O SEGREDO DA CONFISSÃO: LEI DIVINA OU LEI HUMANA?

Le secret de confession, loi divine ou loi humaine ? • La Porte Latine

No site do jornal  La Croix, Jean-Eudes Fresneau, sacerdote da diocese de Vannes(França), contesta a afirmação da Santa Sé segundo a qual “o segredo inviolável da Confissão provém diretamente do direito divino revelado”(1).

Fonte: Courrier de Rome n° 648 – Tradução: Dominus Est

Ele afirma, ao contrário, que a Igreja tem o direito de modificar sua disciplina sobre o assunto. Que, com efeito, este segredo não é declarado pela Igreja como parte dos quatro elementos necessários, indispensáveis ​​e estruturantes do sacramento (contrição, confissão, satisfação e absolvição).

E o autor do artigo conclui: “Já não é absolutamente possível que a Igreja seja objetivamente cúmplice de crimes escondendo-os sob uma falsa misericórdia. “

Devemos, portanto, nos perguntar: a obrigação do confessor de guardar o mais estrito segredo sobre os pecados ouvidos na confissão provém apenas de uma lei eclesiástica, ou tem Deus como seu autor? No primeiro caso, o Papa poderia modificá-lo. No segundo, o Papa não teria poder sobre ela porque, como diz Santo Tomás: “O Papa não tem o poder de dispensar da lei divina“(2).

Recordemos de que o direito divino tem duas vertentes. A primeira é a lei natural, que se funda na natureza das coisas. A segunda é positiva, ou revelada, e baseia-se na Revelação, seja no Antigo ou no Novo Testame

O segredo da confissão é uma obrigação do direito natural divino, uma vez que o direito natural proíbe a revelação de informações íntimas e vergonhosas sobre o próximo. Isso destruiria sua reputação. A isto chama-se de segredo natural. É também uma obrigação de direito divino natural em virtude de um contrato implícito entre o penitente e o confessor chamado segredo cometido. Tacitamente, o pecador confessa seus pecados ao padre na condição de que este se comprometa a nunca os revelar. Se o padre trai seu penitente, ele quebra sua palavra. Há, portanto, de se concluir que a proibição de trair o penitente recai, por duas razões, sob o direito divino natural. No entanto, tanto o sigilo natural quanto o sigilo perpetrado admitem exceções, em situações extremas. É de fato um direito, e até mesmo um dever, revelar um segredo, quando a vida de outrem ou o bem comum está em jogo.

Eis porque a nossa reflexão deve ir mais longe para saber se, além das obrigações que se inserem no direito divino natural, a obrigação de segredo de confissão também se insere no direito divino positivo.

É necessário lembrar da instituição do sacramento da penitência por Nosso Senhor Jesus Cristo.

Para resolver esta questão, é necessário recordar a instituição do sacramento da penitência por Nosso Senhor Jesus Cristo. Na noite do Domingo de Páscoa, como relata o evangelista São João no capítulo XX do seu Evangelho, Cristo apareceu aos seus apóstolos e disse-lhes: “Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados; e àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos”. Esta passagem mostra que o poder de perdoar os pecados deve ser exercido por meio de julgamento. De fato, Cristo fala de perdoar ou reter os pecados. Reter, guardar, manter, de acordo com o verbo grego original, diz muito mais do que “não entregar“. Não se trata de uma simples omissão. É um ato que consiste em manter o vínculo do pecado e impedir a remissão. No entanto, a decisão de perdoar ou reter não deve ser tomada arbitrariamente. Exige, portanto, um verdadeiro julgamento por parte dos apóstolos. Cristo, portanto, instituiu o sacramento da penitência a modo de julgamento.

Mas como pode um juiz julgar se não conhece o caso? É, portanto, exigido pela vontade de Cristo, que o penitente acuse seus pecados ao confessor, a fim de ser julgado. É por isso que a Igreja ensina que a obrigação de confessar cada um dos pecados mortais é um direito divino. O Concílio de Trento afirma: “A Igreja sempre entendeu que a plena confissão dos pecados foi instituída pelo Senhor, e que foi, por direito divino, necessária para todos aqueles que caíram após o batismo“(3).

