PANDEMIA, IGREJA E ESTADO – A HIERARQUIA DOS BENS

Breve considerações para os tempos de epidemia

Fonte: La Porte Latine – Tradução: Dominus Est

“É por isso que, do mesmo modo que a ninguém é lícito descurar seus deveres para com Deus, e que o maior de todos os deveres é abraçar de espírito e de coração a religião, não aquela que cada um prefere, mas aquela que Deus prescreveu e que provas certas e indubitáveis estabelecem como a única verdadeira entre todas, assim também as sociedades não podem sem crime comportar-se como se Deus absolutamente não existisse, ou prescindir da religião como estranha e inútil, ou admitir uma indiferentemente, segundo seu beneplácito.” (1) .

1 – Essas fortes palavras do Papa Leão XIII não são a expressão de uma visão retrógrada, pois o Vigário de Cristo designa o próprio princípio da ordem social cristã, ordem necessária para uma expressão da sabedoria divina. O Cardeal Billot deu a justificação teológica para isso na segunda parte de seu Tratado sobre a Igreja (2).

2 – Essa ordem encontra sua profunda raiz na própria natureza do homem e em sua elevação gratuita a uma ordem sobrenatural. Os bens exteriores ao homem (as riquezas) são ordenados ao seu bem-estar corporal e o bem-estar corporal do homem é ordenado ao seu bem-estar espiritual natural, ou seja, ao bem natural de sua alma, e este bem natural da alma está, de alguma forma, ordenado ao fim último sobrenatural, à união sobrenatural do homem com Deus, pela qual a Igreja é responsável. É nessa medida exata em que o bem natural da alma é a condição necessária, embora não suficiente, do bem sobrenatural, uma vez que a graça pressupõe a natureza. Essa hierarquia de bens resulta na hierarquia dos poderes que cabe a eles adquirir (3).

3 – O poder do Estado tem (entre outros) em sua ordem própria, preservar a saúde pública (que é o bem do corpo) e de neutralizar para isso os efeitos nocivos de uma doença contagiosa. O poder da Igreja tem por fim, em sua ordem própria, assegurar o exercício do culto devido a Deus e determinar para isso, por meio de preceito, as condições concretas da santificação do domingo. Por serem distintas, cada um em sua própria ordem, o poder do Estado e o poder da Igreja não devem estar separados (4), porque o bem que cabe ao Estado não é, de fato, um fim último; ele mesmo é ordenado ao fim de ordem sobrenatural. Santo Tomás explica isso muito claramente no De Regimine, livro I, capítulo XV: “É o Papa quem cuida do fim último, a quem deve estar sujeito aqueles que cuidam dos fins intermediários, e é por suas ordens que eles devem ser direcionados”. (N ° 819). O Papa, portanto, exerce um poder “arquitetônico” em relação aos chefes de Estado e essa expressão significa que o Papa é responsável pelo fim último, segundo o qual os chefes de Estado são obrigados a organizar todo o governo da sociedade.

4 – A saúde, que é um dos principais aspectos do bem-estar corporal do homem, nada tem a ver com a santidade, pois é ordenada de alguma maneira ao exercício do culto e à santificação do domingo. Com efeito, mesmo que não seja necessário ter uma boa saúde para ser um santo e mesmo que alguém possa ser um santo sem ter uma boa saúde, normalmente, para poder ir à missa no domingo, um dos pré-requisitos é ter uma boa saúde. O papel do Estado é, portanto, preservar a saúde pública (e neutralizar uma epidemia) para assim oferecer a melhor condição para o exercício do culto, pelo qual a Igreja é responsável, e tornar ordinariamente possível a santidade. O Papa Leão XIII diz, com efeito, que “em uma sociedade de homens, a liberdade digna do nome consiste em que, com o auxilio das leis civis, possamos viver mais facilmente segundo as prescrições da lei eterna” (5). O Estado está, portanto, nessa questão, como em qualquer outra, na dependência da Igreja e subordinado a ela na medida exata em que seu papel é colocar o bem temporal, pelo qual é responsável, a serviço do bem eterno, cujo o Igreja é responsável. “O temporal“, diz Billot, “deve garantir que não haja impedimento à realização do espiritual e deve estabelecer indultos sob as quais pode ser obtido em completa liberdade“. E ele acrescenta que o fim temporal “não deve colocar nenhum obstáculo ao fim espiritual, e, se ele vir a se opor, deve favorecer o espiritual, mesmo à custa de seu próprio detrimento”(6). Palavras surpreendentes aos olhos da razão, mas palavras verdadeiras aos olhos da razão iluminada pela fé. Porque “é melhor entrar com um olho na vida eterna do que ser lançado com dois olhos no fogo do inferno”(7) .

