Fonte: SSPX Great Britain – Tradução: Dominus Est
A Igreja está desfigurada pelo Concílio
A revolução que começou com o Concílio Vaticano II desfigurou progressivamente a Igreja de Cristo ao longo dos últimos 60 anos, a ponto dela ser quase irreconhecível em suas quatro marcas (veja aqui o post A IGREJA E AS QUATRO NOTAS).
Desde o encerramento do Concílio, em 1965, a influência e a extensão da Igreja no mundo estão tão reduzidas que muitos preveem que ela estará praticamente extinta dentro de uma geração ou pouco mais. Se a Igreja fosse uma instituição puramente humana, provavelmente seria esse o caso, mas a Igreja Católica é humana… e divina.
Composta por homens, ela é humana e, portanto, mortal. Animada enquanto corporação pela Vida Divina, ela é divina e viverá para sempre.
A Igreja, portanto, não pode morrer. Mas, por que deve sofrer?
O Corpo Místico de Cristo
Para responder a esta questão, devemos compreender a natureza da face divina da Igreja: Nosso Senhor revela a verdade dessa face divina, mais claramente no discurso da Última Ceia:
“Eu sou a videira e vós as varas. O que permanece em mim e eu nele, esse dá muito fruto, porque, sem mim, nada podeis fazer. (Jo 15,5)”
Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo. E por eles eu me santifico a mim mesmo, para que eles também sejam santificados na verdade. Eu não rogo somente por eles, mas também por aqueles que hão de crer em mim por meio da sua palavra; para que sejam todos um, como tu, Pai, o és em mim, e eu em ti, para que também eles sejam um em nós (pela união do amor e da fé), a fim de que o mundo creia que tu me enviaste. (Jo, 18-21)
As cartas de São Paulo aos Colossenses e aos Coríntios corroboram ainda mais esta doutrina:
E ele é a cabeça do corpo da Igreja, e é o princípio, o primogênito dentre os mortos; de maneira que ele tem a primazia em todas as coisas. 19 Porque foi do agrado (do Pai) que residisse nele toda a plenitude … (Col 1, 18-19)
Porque, assim como o corpo é um, e tem muitos membros, mas todos os membros do corpo, embora sejam muitos, são contudo um só corpo; assim é também Cristo. (1 Cor 12, 12)
Essa corporação, animada sobrenaturalmente é conhecida como Corpo Místico de Cristo. É a Igreja Católica como uma realidade divina.
O Corpo Místico de Cristo é Cristo na terra
A doutrina do Corpo Místico de Cristo é tratada extensivamente na Encíclica de 1943, de mesmo nome: Mystici Corporis Christi, do Papa Pio XII. Se quisermos compreender como Deus pode permitir que a sua Igreja seja tão desfigurada pelas mãos dos seus próprios ministros, é necessário ler e refletir sobre essa Encíclica.
Mas para aqueles que acham difícil a rica e densa exposição da doutrina na Encíclica, Mons. Robert Hugh Benson expõe a doutrina do Corpo Místico de Cristo em seu livro Cristo em Sua Igreja e explica por que é necessário que a Igreja sofra. O autor é um artista com as palavras e, portanto, nenhuma desculpa será pedida por citá-lo exaustivamente.
“Os católicos acreditam que, assim como Jesus Cristo viveu Sua vida natural na terra há 2000 anos em um Corpo provindo de Maria, Ele vive hoje Sua Vida Mística em um Corpo provindo da raça humana em geral – chamado Igreja Católica – em que as palavras dela são as Suas, as ações dela são as Suas, a vida dela é a Sua (com certas restrições e exceções), tão certas quanto as palavras, ações e vida registradas nos Evangelhos: é por essa razão que eles dão à Igreja o assentimento de sua fé, acreditando que ao fazê-lo estão entregando-a ao próprio Deus. Ela não é meramente Sua vice regente na terra, nem apenas Sua representante, nem mesmo Sua Noiva [exceto analogicamente]: em um sentido real, ela é Ele mesmo.”
“O Evangelho escrito é o registro de uma vida passada; a Igreja é o Evangelho vivo e o registro de uma vida presente. … Aqui Nosso Senhor reproduz, século após século e país após país, os acontecimentos e crises da vida vivida na Judéia.”
O Evangelho Vivo da Igreja
Na Igreja hoje, vemos os mesmos seguidores de Cristo que vimos nos Evangelhos, e os mesmos inimigos: Judas, Caifás e Pilatos. Vemos o mesmo sofrimento vicário e o mesmo fracasso absoluto da missão aos olhos do mundo.
Seguidores de Cristo e membros da Igreja: Pastores e Reis
Assim como há 2000 anos, apenas os pastores e os reis magos adoraram Jesus em Belém, em geral, dois tipos de pessoas são atraídas para o catolicismo e permanecem fiéis a ele: as extremamente simples e sem instrução e as extremamente astutas e ponderadas.