Continuemos o raciocínio. Se Cristo exige que seus filhos acusem ao sacerdote todos os seus pecados, mesmo os mais secretos e vergonhosos, pode ele ao mesmo tempo permitir que o confessor os revele? Não seria, por parte do divino fundador da Igreja, impor às almas um constrangimento excessivo e insuperável? Quem quer o fim quer os meios. Se Cristo quer que os fiéis se confessem, Ele também quer, necessariamente, embora implicitamente, todos os meios necessários para que esta confissão seja humanamente possível. No entanto, se o confessor não estiver vinculado ao mais estrito sigilo, dificilmente alguém desejará confessar. Ao instituir o sacramento da penitência por meio do julgamento, Cristo, portanto, proibiu implicitamente o confessor de revelar os pecados ouvidos. É evidente que esta proibição é absoluta e não admite exceções. Com efeito, que pecador concordaria em confessar se pensasse que a lei do segredo admite exceções? Recordemos ainda que o sacramento da penitência foi instituído antes de tudo para apagar os pecados mortais.(4), ou seja, os pecados mais vergonhosos e por vezes os mais severamente punidos pela lei civil. Se o confessor, nos casos mais graves, pudesse trair o penitente, a confissão se tornaria desumana.

Se o confessor não estiver obrigado ao mais estrito sigilo, dificilmente alguém vai querer se confessar.

O sínodo de Soisson, no ano de 1524, concluiu: “É pelo mesmo direito divino que a revelação da confissão é proibida e que a confissão é prescrita“(5).

O doutor angélico apresenta um segundo argumento demonstrando que o sigilo está sob o direito divino positivo. Ocultar os pecados é a essência do sacramento da penitência. Todo sacramento é, de fato, um sinal que realiza o que significa. Ora, a penitência, significa que os pecados são destruídos, apagados. Assim, é necessário neste sacramento que os pecados permaneçam ocultos e que não sejam revelados pelo confessor(6). É, portanto, o autor deste sacramento que é também o autor da lei do segredo.

No entanto, não se deve concluir deste último argumento que o segredo faz parte da essência do sacramento, de modo que sua violação invalidaria a absolvição. Recordemos que, para a validade do sacramento da penitência, é necessário, por parte do penitente, contrição, confissão e satisfação; e do lado do ministro, ele deve pronunciar as palavras da forma. Consequentemente, se o confessor violar o segredo, está cometendo um sacrilégio gravíssimo, mas a confissão não se torna inválida por isso. O Pe. Fresneau, no argumento mencionado no início, confunde uma obrigação de direito divino revelado com uma obrigação ad validitatem. Afirmamos a primeira e negamos a segunda.

A obrigação do sigilo da confissão é, portanto, ainda que virtualmente, um direito positivo divino, uma vez que resulta da instituição divina e do preceito de confessar os próprios pecados ocultos. É em virtude da vontade do próprio Jesus Cristo que o confessor deve guardar em segredo os pecados ouvidos no confessionário. E é sempre em virtude dessa mesma vontade divina que esse segredo não admite qualquer exceção. O próprio Sumo Pontífice, diz Santo Tomás, não tem o poder de desvincular um confessor da lei do segredo(7). A história da obrigação de sigilo também pode nos esclarecer com base em sua origem. Se esta disciplina apareceu tardiamente na Igreja, é necessariamente de direito eclesiástico. Se, por outro lado, existe desde o início, é difícil negar sua origem divina. Ora, no ano 459, em Roma, o Papa São Leão Magno dirigiu uma carta às Igrejas da Campânia, Samnium e Piceno sobre o tema do segredo da confissão que permanece clássica. Nela ele repreende dois Bispos, que acharam conveniente publicar os pecados de certos fiéis que lhes haviam confessado. O Papa escreveu-lhes: “Ordeno que acabemos absolutamente com esta audácia contrária à regra apostólica (apostolicam regulam), que é cometida por alguns, soube-o recentemente, por uma usurpação ilícita“(8). A expressão apostolicam regulam utilizada pelo Papa merece nossa atenção. Mostra que a lei do sigilo da confissão já existia no tempo dos apóstolos.

O próprio Sumo Pontífice, diz Santo Tomás, não tem o poder de desvincular um confessor da lei do segredo.