5 – Conseqüentemente, proibir ou limitar o culto para neutralizar uma epidemia seria, por parte do poder do Estado, não é apenas ilegítimo (pelo abuso de seu poder temporal que não pode, como tal, incidir sobre o exercício do culto) mas mesmo absurdo, uma vez que a neutralização da epidemia deve, em última análise, ter o objetivo de promover o exercício do culto. A menos que suponhamos que a inversão radical de fins e de substituir a desordem pela ordem: em vez de ordenar a saúde (com a neutralização da epidemia) ao exercício do culto, seria o exercício do culto (com suas restrições e proibições) que seria ordenadas à saúde. Infelizmente, é isso que vemos nas circunstâncias atuais e que justifica a recente observação de Mons. Schneider: “Os homens da Igreja dão mais importância ao corpo mortal do que à alma imortal dos homens.” (8). Isto se explica pela radical inversão introduzida pelo Concílio Vaticano II: não é mais o Estado subordinado à Igreja e ao serviço dela, é a Igreja que se tornou dependente de estados.

1918: Cruz Vermelha retira vítimas da gripe espanhola

6 – Pode acontecer que, sob um plano de contingência, que é uma circunstância concreta, não seja possível fornecer saúde pública suficiente e neutralizar o contágio de uma doença, de modo a possibilitar o exercício do culto, de maneira ordinária. Cabe então à autoridade eclesiástica – e somente a ela – determinar a forma particular do exercício do culto exigido pelas circunstâncias e torná-lo possível contando com o braço secular. O Estado poderia assim, por exemplo, disponibilizar à Igreja espaços suficientemente grandes, onde os fiéis pudessem assistir a uma missa enquanto permanecessem confinados em seus veículos. Na pior das hipóteses, a Igreja poderia dispensar seus fiéis da assistência na Missa e novamente contar com recursos, técnicos e financeiros, que o Estado disponibilizasse para difundir, massivamente aos lares, transmissões televisivas da Missa. As situações e soluções podem ser muito diversas; mas, em todo caso, a Igreja tem o poder necessário para decidir as condições sob as quais a ordem total deve ser estabelecida, ordem total segundo a qual o exercício do culto é um bem superior ao qual deve ser ordenado o bem da saúde pública. Não cabe ao Estado proibir ou restringir a celebração do culto em nome da saúde. Cabe à Igreja decidir sobre as condições para a celebração do culto, levando em consideração as circunstâncias, reivindicando, como tem o dever e o poder, o apoio e a assistência do poder temporal. 