“Quão dificilmente aqueles que confiam nas riquezas”, diz nosso Senhor, “entrarão no Reino dos Céus.” As riquezas em si não são obstáculo, mas a altivez burguesa em relação a elas – sejam riquezas patrimoniais ou de intelecto – que é realmente inútil.
Os mais simples são aqueles acostumados ao silêncio, às estrelas e aos fatos elementares do nascimento e da morte: aqueles que não têm nenhum conhecimento que possa obscurecer uma visão tão clara. Os mais sábios são aqueles que alcançaram os limites da sabedoria e reconheceram sua pequenez diante do Ser Supremo, da Verdade Suprema.
Mais tarde na vida pública de Nosso Senhor:
“De um lado, estavam os pescadores — homens, como os pastores, habituados ao trabalho manual — aquele maravilhoso purificador de mentes — ao silêncio, às estrelas, à noite e aos grandes espaços. E, e outro, alguns grandes doutores – José, Nicodemos e os demais.”
“E naquele grupo posterior de apóstolos, duas grandes figuras se destacaram, tal como se apresentam hoje em Roma: Pedro e Paulo. Pedro, o pescador cheio de cicatrizes, falando com sotaque galileu, e Paulo, recém-saído de uma universidade de língua grega de uma cidade romana, impregnado das tradições religiosas aristocráticas, um estudioso dos poetas gregos, acostumado à dialética.”
Inimigos de Cristo: Judas
“Sem Judas, humanamente falando, a tragédia do Calvário não teria sido possível. A turba tinha mantido Cristo em seus escalões e O perdera novamente; os soldados saíram contra Ele e voltaram sem Ele; os fariseus procuraram enganá-Lo em Seu discurso, sem sucesso. Foi necessário um amigo para traí-lo. Ele não escapa daquelas mãos a cuja lealdade Ele se entregou.”
“Está reservado, em toda a sua plenitude e malícia, para os amantes mais próximos e calorosos de Jesus Cristo – para aqueles que têm uma espécie de direito de beijá-Lo e chamá-Lo de amigo.”
E assim tem sido através dos tempos. Não existem ministros e religiosos – íntimos, amigos de Cristo – que O traem repetidas vezes? Não O beijam e O traem quando, fingindo caridade, conduzem o seu rebanho à escravidão do pecado pelo escândalo das suas vidas ou pela sua apostasia?
Caifás
“Caifás sabia perfeitamente, no fundo de seu coração, que por trás de toda a aparente concordância entre eles havia um antagonismo feroz e irreconciliável, que seus ideais não eram os mesmos, que Jesus Cristo quis dizer uma coisa com “a Lei de Deus” e ele mesmo queria dizer outra, que todas as suas concepções, até mesmo do caráter do próprio Deus eram diferentes, e que não havia a menor chance ou possibilidade de conquistar Jesus Cristo para o seu lado.”
Os “caifazes” deste mundo – liberais, protestantes e ortodoxos – querem que Deus se ajuste às suas próprias visões de mundo. Eles querem que Deus trabalhe para eles como indivíduos, como sistema ou como estado.
Pilatos
Então temos os Pilatos para quem a Verdade, quando lhes é revelada, é demasiadamente simples:
“Um homem deste tipo muitas vezes se autodenomina agnóstico. ‘Sim’, ele nos diz, ‘eu gostaria muito de acreditar no que vocês acreditam; mas não posso. Deve ser maravilhoso ter um credo, e não hesitar sobre isso, ter sacramentos nos quais você realmente acredita, sentir-se confiante de que você realmente obteve a verdade de forma adequada, de que possui um Mestre Divino que não pode errar. Mas não consigo imaginar-me assumindo tal posição. É simples demais para ser verdade. Não sei o que é a Verdade, mas de qualquer forma deve ser maior do que a sua pequena Igreja, deve ser maior do que qualquer sistema.”
É simples demais, comum e direto. Se ele é agnóstico, diz que é demasiadamente positivo e demasiadamente sistematizado, e se ele é gnóstico, ele diz que não é esotérico o suficiente.
Herodes
Consideremos os Herodes do mundo, para quem a Verdade é demasiadamente profunda.
“A sua visão da religião é que, a menos que possa produzir resultados extraordinários e surpreendentes que possam ser verificados em cinco minutos, não pode ser verdadeira.”
“Há uma escola de psicólogos que trata a religião dessa maneira, que considera os casos anormais, os êxtases, as aparições, as levitações, e negligencia a piedade silenciosa de milhões, as incontáveis vidas sem intercorrências, mas heróicas, de fé simples e de sofrimento, e pensa com isso que realmente examinou a religião.”
