura de Pio IX, e os senhores verão a contradição quase palavra por palavra.

Dizer que as idéias liberais não influenciaram o Concílio Vaticano II é negar o óbvio. Tanto a crítica interna quanto a crítica externa provam abundantemente.

Influência do liberalismo nas reformas e orientações pós-conciliares

E se passarmos do Concílio às reformas e orientações, a prova é evidente. Agora, observemos que nas cartas de Roma que nos pedem um ato público de submissão, as três coisas são sempre apresentadas como indissoluvelmente unidas. Engana-se, pois, gravemente, quem fala de má interpretação do Concílio, como se o Concílio em si fosse perfeito e não pudesse ser interpretado de acordo com as reformas e orientações.

As reformas e orientações oficiais pós-conciliares manifestam-se mais claramente do que qualquer escrito da interpretação oficial e pretendida do Concílio.

No entanto, aqui não precisamos nos deter: os fatos falam por si e são eloqüentes, infelizmente.

O que resta intacto da Igreja pré-conciliar? Onde foi parar essa autodemolição? Catequese, seminários, congregações religiosas, liturgia da Missa e dos sacramentos, constituição da Igreja, concepção do sacerdócio. As concepções liberais devastaram tudo e levaram a Igreja além das concepções do protestantismo, para espanto dos protestantes e reprovação dos ortodoxos.

Uma das constatações mais terríveis da aplicação desses princípios liberais é a abertura a todos os erros e, particularmente, aos mais monstruosos que já surgiram da mente de Satanás: o comunismo teve suas entradas oficiais no Vaticano e sua revolução mundial foi singularmente facilitada pela não-resistência oficial da Igreja, muito mais, pelo apoio frequente à revolução, apesar das advertências desesperadas dos Cardeais que sofreram as prisões comunistas.

A recusa deste Concílio pastoral em condenar oficialmente o comunismo é por si só suficiente para cobri-lo de vergonha perante toda a história, quando se pensa nas dezenas de milhões de mártires, de pessoas cientificamente despersonalizadas em hospitais psiquiátricos, servindo de cobaias para todos os tipos de experiência. E o Concílio pastoral, reunindo 2.350 Bispos, permaneceu em silêncio, apesar das 450 assinaturas de padres pedindo esta condenação, que eu mesmo levei a Mons. Felici, secretário do Concílio, na companhia de Mons. Sigaud, Arcebispo de Diamantina. É necessário aprofundar a análise para se chegar à conclusão? Parece-me que essas linhas são suficientes para nos recusarmos a seguir este Concílio, estas orientações em todos os seus aspectos liberais e neo-modernistas. Queremos responder à objeção que não deixará de nos ser feita sobre a obediência, sobre a jurisdição daqueles que querem nos impor esta orientação liberal. Nós respondemos: na Igreja, a lei e a jurisdição estão a serviço da Fé, fim primário da Igreja. Não há nenhuma lei, nenhuma jurisdição que possa nos impor uma diminuição em nossa fé.

Aceitamos esta jurisdição e essas leis quando estão a serviço da fé. Mas quem pode julgar isso? A Tradição, a Fé ensinada por 2.000 anos. Cada fiel pode e deve opor-se a qualquer pessoa na Igreja que toque a sua fé, a fé da Igreja de sempre, com base no catecismo da sua infância.

Defender a sua fé é o primeiro dever de todo cristão, a mais forte razão de todo sacerdote e de todo Bispo. No caso de qualquer ordem que envolva perigo de corrupção da fé e da moral, a desobediência é um dever sério.

É porque acreditamos que toda a nossa fé está em perigo pelas reformas e orientações pós-conciliares que temos o dever de desobedecer e guardar as Tradições. É o maior serviço que podemos prestar à Igreja Católica, ao Sucessor de Pedro, à salvação das almas e às nossas almas, recusar a Igreja reformada e liberal, pois acreditamos em Nosso Senhor Jesus Cristo, filho de Deus feito homem, que não é nem liberal nem reformável.

Outra última objeção: o Concílio é um concílio como qualquer outro. Em sua ecumenicidade e sua convocação, sim; em seu objeto, e este é o ponto essencial, não. Um Concílio não dogmático pode não ser infalível; o é infalível apenas na reiteração de verdades dogmáticas tradicionais.

Como o senhor justifica sua atitude para com o Papa?

Somos os mais fervorosos defensores de sua autoridade como sucessor de Pedro, mas baseamos nossa atitude pela palavra de Pio IX citada acima. Aplaudimos o Papa como eco da Tradição e fiéis à transmissão do depósito da fé. Aceitamos novidades que estejam intimamente de acordo com a Tradição e a Fé. Não nos sentimos obrigados pela obediência a novidades que vão contra a Tradição e ameaçam a nossa fé. Nesse caso, apoiamos os documentos papais mencionados acima.

Não vemos, em consciência, como um fiel católico, sacerdote ou bispo pode ter qualquer outra atitude perante a dolorosa crise que atravessa a Igreja. “Nihil innovetur nisi quod traditum est” – não inovemos nada, mas transmitamos a Tradição.

Que Jesus e Maria nos ajudem a permanecer fiéis aos nossos compromissos episcopais! “Não diga verdadeiro o que é falso, não diga bom o que é ruim.” Isso é o que nos foi dito em nossa coroação.

Mons. Marcel Lefebvre

Na festa de São Pio X, 1975.