NOS PASSOS DE NOSSA SENHORA DAS 7 DORES

Nessa terrível crise a Igreja que atravessa, Nosso Senhor é novamente crucificado em seus membros. Como devemos reagir ao que poderíamos chamar de paixão da Igreja? É junto a Nossa Senhora das Sete Dores, nessa simples presença de Maria aos pés do Crucificado, que devemos nos inspirar.

Fonte: Lou Pescadou n° 235 – Tradução: Dominus Est

Stabat

Qual foi a maior dor de Maria aos pés da cruz? A profecia do velho Simeão é bem conhecida: Uma espada trespassará a sua alma (Lc. 2, 35). Para entender essa predição, precisamos explicar o significado exato dos dois termos: “espada” e “alma”. No grego puro de São Lucas, a psique refere-se, sobretudo, ao espírito, à inteligência. As palavras de Simeão não podem, portanto, limitar-se ao domínio da sensibilidade. Uma tradução mais profunda seria: uma espada trespassará a sua inteligência. Qual será essa espada? Frequentemente chamada de espada de dois gumes nas Escrituras, esta palavra refere-se, sobretudo, a um princípio de divisão, e de uma divisão radical como a que pode existir entre o bem e o mal, entre a verdade e o erro. É assim que, por exemplo, é usada por São Paulo: A palavra de Deus é viva, eficaz, e mais penetrante que toda espada de dois gumes; chega até a separação da alma e do espírito, das junturas e das medulas, e discerne os pensamentos e intenções do coração (Hb. 4,12). Esta palavra ainda é usada para designar o instrumento do sacrifício, aquele que dá o golpe fatal na vítima. Assim, o grande sofrimento de Maria aos pés da cruz, que a unirá plenamente ao sacrifício divino, situa-se numa divisão radical da sua inteligência, faculdade mais especificamente humana, sede da virtude da fé, voltada Àquele que é estabelecido como sinal de contradição (Lc. 2, 34).

Com efeito, nesse Filho crucificado existem certas contradições aparentes que colocam a inteligência da Santíssima Virgem à prova. Por um lado, recordando as palavras do anjo na Anunciação (Lc. 1, 32), ela sabe, com certeza, que Jesus é o Filho de Deus que deve reinar eternamente sobre a casa de David. E agora Jesus apresenta-se a ela como o Crucificado, ou seja, maldito de Deus e dos homens. Não está escrito nas Escrituras: “Porque é maldito de Deus aquele que está pendente no lenho, (Dt. 21, 23)? Jesus aparece, portanto, como Aquele que é rejeitado por Deus. Ele não só aparece como tal, mas Ele mesmo parece declará-lo: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? (Mt. 27, 46). Ele, o Filho amado, Aquele que é Vida (Jo. 14, 6) e em quem o Pai colocou toda sua complacência (Mt. 3, 17), aparece agora como Aquele que foi abandonado pelo Pai e que deve viver deste estado de anátema, ou seja, morrer! Eis uma oposição brutal que abala profundamente a inteligência de Maria.

Este triste espetáculo, embora tenha 2000 anos, é surpreendentemente atual. Já o dissemos: Nosso Senhor, através da sua Igreja, experimenta uma nova paixão. Seu Corpo Místico, a Igreja, parece estar em agonia. Mesmo abstraindo essa multidão gritante de ímpios que diariamente a insultam, zombam e cospem em seu rosto, este Corpo Místico tem em si uma aparência muito deplorável. Açoitada, espancada, coroada de espinhos, a Igreja está desfigurada. É preciso ir ainda mais longe na comparação: por algum mistério inaudito, parece que a Igreja, assim como Cristo, desejou esse triste destino para si mesma: não foi a negação de seus ministros que a tornou irreconhecível dessa maneira? Tão certo como Cristo avançou ao encontro dos seus algozes para se entregar, Roma, apesar das advertências expressas de Cristo (Jo. 15, 18-20; 17,9-16), entregou-se ao mundo… que a odeia. Deixada à mercê dos seus carrascos pelo famoso aggiornamento que define o Concílio Vaticano II, a própria Igreja empenha-se num caminho de cruz, muito diferente daquele do seu Mestre: já não mais redentor, mas destruidor.