“A religião não é uma questão de mera emoção, nem de mero intelecto. O homem que diz: ‘A menos que eu sinta, não acreditarei’, é tão limitado e tolo quanto aquele que diz: ‘A menos que eu entenda, não acreditarei’.”
“Herodes coloca a personalidade de Cristo, que habita em Sua Igreja, no mesmo nível de sua própria personalidade.”
Este ponto é fundamental para compreender o esvaziamento do sobrenatural na Igreja hoje: a profanação de tudo o que é sagrado e a compreensão racionalista e reducionista de Deus e da religião que Ele revelou. Em vez de uma fé sobrenatural nutrida pelas escrituras e pela tradição, temos uma fé natural nutrida por sentimentos, por frases de efeito e por blogueiros na internet.
Sofrimento Vicário
“Todo católico bem instruído sabe oferecer a sua própria dor pelo bem de outra alma, pois somente na Igreja Católica se manifesta àquela Nação de Sacerdotes sobre a qual o primeiro Papa escreve (1 Pe 2, 9), pois somente na Igreja Católica esse vasto princípio da dor vicária é acolhido, reconhecido e usado, no qual toda a cadeia da vida, mesmo na ordem física, se sustenta.”
“Repetidamente as almas que vivem em união com Cristo são chamadas de Seu Corpo considerado como um todo, ou como membros considerados separadamente. Dizem possir o “espírito de Cristo”, eles são descritos em uma frase misteriosa, lúcida apenas na interpretação católica, como preenchendo o que “falta dos sofrimentos de Cristo” (Col 1, 24) – realizando, isto é, no palco da história do mundo, a agonia e a morte registradas nos Evangelhos, estendendo-se diante dos olhos do mundo de hoje – e, de fato, em todos os períodos da história – o suor sangrento, os pregos e o flagelo vistos no Getsêmani e no Calvário.”
Fracasso
“Que a Igreja é, em certo sentido, o maior fracasso que o mundo já viu, é um fato óbvio, devido à própria magnitude das suas reivindicações e pela aparente pequenez das suas realizações.”
“É a Igreja Católica, e somente ela, entre todas as denominações da cristandade, que é ao mesmo tempo demasiadamente mundana e também transcendente para ser tolerada. Demasiadamente divina para os escribas e fariseus, e tal como um rei humano para Pilatos.”
Por que a Igreja deve sofrer?
Compete à Igreja sofrer como Cristo. Ela deve entregar-se tão completamente ao Pai a ponto de ser o sacrifício perfeito do amor. Ela será um fracasso total aos olhos do mundo, é claro, mas alcançará sua perfeição na glória.
Mons. Robert Hugh Benson vê a Igreja morrendo e ressuscitando repetidamente ao longo dos séculos. Haverá, no entanto, uma morte final e uma ressurreição final no final do tempo criado – talvez quando cada membro vivo tiver morrido perfeitamente para si mesmo.
Se a vida de Cristo se reflete na vida da Igreja, talvez todas as mortes e ressurreições anteriores da Igreja sejam apenas uma preparação para a morte e ressurreição finais, assim como os sacrifícios do Antigo Testamento foram uma preparação para o único sacrifício. do Novo Testamento.
É natural que nos perguntemos se a nossa atual crise será a última. Será que o sofrimento da Igreja agora é o mesmo que o sofrimento de Cristo há dois mil anos? No único Sacrifício, o traidor de Cristo foi um amigo e um Bispo, os juízes de Cristo eram os líderes da religião divinamente estabelecida e os representantes do maior poder secular. Hoje, estas circunstâncias são realizadas novamente.Tudo o que está faltando são as almas-vítimas perfeitas que estão tão configuradas com Cristo que se tornaram Cristo.
Eis a nossa vocação, meus queridos irmãos. À medida que se aproxima o final deste ano litúrgico, ansiamos todos por nos conformarmos com Cristo e realizarmos os desejos e o exemplo de São Paulo:
Eu que agora me alegro nos sofrimentos por vós, e que completo na minha carne o que falta aos sofrimenetos de Cristo pelo seu corpo (místico), que é a Igreja, da qual eu fui constituído ministro, segundo o encargo que Deus me deu junto de vós, a fim de que eu cumpra a palavra de Deus, (anunciando-vos) o mistério que foi escondido aos séculos e às gerações (passadas), e que agora foi descoberto aos seus santos, aos quais Deus quis fazer conhecer as riquezas da glória deste mistério entre os Gentios, o qual é Cristo, em (quem) vós (tendes a) esperança da glória. É ele que nós anunciamos, admoestando todo o homem, e instruindo todo o homem em toda a sabedoria, para que apresentemos todo o homem perfeito em Jesus Cristo. É para isso que eu trabalho, combatendo segundo a força que ele me dá, a qual opera poderosamente em mim. (Col 1, 24–29).
Carta do Superior do Distrito Britânico, Pe. Robert Brucciani, FSSPX