Para melhor realçar a origem divina desta lei, o doutor angélico vislumbra uma situação trágica. Imaginemos que um sacerdote seja obrigado por seu superior eclesiástico, sob pena de excomunhão latæ sententiæ, a revelar um pecado ouvido na confissão. O que fazer? Santo Tomás responde que o padre é obrigado a recusar, e que ele não incorreria em nenhuma excomunhão, porque nenhuma autoridade humana pode forçá-lo a agir contra o direito divino(9).

É por isso que o segredo de confissão constitui uma exceção e um caso único entre os segredos. Ele é o único que nunca pode ser revelado, mesmo nas circunstâncias mais graves(10).

Em 5 de outubro de 2021, a Comissão Independente sobre Abuso Sexual na Igreja (CIASE), presidida por Jean-Marc Sauvé, tornou público o relatório encomendado pela Conferência Episcopal Francesa (CEF) e pela Conferência dos Religiosos de França (COREFF). Eis a 8ª recomendação deste relatório: “Transmitir, por parte das autoridades eclesiásticas, uma mensagem clara indicando aos confessores e aos fiéis que o segredo da confissão não pode derrogar a obrigação, prevista pelo código penal e de acordo com a comissão, à obrigação de direito natural divino de proteger a vida e a dignidade da pessoa, de denunciar às autoridades judiciárias e administrativas os casos de violência sexual infligidos a menor ou a pessoa vulnerável”. Esta recomendação revela, por parte dos autores deste relatório, uma profunda incompreensão da teologia sacramental e da natureza do sacramento da penitência.

É necessário lembrar que a lei divina está acima de todas as leis humanas? D. Eric de Moulins-Beaufort, presidente da  Conferência Episcopal Francesa, não se enganou, portanto, quando disse, ao microfone da France-info, em 12 de outubro de 2021: “O segredo da confissão está acima das leis da República“.

Aqueles que afirmam que a Igreja é cúmplice de crimes abomináveis ​​através deste segredo de confissão revelam uma falta de psicologia elementar.

Aqueles que afirmam que a Igreja é cúmplice de crimes abomináveis ​​através deste segredo de confissão revelam uma falta de psicologia elementar. Que criminoso aceitará confessar-se se souber que o confessor tem o direito, e até mesmo o dever, de ir denunciá-lo à justiça? Admitir exceções ao sigilo da confissão é negar aos criminosos o acesso à misericórdia divina. Está, portanto, levando-os ao desespero e à reincidência.

O Pe. Jean-Eudes Fresneau escreveu em um tweet: “O segredo é apenas um meio de servir a vida, se eu tiver que salvar a vida de uma criança quebrando o segredo da confissão, eu o faço. É uma evidência humana e cristã”. Esta afirmação, embora atraente à primeira leitura, conduz inevitavelmente a desviar as almas do confessionário. Este padre, ao quebrar o segredo, acreditará que está salvando uma criança. Na realidade, além de sua grave desobediência à lei divina, escandalizará os fiéis e tornará o sacramento da penitência odioso. A longo prazo, privará as almas de uma fonte inestimável de graças, contribuindo assim para a redução do nível de moralidade. É uma boa maneira de ver o número de criminosos se multiplicar. Para o bem das vítimas, atuais ou potenciais, é necessário dar aos agressores acesso ao arrependimento e à conversão.

Consequentemente, mesmo que a pressão das autoridades civis possa fazer alguns intelectuais hesitarem ou vacilarem, as autoridades da Igreja, por mais altas que sejam, não têm o poder de suavizar esta santa e salutar lei divina do segredo.

Notas:

  1. Nota da Penitenciária Apostólica de 29 de junho de 2019.
  2. Quodlibet 4, art. 13.
  3. 14ª sessão, Dz 1679.
  4. Summa Teológica, IIIa pars q. 84 art. 2 e 3.
  5. Citado no DTC, art. confissão, col. 960
  6. Summa Teológica, Suppl. q. 11 arte. 1.
  7. IV dist. 21 q. 3 art. 2.
  8. Carta “Magna indignatione” de 6 de março de 459, Dz 323.
  9. IV Sent. dist. 21 q. 3 art.
  10. Summa Teológica, IIa IIae q. 70 art. 1 ad 2.