7 – Essa hierarquização de poderes, necessária e natural, teve seus efeitos amplamente sentidos nos cantões católicos da Suíça no início do século XX. Mesmo após as grandes revoltas que minaram a ordem social cristã em toda a Europa, as autoridades políticas tiveram, por exemplo, em Valais, apenas um poder limitado nas igrejas e só puderam intervir, diplomaticamente, recomendando às autoridades eclesiásticas o respeito das medidas sanitárias necessárias pela epidemia da gripe espanhola. Portanto, não é surpreendente encontrar no decreto do Conselho de Estado de 25 de outubro de 1918: “A autoridade eclesiástica prescreverá as medidas higiênicas necessárias em relação às igrejas e à celebração dos ofícios divinos“. Ao fazer isso, o clero tem a escolha das medidas que deseja aplicar sem que haja qualquer questão de represálias financeiras ou jurídicas. Como resultado, as diferentes cartas endereçadas às paróquias são mais como uma série de recomendações que buscam poupar a sensibilidade ao invés de uma decisão política firme. Uma segunda circular relacionada mais especificamente aos enterros estipula que o caixão deve ser levado diretamente ao cemitério para sepultamento e que a Missa do enterro deve ser celebrada apenas na presença dos familiares próximos e logo após o enterro. Mais uma vez, a correspondência termina com um sinal diplomático: “Esperamos que compreendam a necessidade dessas medidas destinadas a eliminar o máximo possível o perigo de contaminação e que possam cumprir minhas instruções”, que é muito diferente das cartas endereçadas aos diferentes setores que terminam com um lembrete das possíveis sanções se as medidas não forem seguidas. É interessante notar que essa mesma circular, datada de 20 de julho de 1918, foi encontrada nos arquivos episcopais de Sion, com uma pequena nota de rodapé, escrita à mão, adicionada: “Gostaríamos de receber instruções de M., o vigário, sobre esse assunto”. A autoridade política não basta nos lugares que se tem fé…” (9). Quando, cem anos mais tarde, os Estados apóstatas do século XXI decidem unilateralmente proibir ou restringir o exercício do culto, em nome da saúde, é óbvio que os fiéis católicos devem reagir sob a liderança de seus pastores, não como reacionários fanáticos, mas como pessoas prudentes e realistas, e devem tolerar (10) ou suportar pacientemente as decisões injustas, contrarias à prudência sobrenatural. Mas, em caso algum, eles estariam obrigados a um verdadeiro ato da virtude da obediência ao que continua sendo, na verdade, um abuso de poder.

8 – Tudo isso é explicado em razão de uma causa final. Deste ponto de vista, o poder da Igreja é, em relação aos chefes de Estado, como o poder de um cuidador em relação a um paramédico. O paramédico realiza a dosagem dos medicamentos tanto quanto necessário para a saúde do corpo, pela qual o cuidador é responsável. Da mesma forma, o chefe de Estado deve cuidar da boa ordem da sociedade, tanto quanto for necessário para a salvação das almas, pela qual a Igreja é responsável. Pois o homem deve buscar saúde, não a riqueza, apenas na medida em que isso for necessário – como diz Santo Inácio – para salvar sua alma: “Pois, que aproveita ao homem ganhar todo o mundo, se vier a perder a sua alma?” (Mt, XVI, 26). Qual é o sentido do homem obter a vitória sobre a epidemia se negligencia a santificação de sua alma, perdendo o hábito de ir à Missa no domingo? A liturgia de sempre da Igreja prevê uma Missa para os tempos da epidemia e as rúbricas ali dizem que esse tipo de Missa deve ser celebrado “com uma grande concorrência de pessoas“…

Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX

Notas:

(1) Leão XIII, Encíclica Immortale Dei, de 1 de novembro de 1885, ASS, t. XVIII (1885), págs. 163-164.
(2) Louis Billot, A Igreja. III – A Igreja e o Estado, Courrier de Rome, 2011.
(3) Louis Billot, op. cit. n°1183.
(4) A separação entre Igreja e Estado foi condenada pelo Papa São Pio X na Encíclica Vehementer nos, de 11 de fevereiro de 1906.
(5) Leão XIII, Encíclica Libertas, de 20 de junho de 1888, ASS, t. XX (1887), pág. 598
(6) Louis Billot, op. cit. n°1182.
(7) Mt, XVIII, 9.
(8) Mons. Athanasius Schneider, “Entrevista à Diane Montagna”, publicada no The Remnant e traduzido no Blog de Jeanne Smits, página de 28 de março de 2020.
(9) Laura Marino, La Grippe espagnole en Valais (1918-1919), tese apresentada na Faculdade de Biologia e Medicina da Universidade de Lausanne para obtenção do grau de doutor em medicina, 2014, págs. 182-183. Tese arquivada na Universidade de Lausanne, http://serval.unil.ch com a referência BIB_860E861187545.
(10) Isso explica o surgimento do regime de acordos, com a definição de certas questões ditas “mistas”. Cf. Billot, n ° 1247 et sq.