À medida que a alma cristã contempla esse Corpo Místico exangue, o paradoxo que dilacerou a inteligência de Maria aos pés da cruz é renovado em toda a sua acuidade. Nesta Igreja crucificada, contradições fantásticas apresentam-se à inteligência fiel.  Como a fumaça de Satanás pode ter penetrado até os fundamentos da Igreja, contra a qual as portas do inferno não prevalecerão (Mt. 16, 18)? Único instrumento de salvação, esta mesma Igreja parece-nos por vezes fazer parte da besta apocalíptica que conduz as almas pelo caminho da perdição (Ap. 12, 3). Não é, porventura, o próprio São Pedro que, designado para confirmar os seus irmãos na fé (Lc. 22, 32), os faz perdê-la através deste falso ecumenismo e desta liberdade religiosa repetidamente condenada pelos papas?

Há, neste mistério da vida da Igreja, uma oposição brutal que, no fundo, é suficiente para abalar a inteligência do cristão. Para evitar essa ruptura íntima que levaria à perda da fé, voltemos nosso olhar, mais uma vez, para Maria. Sendo ela a primeira a passar por esta terrível tentação contra a fé que agora nos experimenta, contemplemos a sua atitude aos pés da cruz para procurar imitá-la.

Stabat Dolorosa

Se Maria ouvisse as exigências da sua inteligência humana, ela rejeitaria imediatamente parte do dilema que enfrentava: banido e abandonado por Deus, o Filho de Deus! Nesta terrível tentação contra a fé (1), onde a inteligência humana não conseguia conciliar o inconciliável, a Santíssima Virgem estaria encurralada em uma escolha: ou abandonava-se à incredulidade e ao desespero, pensando que o anjo a enganara, ou recusava-se a aceitar a cruz, considerando apenas a palavra do anjo. Sua conduta, porém, foi completamente diferente: Stabat dolorosa. Ela recusou qualquer escolha que pusesse fim a esta espada que trespassava seu coração, porque então teria havido uma escolha humana, uma “heresia”, dividindo o que está unido na sabedoria de Deus. Em nome das exigências da razão humana, dividir-se-ia a mensagem de Deus, e não mais a guardaria na sua totalidade? Absit! teria dito São Paulo – longe de Maria recorrer a isso. Em um heroico ato de fé, o ato de fé da esposa mística, o sponsabo te mihi in fi de de Oseias (Os. 2, 22), Maria aceita a vontade do Pai para com seu Filho. Esta fé implica o próprio holocausto do intelecto. Ela não consegue mais dizer nada, porque não consegue mais compreender nada. Neste novo Fiat de Maria, muito mais sublime, já não há o quomodo da Anunciação (Lc. 1, 34), o “como se fará isso?”.

Este é, precisamente, o ato de fé que a Igreja crucificada espera de nós. Porque também para nós seria cômodo fazer uma escolha humana, uma “heresia” visando resolver intelectualmente o dilema atual, separando por uma razão demasiado cartesiana o que Deus uniu, de fato. Alguns, infelizmente, operam dessa forma. Os primeiros, fortalecidos nas promessas divinas e na assistência infalível do Espírito Santo sobre a sua Igreja, recusaram-se, na prática, a considerar esta terrível cruz que é a crise da Igreja. Aí encontramos aqueles que, seguindo o Decreto Ecclesia Dei afflicta de 1988, condenaram oficialmente a Tradição perene através de D. Lefebvre (2), e optaram por uma “atitude positiva de estudo” em relação ao Concílio Vaticano II e aos textos posteriores. Um sofisma monstruoso que considera como negatividade qualquer reconhecimento e denúncia da crise que a Igreja atravessa. Guardando as palavras de Cristo, eles rejeitaram a sua cruz. Outros, ao contrário, ostentando um juízo analítico exemplar, revelaram o funcionamento desta crise sem precedentes… às custas das promessas de Cristo relativas à indefectibilidade da Igreja visível. Para eles, a Igreja tornou-se uma abstração, não mais encarnada nos homens (3). Assim, à sua maneira, recusam também a cruz de Cristo: observando a crucificação da Igreja, recusaram a quase divindade daqueles que a representam: o Papa não é Papa, afirmam; este homem que favorece a heresia não pode ser aquele que recebeu de Cristo a missão de confirmar os seus irmãos na fé.

Atitudes tão estéreis, que não aceitando esta espada que trespassa a inteligência, não podem participar da fecundidade mariana.

Stabat Mater Dolorosa

Com efeito, foi neste heroico ato de fé, onde a inteligência humana não teve escolha a não ser permanecer em silêncio, que Maria tornou-se Mãe da Igreja. Se precisássemos nos convencer disso, bastaria reler a bênção que Deus deu a Abraão depois de aceitar a imolação de seu filho. A fé de Abraão, que Deus recompensa, é precisamente uma figura da fé de Maria. Uma figura apenas, porque na realidade é Maria quem a vive. Com efeito, Abraão não precisou sacrificar Isaac, o filho da promessa, enquanto Maria teve que sacrificar realmente o seu próprio Filho. Enquanto um bode designado pelo anjo tomou o lugar de Isaac, Jesus era, ao mesmo tempo, Filho da promessa e o bode expiatório (Lv. 16, 9-26), oferecido pela salvação do seu povo. É por isso que a fé de Maria é muito mais comprometida, muito mais realista e divina do que a de Abraão. Ela teve que ir além de seu antepassado. Também a promessa feita a Abraão só se realiza plenamente em Maria, e por meio dela: “Por mim mesmo jurei, diz o Senhor, confirma que, porque fizeste tal coisa e não perdoaste a teu filho único por amor de mim, eu te abençoarei e multiplicarei a tua estirpe como ais estrelas do céu, e como a areia das praias: a tua descendência possuirá as portas de seus inimigos, e na tua descendência serão benditas todas as nações da terra, porque obedeceste a minha voz. (Gn. 22, 16-18). Sim, Maria aos pés da cruz é, precisamente, esta mulher parindo as dores que São João entrevê (Ap 12, 2): cruciabatur ut pariat, atormentada para dar à luz, diz o texto bíblico Cruciabatur, observemos o imperfeito da duração(4).

Imitar este sofrimento de Maria não é o ato de uma alma momentaneamente torturada que, por um subterfúgio demasiado humano, conseguiu pôr fim ao seu tormento, mas sim daquele que, vislumbrando a fumaça de Satanás penetrando na Igreja, silencia uma inteligência cega pelos mistérios divinos para viver com uma fé comprovada, aceitando os dois fatos do mistério — a realidade da crise e a divindade da Igreja — mesmo que isso signifique seguir a Cristo pelos banidos da Igreja, os separados. A Virgem, aos pés da cruz, ensina-lhe que só esta atitude é benéfica para as almas: Stabat MATER dolorosa, mistério insondável, mas consolador da co-redenção de Maria. Insondável, porque não podemos compreender a imensa bondade do desígnio divino que quis associar o sofrimento humano à sua divina Redenção. Consolador, porque os sofrimentos da alma cristã diante do drama da Igreja adquirem todo o seu sentido à luz de Nossa Senhora das Sete Dores. Tornam-se geradores de almas, verdadeiramente apostólicas. Stabat Mater dolorosa.

Pe. Patrick de La Rocque, FSSPX

Publicado originalmente em 2023

Notas

(1) Não façamos de Maria um ser sobre-humano inacessível à tentação. O próprio Senhor experimentou no deserto os traços do demônio sedutor (Mt 4,1 ss.).

(2) Este Motu Proprio está na origem da Fraternidade São Pedro e do Instituto Cristo Rei, bem como da ereção do mosteiro de Santa Madalena du Barroux como abadia.

(3) O título de um livro publicado pelos círculos sedevacantistas é revelador: “A Igreja eclipsada”.

(4) Aqui o autor refere-se ao pretérito imperfeito do verbo latino “crucio”: cruciabatur, denotando uma duração limitada, tal como indica o verbo naquele tempo, referindo-se aos gritos de dor decorrentes do trabalho de parto “gritava com as dores do trabalho de parto”. (Nota da tradução)